Sua Excelência
O Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior
Estrada das Laranjeiras, 205
1649-018 Lisboa

– por protocolo –

Lisboa, 13 de abril de 2018

Sua referência Sua comunicação Nossa referência
  S-PdJ/2018/5245
Q/5670/2016

Assunto: Acesso ao ensino superior. Concurso especial para estudantes internacionais. Familiares de cidadãos portugueses, nacionais de Estado terceiro. Cidadãos brasileiros com estatuto de igualdade de direitos e deveres

Recomendação n.º 1/A/2018
(alínea a) do n.º 1, do artigo 20.º da Lei n.º 9/91, de 9 de abril, na redação da Lei n.º 17/2013, de 18 de fevereiro)

1. Dirijo-me a Vossa Excelência a propósito de um tema que me tem ocupado, na sequência de queixas diversas apresentadas por cidadãos. O tema incide sobre o estatuto do estudante internacional tal como ele decorre do Decreto-Lei n.º 36/2014, de 10 de março, na medida em que aí se institui um regime especial de acesso e ingresso no ensino superior com regras distintas das que regem, nomeadamente, o concurso nacional para colocação em estabelecimento público.

2. Neste contexto, foi chamada a minha atenção para situações relativas a dois universos subjetivos de candidatos/estudantes, a saber:

a) O dos familiares de cidadãos portugueses que sejam nacionais de um Estado terceiro, isto é, que não sejam cidadãos de um Estado membro da União Europeia;
b) O dos cidadãos brasileiros a quem tenha sido concedido o estatuto de igualdade de direitos e deveres previsto no Tratado de Amizade e Cooperação e Consulta entre a República Portuguesa e a República Federativa do Brasil, assinado em Porto Seguro em 22 de abril de 2000 (de ora em diante, Tratado de Porto Seguro).

3. Quanto ao primeiro círculo subjetivo (cidadãos nacionais de um Estado terceiro, familiares de cidadãos portugueses), renovo pela presente missiva o entendimento já exposto à Direção Geral do Ensino Superior : ao abrigo do disposto pela alínea b) do n.º 2 do artigo 20.º do Estatuto do Provedor de Justiça, considero que será de clarificar a legislação aplicável, no sentido de os familiares de cidadãos portugueses [que sejam nacionais de um Estado terceiro] não ficarem necessariamente sujeitos ao estatuto de estudante internacional regulado pelo citado Decreto-Lei n.º 36/2014.
Como compreenderá Vossa Excelência, a questão será tudo menos despicienda. Não obstante as condições especiais de ingresso de que beneficiam os estudantes internacionais, sobre os mesmos recai, desde logo, uma propina diferenciada, que atende ao “custo real médio da formação a adquirir” (n.º 7 do artigo 16.º da Lei de Bases do Financiamento do Ensino Superior), a fixar, no caso das instituições de ensino superior público, pelos órgãos para tal competentes nos termos dos respetivos estatutos (artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 36/2014). A frequência das formações iniciais no ensino superior público é, assim, evidentemente mais onerosa para quem quer que se encontre abrangido pelo estatuto de estudante internacional, uma vez que, neste domínio, não existirá financiamento das instituições por parte do Estado (artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 36/2014). Tanto basta, por isso, para que seja do maior relevo a clarificação do regime legal no que diz respeito à delimitação do âmbito subjetivo de aplicação do referido estatuto.
Ora, e quanto a este ponto, determina o artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 36/2014 que “estudante internacional é o estudante que não tem a nacionalidade portuguesa”, sendo as exceções a esta regra geral mencionadas no número seguinte do mesmo artigo. Dentro destas exceções contam-se nomeadamente quer “os nacionais de um Estado membro da União Europeia”, quer os que, “não sendo nacionais de um Estado membro da União Europeia, residam em Portugal há mais de dois anos, de forma ininterrupta (…)”.  Significa isto que, no elenco das condições excecionais [que implicam o desvio à regra segundo a qual quem não for cidadão nacional será, ipso facto, tido como “estudante internacional”] não surge expressamente contemplada a condição dos familiares de cidadãos portugueses que sejam nacionais de um Estado terceiro, não membro da União Europeia.

4. É, porém, seguro que este último grupo de pessoas deve também incluir-se no elenco daquelas às quais se não aplicará o estatuto de estudante internacional.
Dois tipos de razões sustentam esta minha afirmação.
Em primeiro lugar, razões atinentes ao nosso Direito interno, mormente àquele que decorre da Constituição da República; em segundo lugar, razões atinentes ao Direito da União Europeia, ao qual confere a Constituição da República um lugar particularíssimo no nosso sistema de fontes (artigo 8.º, n.os 3 e 4).

