Exmo. Senhor

Presidente da Câmara Municipal de Lisboa

Praça do Município – Paços do Concelho

1149-014 Lisboa

 

 

Lisboa, 15 de junho de 2015

 

Vossa Ref.ª

OF/445/CVMS/14

ENT/1992/GVMS/14

 

 

Vossa Comunicação

 41-08-2014

 5-08-2014

 

 

Nossa Ref.ª

Proc. Q-1081/14 (UT1)

 

RECOMENDAÇÃO N.º 3/A/2015

(alínea a), do n.º 1, do artigo 20.º, da Lei n.º 9/91, de 9 de abril, na redação da Lei n.º 17/2013, de 18 de fevereiro)

 

Assunto: Unidade de Execução do Interior do Quarteirão dos Marianos ‑ Licenciamento de obra de construção e demolição ‑ Imóvel da estrutura patrimonial municipal ‑ Rua das Janelas Verdes, 60 a 68, freguesia da Estrela

 

Nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a), do n.º 1, do artigo 20.º da Lei n.º 9/91, de 9 de abril, na redação da Lei n.º 17/2013, de 18 de fevereiro, e em face das motivações seguidamente apresentadas, recomendo à Câmara Municipal superiormente presidida por V. Ex.ª que:

Declare a nulidade, nos termos do artigo 103.º do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial[1], do ato de aprovação dos termos referência da Unidade de Execução do Interior do Quarteirão dos Marianos e dos demais atos conexos, por desconformidade com o Plano Diretor Municipal, aprovado pela Assembleia Municipal de Lisboa em 24 de julho de 2012[2]. 

Bem assim, declare a nulidade, nos termos dos artigos 103.º do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial, 67.º e alínea a) do artigo 68.º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação[3], do ato administrativo de aprovação do projeto de arquitetura relativo à obra de construção nova e demolição proferido no processo Proc. n.º 671/EDI/2013 por ter sido aprovado em desconformidade com a versão revista do Plano Diretor Municipal e por se encontrar violado, quando à obra de demolição e construção do edifício sito na Rua das Janelas Verdes, n.º 60 a 68, o disposto nos artigos 7.º e 8.º do Plano de Urbanização do Núcleo Histórico da Madragoa, aprovado pela Assembleia Municipal em 24 de outubro de 1996[4].

Convido V. Exa a atender às motivações que se apresentam, no termo de uma aturada apreciação das questões controvertidas, a qual compreendeu, como não poderia deixar de ser, as explicações prestadas pelos serviços superiormente dirigidos pelo Senhor Vereador Manuel Salgado. Entendo, assim, contribuir para uma mais correta e razoável aplicação do direito vigente.

 

§1.º ‑ Da queixa

Foi-me apresentada uma queixa por oposição ao licenciamento de uma obra de demolição e de construção nova no denominado Quarteirão dos Marianos, na atual freguesia da Estrela, com uma área de 11 000 m2, aproximadamente.

Analisada a queixa e interpelada a Câmara Municipal sobre as objeções suscitadas, conclui-se pela ilegalidade dos atos de aprovação do projeto de arquitetura de construção nova e demolição, bem como da aprovação dos termos de referência da Unidade de Execução do Quarteirão dos Marianos que seguidamente se enunciam.

 

§2.º ‑ Do Plano Diretor Municipal aplicável

O pedido de delimitação da Unidade de Execução para o Interior do Quarteirão dos Marianos, bem como os termos de referência próprios, foram aprovados em 20 de fevereiro de 2013, a coberto da deliberação municipal n.º 104/2013, ou seja, já depois de entrar em vigor a revisão do Plano Diretor Municipal de Lisboa (PDM).

O que vale, por maioria de razão, para a aprovação do projeto de arquitetura relativo à obra de construção nova e demolição, em 14 de agosto de 2013 (Proc. n.º 671/EDI/2013).

