Sua Excelência
A Secretária de Estado da Ciência
Palácio das Laranjeiras
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1649-018 LISBOA
 
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Proc. Q – 3987/12 (A6)
         Q – 5739/12 (A6)
 
 
 
 
Assunto: Art.º 5.º do Estatuto do Bolseiro de Investigação. Produção de efeitos. Renovação de bolsas de doutoramento e pós-doutoramento. Exercício de funções docentes.
 
RECOMENDAÇÃO N.º  4/B/2013
(art.º 20.º, n.º 1, b), da Lei n.º 9/91, de 9 de abril)
 
 
1.                  Dirijo-me a Vossa Excelência, na sequência de queixas recebidas a propósito do estatuto do bolseiro de investigação, no quadro do financiamento pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P. (FCT).
 
Em causa estão, concretamente, as condições de renovação de bolsas de doutoramento/pós-doutoramento, no que concerne à possibilidade de conciliação do exercício de funções docentes com o estatuto de bolseiro de investigação, nos termos autorizados aos bolseiros docentes abrangidos, à luz do quadro legal vigente no momento da concessão das respetivas bolsas.
 
2.                  Sobre a problemática em debate debrucei-me já na Recomendação n.º 10/A/2011, endereçada a Vossa Excelência, tendo nessa ocasião expressado, nomeadamente, a necessidade de ser clarificado, pela via normativamente adequada e em termos inequívocos, o regime jurídico aplicável à acumulação do estatuto do bolseiro de investigação com o exercício de funções docentes.
 
Em resposta, foi assumido o compromisso governamental no sentido da clarificação do referido regime e cuja consecução culminou com a publicação do Decreto-Lei n.º 202/2012, de 27 de agosto. Este diploma, como é sabido, procede à primeira alteração do Estatuto do Bolseiro de Investigação, o qual consta, por seu turno, em anexo à Lei n.º 40/2004, de 18 de agosto (doravante, EBI)[1].
 
Não competindo, naturalmente, ao Provedor de Justiça pronunciar-se sobre as concretas opções político-legislativas que estiveram na base do citado decreto-lei e que, no contexto da margem de liberdade de conformação do legislador, consubstanciam, especificamente, as soluções normativas de reforço do regime de dedicação exclusiva do bolseiro de investigação, tal como agora vertidas no art.º 5.º do EBI, já as determinações legislativas em matéria de produção de efeitos das novas regras, no que a bolsas em execução concerne, suscitam as minhas mais sérias reservas nos termos que passo a enunciar.
 
Explicitando com maior clareza, não merece crítica a possibilidade de, em situações novamente constituídas, ser estabelecido um regime, no limite, de incompatibilidade. É apenas na aplicação desse novo regime a bolsas anteriormente concedidas e em sede de renovação, que aqui me restrinjo.
 
3.                  A título prévio, observa-se a este respeito que, segundo o disposto no art.º 4.º do Decreto-Lei n.º 202/2012, as alterações pelo mesmo diploma introduzidas no art.º 5.º do EBI aplicam-se igualmente aos contratos de bolsa em curso, aferindo-se do cumprimento pelos bolseiros das novas regras no momento da «verificação de qualquer situação de reexame dos pressupostos de concessão da bolsa» (n.º 1 do art.º 4.º), a qual ocorre, nomeadamente, nos casos dos pedidos da sua renovação (n.º 2 do art.º 4.º).
 
Ainda assim, subsequentemente e com referência às fórmulas preambulares do Decreto-‑Lei n.º 233/2012, de 29 de outubro, o legislador, ponderando entretanto a circunstância de que «[o] reforço do regime de dedicação exclusiva estabelecido (…) cria constrangimentos à organização do ano letivo em curso [de 2012/2013]», entendeu «necessário diferir para o início do próximo ano letivo a produção de efeitos das alterações efetuadas pelo diploma acima identificado [Decreto-Lei n.º 202/2012] no que respeita ao reforço do regime de dedicação exclusiva», incluindo a extensão das novas regras sobre a acumulação do estatuto do bolseiro de investigação com o exercício de funções docentes tal como estipulado pela «disposição final e transitória» do art.º 4.º do mesmo decreto-lei.
 