4.1. No que ao Direito interno diz respeito, sublinharei o lugar que a proteção da família, enquanto tarefa prioritária do Estado, ocupa no sistema de valores constitucionalmente recebidos. Disso mesmo é expressão quer a liberdade de constituir família (artigo 36.º, n.º 1 da CRP) quer o direito à proteção da família já constituída por parte da sociedade e do Estado (artigo 67.º, n.º 1). O facto de os laços familiares já existentes ou a existir poderem vir a unir cidadãos portugueses a estrangeiros – sejam eles oriundos de Estados membros da União Europeia ou de qualquer outro lugar do mundo – é, face aos valores constitucionais, irrelevante. Um sistema de valores fundamentais como o nosso, que se orienta pelo princípio cosmopolita da equiparação básica de direitos independentemente da nacionalidade [artigo 15.º da CRP, com as exceções aí mencionadas], não pode ser senão interpretado deste modo: perante a tutela constitucionalmente atribuída à família, e que se traduz na enunciação de tarefas prioritárias do Estado, a proteção que a comunidade política deve dar aos laços familiares existentes é de grau intenso, quer tais laços se estabeleçam apenas entre portugueses quer unam portugueses a estrangeiros. Como tal intensidade de proteção (ou de dever de proteção) se repercutirá, desde logo, sobre o legislador, é minha convicção que o sentido da lei aplicável às situações que temos vindo a examinar deve ser clarificado, de modo a que não restem mais dúvidas quanto a este ponto: quem quer que seja familiar de um cidadão português não deve ter estatuto de estudante internacional, ainda que a sua nacionalidade não seja a de um Estado membro da União Europeia.

4.2. O próprio Direito da União, recebido no Direito interno nos termos do já referido artigo 8.º da CRP, corrobora esta conclusão.
Como já se disse, determina o n.º 2, alínea a), do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 36/2014 que “não são abrangidos pelo disposto no número anterior [segundo o qual será internacional todo o estudante que não for português] os nacionais de um Estado membro da União Europeia.”
Esta determinação da lei portuguesa, segundo a qual se equiparam, para efeitos de atribuição do estatuto de estudante nacional, os portugueses a quaisquer outros cidadãos de Estados membros da União, não corresponde a uma escolha livre do legislador da República. Pelo contrário: corresponde a uma obrigação que sobre este último impende, tendo em conta, quer o que é estabelecido pela Constituição portuguesa (artigos 7.º, n.º 5, e 8.º, n.º 3), quer o que é estabelecido pelo Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE: artigos 18.º, 20.º e 21.º).
Com efeito, os princípios que neste domínio decorrem do TFUE não poderiam deixar ao legislador português outra solução que não a inscrita na alínea a) do n.º 2 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 36/2014. Uma vez que tais princípios se reconduzem, basicamente, quer à proibição de discriminação em razão da nacionalidade (no âmbito de aplicação do Tratado: artigo 18.º do TFUE), quer à liberdade de circulação de todos os cidadãos europeus por todo o território da União (artigo 20.º), quer, ainda, ao direito, que a tais cidadãos assiste, de circular e permanecer livremente no território dos Estados membros (artigo 21.º, com as limitações aí previstas), outra opção não poderia ter o legislador nacional se não esta que vimos acompanhando. Ao delimitar o âmbito de aplicação do estatuto de estudante internacional, nenhuma distinção se fez entre cidadãos portugueses e cidadãos oriundos de um qualquer outro Estado Membro da União Europeia. A solução decorre, sem margem para dúvidas, do Direito da União, desde logo daquele que está contido nos seus tratados constitutivos. 

4.3. Sucede, porém, que o mesmo Direito da União – e, desta vez, não o seu direito originário mas o seu direito derivado – vai quanto a este ponto mais longe. A Diretiva 2004/38/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativa ao direito de livre circulação e residência dos cidadãos da União no território dos Estados membros, estabelece no seu considerando 5.º que

« [o] direito de todos os cidadãos da União circularem e residirem livremente no território dos Estados-Membros implica, para que possa ser exercido em condições objectivas de liberdade e dignidade, que este seja igualmente concedido aos membros das suas famílias, independentemente da sua nacionalidade.»

Em conformidade com esta orientação, o Estado português, ao transpor a Diretiva, reconheceu – através da Lei n.º 37/2006, de 9 de agosto – o princípio segundo o qual os familiares dos cidadãos oriundos de Estados membros da União (quando queiram estes últimos exercer o seu direito de livre circulação e permanência em território português), deverão ser alvo, independentemente da sua nacionalidade, de um tratamento preferencial no que diz respeito a entrada e residência, salvaguardadas as limitações pertinentes que decorram também elas do Direito da União (vejam-se, nomeadamente, os artigos 2.º e 3.º da Lei n.º 37/2006).