Entendem os serviços municipais superiormente dirigidos por V. Exa que estes pedidos têm enquadramento no Regulamento do Plano de Urbanização do Núcleo Histórico da Madragoa e na anterior versão do Plano Diretor Municipal, ratificado pelo Conselho de Ministros em 14 de julho de 1994[5], para o qual o plano de urbanização remeteria. Neste pressuposto, o apuramento das áreas de estacionamento e de ocupação do logradouro seriam quantificadas de acordo com a anterior versão do PDM, enquanto as áreas a ceder para o domínio público são quantificadas nos termos do PDM revisto, por se tratar de matéria omissa no Plano de Urbanização do Núcleo Histórico da Madragoa.

Não posso acompanhar o entendimento municipal quanto à aplicabilidade da anterior versão do PDM.

Vejamos: no n.º 3 do artigo 25.º, do Decreto-lei n.º 380/99, de 22 de setembro[6], determina-se que, nas deliberações municipais que aprovam os planos, devem ser expressamente indicadas as normas dos instrumentos de gestão territorial preexistentes revogadas ou alteradas.

Em consonância, no artigo 5.º do regulamento do PDM revisto prescreve-se que, enquanto não forem alterados, revistos ou suspensos, mantêm-se em vigor e prevalecem sobre as disposições do presente plano, os planos de urbanização e os planos de pormenor eficazes à data da entrada em vigor deste plano, identificados e delimitados no anexo I entre os quais consta o Plano de Urbanização do Núcleo Histórico da Madragoa.

O Plano Diretor Municipal revisto consagra, no referido artigo 5.º, a prevalência do Plano de Urbanização do Núcleo Histórico da Madragoa sobre o PDM revisto.

Contudo, a consagração da prevalência do Plano de Urbanização do Núcleo Histórico da Madragoa sobre o PDM em vigor é apenas isso mesmo. Apenas confirma o disposto no n.º 3, do artigo 7.º, do Código Civil. Ou seja, o Plano de Urbanização do Núcleo Histórico da Madragoa prevalece sobre o PDM em vigor sempre que aí sejam reguladas matérias em concorrência e em sentido divergente.

A regra da prevalência não pode, porém, ser utilizada como pretexto para desaplicar as normas do PDM revisto quando o Plano de Urbanização do Núcleo Histórico da Madragoa remete para as normas específicas do PDM, reportando-se à numeração da versão originária deste instrumento de gestão territorial.

 

Na taxinomia das normas de remissão, esta diz-se estática ou material quando é feita para certa norma, em atenção ao seu conteúdo; diz-se dinâmica ou formal quando é feita para certa norma, em atenção apenas ao facto de ser aquela que em certo momento, regula determinada matéria, aceitando-se o conteúdo, ainda que posteriormente alterado, da norma remitida[7]. Por outras palavras, a remissão dinâmica acompanha as alterações de conteúdo das normas visando a versão em vigor no momento da aplicação da lei.

Deve entender-se que o âmbito preferente da remissão material é o dos negócios jurídicos. Isto porque nos negócios jurídicos as partes remetem para a lei que conhecem e com que contam, não sendo justo alterar posteriormente o conteúdo negocial[8]. Valem razões de segurança jurídica e de salvaguarda das expectativas legitimamente criadas pelos particulares.

Quando a remissão decorra da lei ou de regulamento administrativo entende‑se que, estando em causa o interesse público a prosseguir pela Administração Pública e não meros interesses particulares divergentes, a entrada em vigor de uma regulamentação nova significa que esta cuida melhor do interesse público e, por tal facto, deve aplicar-se de imediato.

Esta posição é confirmada pelo disposto no princípio geral de direito consagrado no artigo 12.º do Código Civil. Dispondo a lei sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos. Pelo contrário, quando a lei dispõe sobre o conteúdo de certas relações jurídicas entende-se que abrange as relações já constituídas que subsistam à data da sua entrada em vigor.

No caso em apreço não existem efeitos jurídicos ou relações jurídicas a ressalvar ou salvaguardar, para efeito do disposto no artigo 12.º do Código Civil. As situações jurídicas relevantes e a delimitação da Unidade de Execução para o Interior do Quarteirão dos Marianos e pedido de licença de construção e demolição iniciaram-se já na vigência do Plano Diretor Municipal revisto, pelo que não haverá que tutelar efeitos jurídicos já produzidos ao abrigo do artigo 12.º do Código Civil.