Por seu lado, observa-se, de igual modo, que em 25 de junho de 2012 fora já publicado em Diário da República o novo Regulamento de Bolsas de Investigação da FCT (Regulamento n.º 234/2012 – de agora em diante, abreviadamente, Regulamento da FCT), cujo art.º 22.º, n.º 3, «limita os termos em que se admite compatibilizar a garantia de exequibilidade do plano de trabalhos aprovado com outras atividades compatíveis com o regime de dedicação exclusiva», para citar o despacho do Presidente do Conselho Diretivo da FCT, de 29 de outubro p.p. (disponibilizado no respetivo sítio).
 
Neste contexto, na sequência do diferimento da produção de efeitos do novo regime de dedicação exclusiva operado pelo Decreto-Lei n.º 233/2012, foi determinada, ao abrigo do acima citado despacho e em cumprimento, por seu turno, de despacho de Vossa Excelência, «a suspensão imediata da aplicação do disposto no n.º 3 no art.º 22.º do Regulamento (…) da FCT», atendendo-se a que o mesmo normativo encontra-se «materialmente ligado com as normas cuja eficácia fo[ra] (…) diferida».
 
Reportando-me sempre ao Regulamento da FCT, quanto à respetiva produção de efeitos, nota-se ainda que, em conformidade com o disposto no seu art.º 41.º, n.º 1, a nova regulamentação se aplica também «a todos os contratos de bolsa vigentes», especificando-se, quanto a estes, o seguinte: «[n]o que diz respeito aos pressupostos e duração máxima das bolsas, aplicam-se os regulamentos anteriormente em vigor até à data em que, nos seus termos, deva ocorrer a sua próxima renovação» (n.º 2 do preceito citado).
 
4.                  Em face do enquadramento normativo acabado de traçar e em considerações análogas, mutatis mutandis, às que motivaram a minha Recomendação n.º 10/A/2011 – as quais, permita-me recordá-lo, mereceram o acolhimento favorável da parte de Vossa Excelência nos termos do despacho que proferiu com data de 16 de fevereiro de 2012 –, não creio que a extensão, com efeitos a partir do próximo ano letivo, das novas regras relativas ao regime de dedicação exclusiva, aos contratos de bolsas já em execução e a aferir no momento da respetiva renovação, cumpra com as exigências do princípio constitucional da proteção da confiança dos cidadãos.
 
Na verdade, na lição de J.J. Gomes Canotilho[2], a respeito deste princípio:
 
«O homem necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar autónoma e responsavelmente a sua vida. Por isso, desde cedo se consideraram os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança como elementos constitutivos do Estado de direito.
(…) Em geral, considera-se que a segurança jurídica está conexionada com elementos objectivos da ordem jurídica – garantia de estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização do direito – enquanto a protecção da confiança se prende mais com as componentes subjectivas da segurança, designadamente, a calculabilidade e previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos actos dos poderes públicos. A segurança e a protecção da confiança exigem, no fundo: (1) fiabilidade, clareza, racionalidade e transparência dos actos do poder; (2) de forma que em relação a eles o cidadão veja garantida a segurança nas suas disposições pessoais e nos efeitos jurídicos dos seus próprios actos.»
 
5.                  A esta luz, na situação que nos ocupa e conforme me expressei já na citada Recomendação n.º 10/A/2011, não é desconhecido que inexiste uma expectativa juridicamente tutelável, quanto à renovação de bolsa de doutoramento/pós-‑doutoramento até ao limite máximo temporal normativamente fixado.
 
Em todo o caso, sem embargo de variantes de redação, os anteriores Regulamentos da Formação Avançada e Qualificação de Recursos Humanos (RFAQRH) sempre colocaram o enfoque do procedimento de renovação das bolsas em causa numa avaliação, no plano científico, das atividades do bolseiro, incluindo a apreciação sobre a previsão do cumprimento do seu plano de trabalhos e a conveniência da renovação da bolsa no caso concreto. De resto, o Regulamento da FCT, atualmente vigente, igualmente assim o prevê, conforme o preceituado nos n.os 3 e 5 do art.º 21.º.
 