Optando assim o Direito da União – e, por obrigação de transposição desse direito para o ordenamento interno, o Direito português – por uma solução clara de proteção dos laços familiares estabelecidos entre cidadãos europeus e cidadãos oriundos de países terceiros, ao ponto de se considerar que os membros das famílias daqueles primeiros merecem tutela independentemente da sua nacionalidade, não fará de todo sentido que, no que diz respeito ao campo preciso dos critérios de atribuição do estatuto de estudante internacional, venha agora o legislador português escolher uma solução que implique, para os portugueses, um tratamento mais desfavorável do que aquele que em princípio será reservado aos cidadãos oriundos de Estados membros da União que circulem ou permaneçam em Portugal. Para que se previna este efeito de discriminação inversa (maior favor concedido a cidadãos europeus do que a cidadãos nacionais) fundamental será, segundo creio, que se clarifique a lei aplicável à determinação do estatuto de estudante internacional, de modo a que se torne inequívoco que os familiares de cidadãos portugueses, qualquer que seja a sua nacionalidade, não ficarão necessariamente sujeitos ao estatuto de estudante internacional. 

5. À semelhança do que acabei de defender, mas agora visando o universo dos cidadãos brasileiros com o estatuto de igualdade de direitos e deveres, haverá igualmente que clarificar-se a possibilidade de os mesmos serem candidatos a uma vaga de ensino superior público por via do concurso nacional (ou outro concurso especial, eventualmente aplicável in casu), não ficando assim necessariamente sujeitos ao estatuto de estudante internacional. Desenvolverei agora este ponto de vista.

5.1. O entendimento que acabei de expor assenta em dois pressupostos fundamentais.
Por um lado, o estatuto especial de igualdade em questão compreende, no âmbito do regime de equiparação que acolhe, não apenas direitos mas também deveres (nos termos do disposto no artigo 12.º do Tratado de Porto Seguro, os beneficiários do estatuto de igualdade gozam dos mesmos direitos e estão sujeitos aos mesmos deveres dos nacionais do Estado em que é requerido; veja-se, ainda, o disposto no artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 154/2003, de 15 de julho, diploma que contém o regime de aplicação e registo do estatuto de igualdade).
Por outro lado e conforme antes realçado, o concurso especial para estudantes internacionais consubstancia um regime privilegiado de acesso ao ensino superior público (nos termos preambularmente assumidos no respetivo diploma, trata-se, fundamentalmente, de uma via de atração ou captação de estudantes estrangeiros, gerida, dentro das condicionante legais, pelas próprias instituições de ensino, numa lógica de oferta de oportunidades de estudo em Portugal, sem financiamento do Estado diretamente associado), não sendo por isso acessíveis a estudantes nacionais as vagas nesse contexto disponibilizadas por instituição e/ou curso.

5.2. Sendo os cidadãos brasileiros beneficiários do estatuto de igualdade, não devem – creio – suscitar-se dúvidas quanto à admissibilidade das suas candidaturas a matrícula e inscrição através do concurso nacional, em condições iguais às dos cidadãos nacionais.

Contudo, e na hipótese de a concessão do estatuto de igualdade ocorrer no decurso do ciclo de estudos em que o cidadãos brasileiro beneficiário foi inicialmente colocado, tal circunstância superveniente não deverá interferir com o estatuto visado pelo Decreto-Lei n.º 36/2014, que há-de manter-se até ao final do ciclo do estudo em questão. Solução distinta (vale por dizer, em termos práticos: ingresso num par instituição/curso através do concurso especial, mas com direito ao pagamento de propina de valor circunscrito, por força da lei) consubstanciaria um tratamento desigual, sem motivo justificativo, dos cidadãos portugueses, colocados em situação de maior competição, no quadro de um sistema de numerus clausus, no acesso a uma vaga no ensino superior público. Estão por conseguinte em causa situações distintas que merecem tratamentos também eles distintos. Aos cidadãos brasileiros que forem já beneficiários do estatuto de igualdade não haverá que negar-se a possibilidade do ingresso no ensino superior público português em regime igual ao reservado a cidadãos nacionais. Todavia, se o ingresso num certo ciclo de estudos se não fizer por essa via – mas pela outra, distinta, de concurso especial – não será a aquisição, entretanto obtida, do estatuto de igualdade que permitirá ao estudante alcançar, durante o mesmo de ciclo de estudos, as condições que são próprias do estudante nacional. Se assim não for, criar-se-á, na equiparação entre estudantes brasileiros e estudantes portugueses, um regime desrazoavelmente favorável para os primeiros e injustificadamente desfavorável para os segundos. Por isso e segundo julgo, também quanto a este ponto deveria clarificar-se o sentido da legislação aplicável.  

Queira aceitar, Senhor Ministro, os meus melhores cumprimentos.

A Provedora de Justiça

(Maria Lúcia Amaral)