Defende António Menezes Cordeiro que a remissão «é sempre uma mensagem de igualdade» (…) «equivale a um juízo de valor de igualdade; num certo momento, o legislador entendeu que as razões que justificavam um regime num ponto o justificavam também noutro ponto: fez a remissão; quando essas razões se alterem, a modificação a introduzir no regime do primeiro ponto deverá sê-lo também no outro. A manutenção da igualdade assim o exige»[9].

A jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo converge pacificamente. Em aplicação do princípio tempus regit actum, conclui-se que a apreciação da legalidade dos atos administrativos deve ter apenas em conta a realidade fáctica existente no momento da sua prática e o quadro normativo então em vigor[10].

O mesmo entendimento tem vindo a ser adotado no Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República[11].

Mas além de termos em conta a jurisprudência e a doutrina sobre concursos de aplicação normativa, quando existe alteração do direito, temos de ter presente um argumento que justamente circunscrito ao direito do urbanismo adquire aqui um peso determinante.

No direito do urbanismo, o artigo 67.º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação determina que «A validade das licenças (…) das operações urbanísticas depende da sua conformidade com as normas legais e regulamentares em vigor à data da sua prática, sem prejuízo do disposto no artigo 60.º».

Ou seja, a lei só num pressuposto específico admite que ceda o princípio do tempus regit actum, regendo-se os atos administrativos pelas normas em vigor no momento em que são praticados.

Esse caso específico ‑ o do artigo 60.º ‑ respeita exclusivamente a edificações construídas ao abrigo de normas de construção ou planos urbanísticos anteriores. Em nome da proteção da confiança salvaguarda essas edificações contra normas supervenientes que, se fossem aplicadas, ditariam a ilegalidade.

Assim, no n.º 1 dispõe-se que «As edificações construídas ao abrigo do direito anterior e as utilizações respetivas não são afetadas por normas legais e regulamentares supervenientes». E no n.º 2 vai um pouco mais longe para permitir obras de reconstrução ou de alteração dessas edificações que se desviem das novas prescrições, contanto que «não originem ou agravem a desconformidade com as normas em vigor ou tenham como resultado a melhoria das condições de segurança e de salubridade da edificação».

No termo de responsabilidade, o autor do projeto tem de especificar as normas desaplicadas e as razões técnicas que fundamentam a sua inobservância (n.º 5 do artigo 10.º).

Não é esse o caso visado na queixa, motivo por que se hão de aplicar as normas legais e regulamentares em vigor presentemente: o Plano de Urbanização do Núcleo Histórico da Madragoa e o PDM revisto[12].

E nem sequer o referido artigo 5.º do PDM, que determina a prevalência (por especialidade) do Plano de Urbanização do Núcleo Histórico da Madragoa sobre o PDM, nem o artigo 91.º deste último, que dispõe sobre a validade dos atos e preexistências, ressalvam a aplicabilidade do PDM na versão anterior.

Assim, quando a norma do Plano de Urbanização do Núcleo Histórico da Madragoa remete para uma específica norma do PDM na versão originária, que já não tenha correspondência sistemática com a nova norma vigente, o princípio do tempus regit actum determina que se procure a correspondência material entre as normas do plano objeto de revisão com as normas do plano em vigor.

Pelo contrário, o entendimento adotado pelos serviços municipais foi o de repristinar um plano revogado.

As dúvidas e divergências encontradas têm de ser resolvidas segundo as regras da hermenêutica jurídica. O aparente concurso de normas que se sucedem no tempo tem de solucionar-se de acordo com a preferência pela lei nova para regular situações novas.

Em suma, de acordo com os princípios tempus regit actum e da natureza dinâmica das remissões, a devolução prevista no Plano de Urbanização há de adaptar-se às vicissitudes do Plano Diretor Municipal.