Mesmo que, no limite, os pareceres do orientador e da instituição de acolhimento não vinculem a FCT para efeitos de renovação da bolsa[3], nada nos RFAQRH indica aos bolseiros docentes que a manutenção das respetivas bolsas – as quais foram concedidas, no que para o presente debate releva, em função do cumprimento de um conjunto de condições a respeito da sua situação profissional durante a execução da bolsa, quanto ao exercício autorizado de atividade docente – ficaria na dependência do preenchimento ex novo de diferentes condições ou pressupostos, que não a submissão das atividades dos bolseiros a um escrutínio sob o ponto de vista de uma decisão favorável em sede de avaliação científica do mérito e da exequibilidade do programa de trabalhos.
 
6.                  Em atenção ao que precede, não posso, por conseguinte, deixar de fazer notar que os bolseiros docentes em questão, ao apresentarem a sua candidatura a uma bolsa de doutoramento/pós-doutoramento e, ulteriormente, uma vez concedida a bolsa pretendida, ao celebrarem o respetivo contrato com a FCT, não deixaram de ponderar, nesse momento, as imposições estatuárias e regulamentares ao tempo vigentes em termos da respetiva situação profissional durante o período da bolsa, incluindo, nomeadamente, as garantias exigidas quanto à exequibilidade do programa de trabalho em face da carga letiva semanal associada à manutenção de atividade docente, tal como autorizada pela FCT.
 
Por seu turno, da parte desta última, a concessão das bolsas em causa, com a sua anuição quanto ao exercício, em determinados termos, de funções docentes pelos bolseiros interessados, ocorreu num quadro regulamentar em que a possibilidade de renovação das bolsas concedidas não depende, conforme já anteriormente realcei, de outros condicionamentos, que não uma decisão favorável no plano da avaliação científica do mérito e da exequibilidade do plano de trabalhos.
 
Razão pela qual, por força das normas legais (EBI) e regulamentares (RFAQRH), sob a égide das quais ocorreu a celebração dos contratos de bolsa em questão, foram criadas expectativas legítimas aos bolseiros docentes abrangidos, expectativas estas que não podem agora ser desconsideradas, atento o princípio da proteção da confiança, desde logo da confiança gerada no quadro normativo aplicável aos correspondentes concursos de atribuição das suas bolsas e à renovação destas.
 
Recorde-se, de resto, que, tal como Vossa Excelência não deixou de ponderar no já citado despacho de 16 de fevereiro de 2012, aquele quadro legal
 
 «prevê a possibilidade de[ o bolseiro de investigação] poder exercer excepcionalmente funções docentes sem quebra do regime de dedicação exclusiva a que está obrigado, tendo em vista a facilitação das actividades de investigação e a integração futura dos cientistas nas universidades, e atenta a complementaridade intrínseca entre os subsistemas científico e de ensino superior».
 
Ora, foi justamente nesse panorama normativo que os docentes com bolsas atualmente em execução viram ser-lhes autorizada pela FCT a acumulação de atividade docente (até determinado limite de carga horária) com o estatuto de bolseiro de investigação, tendo sido, nesse pressuposto também, que a FCT, enquanto parte do contrato de bolsa, decidiu conceder-lhes o financiamento a que se tinham candidatado.
 
Neste exato enquadramento jurídico, as condições ou pressupostos de concessão da bolsa, nomeadamente as respeitantes ao regime de compatibilização do exercício de atividades docentes com o estatuto de bolseiro de investigação, não podem deixar de aferir-se primordialmente pelas normas vigentes ao tempo em que o contrato de bolsa foi outorgado.
 
Excetuo, claro está, todas as circunstâncias (eminentemente fáticas) não passíveis de antevisão no momento inicial de projeto que necessariamente é plurianual ou, mesmo, que só se possam revelar em momento posterior. Exemplificando, não repugna que, face à evolução de determinado projeto, se reconheça a necessidade de uma maior dedicação (ou da dedicação exclusiva) do bolseiro, constituindo essa mesma uma condição sine qua non da continuidade do financiamento.
 
O que afasto é a possibilidade de tal mudança de critério ser decorrente da aplicação de um critério geral e abstrato, que faz tábua rasa de tudo o que, em contrário, possa ser comprovado em concreto.
 
Tais pressupostos, tidos como condição essencial da atribuição da bolsa e por verificados no momento da sua concessão, não podem agora, sob pena de iniquidade, ser dados como indiferentes para efeitos de renovação, ao pretender-se apor a observância de novas condições de renovação, as quais os bolseiros docentes não poderiam legitimamente antecipar, no momento da celebração dos respetivos contratos de bolsa.
 
De outro modo dito, foi no contexto normativo descrito que os bolseiros docentes, com bolsas atualmente em curso, confiaram que poderiam realizar o plano – necessariamente plurianual – de atividades a que se propuseram, nas condições validadas pela atribuição de bolsa de doutoramento/pós-doutoramento pela FCT. Nessa medida, considero que são merecedoras da tutela do direito as suas legítimas expectativas na estabilidade das condições aceites pela FCT relativamente à respetiva situação profissional durante a execução da bolsa, até ao limite máximo de duração legalmente permitido.
 
7.                  Permito-me notar, Senhora Secretária de Estado, que não se questiona aqui a possibilidade de conexão de efeitos jurídico de uma lei nova a situações iniciadas no passado (veja-se, desde logo, a este respeito o disposto no art.º 12.º do Código Civil).
 
Distintamente, o problema que agora se coloca é o de que qualquer regulação nesse domínio – como aquela que flui do disposto no art.º 4.º do Decreto-Lei n.º 202/2012, mas também, na parte pertinente, do art.º 41.º do Regulamento da FCT – não pode deixar de passar pelo crivo do princípio constitucional da proteção da confiança, desde logo com vista a aferir da respetiva justeza e adequação.
 
Ora, no presente caso, não se afigura que o legislador tenha acautelado uma disciplina justa, ao determinar a conexão de efeitos jurídicos do novo regime de dedicação exclusiva, plasmado no art.º 5.º do EBI, a situações de concessão de bolsas cujos pressupostos foram definidos em face de um regime antecessor mais permissivo.
 
Reitero que estão em causa decisões quanto à situação profissional dos bolseiros docentes, tal como decorrente da lei e do regulamento de bolsas aplicáveis no momento da concessão do financiamento em questão, considerando imperioso garantir um mínimo de certeza na tutela das expectativas legitimamente criadas aos bolseiros docentes em face desse quadro normativo regendo, em cada um dos casos, a conciliação do estatuto de bolseiro com o exercício de funções docentes durante o período da bolsa.
 
8.                  Nestes termos e à luz das exigências decorrentes do princípio da proteção da confiança dos cidadãos, recomendo a Vossa Excelência, ao abrigo do disposto no art.º 20.º, n.º 1, alínea b), do Estatuto do Provedor de Justiça,
 
1)      Que as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 202/2012 ao art.º 5.º do EBI apenas sejam aplicadas aos contratos de bolsa que venham a ser celebrados após a entrada em vigor das novas regras relativas ao regime de dedicação exclusiva a que o bolseiro de investigação científica fica obrigado;
2)      Consequentemente, que sejam adotadas as medidas adequadas a suprir as deficiências que decorrem do disposto no art.º 41.º do Regulamento da FCT, de modo a corresponder às exigências de conformidade com o princípio constitucional da proteção da confiança, com salvaguarda das legítimas expectativas dos bolseiros.
 
Alerto, por último, Vossa Excelência para a necessidade de o assunto em apreço ser ponderado com a brevidade possível, em vista do lapso de tempo que medeia até ao início do próximo ano letivo, muito agradecendo que me seja dada informação sobre a sequência que o presente assunto vier a merecer.
 
 
O Provedor de Justiça,
 
Alfredo José de Sousa


[1] Alterado, por último, pela Lei n.º 12/2013, de 29 de janeiro.
[2] In Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª ed., Coimbra: Livraria Almedina, 2003, p. 257.
[3] Sendo certo, porém, que, conforme me expressei na Recomendação n.º 10/A/2011, «em caso de decisão desta última [da FCT] desfavorável à pretensão do bolseiro interessado, torna-se particularmente exigente o dever de fundamentação da decisão negativa em causa.»