Exmo. Senhor
Diretor-Geral da Saúde
Alameda D. Afonso Henriques, 45
1049-005 LISBOA
 
 
 
V.ª Ref.ª
 
V.ª Comunicação:
 
 
Nossa Ref.ª
Proc. P-14/10 (A1)
ASSUNTO: Síndrome de Diógenes – Resíduos domésticos – insalubridade – saúde mental – saúde pública.
 
RECOMENDAÇÃO N.º 4/A/2013
(artigo 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de abril)
 
I
Considerações preliminares
 
1.    Dirijo-me a V. Ex.ª., no termo de uma ponderada e criteriosa análise suscitada por várias queixas que, ao longo de vários anos, me têm sido apresentadas contra as autoridades de saúde e os serviços municipais, relativas a situações de insalubridade domiciliária imputada a indivíduos com sintomas da designada síndrome de Diógenes[1].
 
2.    Trata-se de exposições, na grande maioria, de vizinhos das pessoas que sofrem dessa perturbação, em diversos pontos do País, e que nos revelam, não só alguma descoordenação entre as várias autoridades competentes, como uma indevida tergiversação em torno do tratamento das questões.
 
3.    Esta patologia caracteriza-se por uma quebra e rejeição de padrões sociais, que se reflete num descuido pessoal e habitacional severo, num abandono progressivo do contacto social e numa reduzida consciência do problema.
 
4.    Concomitantemente, desenvolve-se um comportamento rotineiro de recolha e acumulação de objetos e resíduos no interior dos domicílios, associada à detenção de animais domésticos em número excessivo, dando lugar a infestações de roedores e insetos e a cheiros insuportáveis que se propagam no interior das edificações.
 
5.    O doente perde os mais elementares hábitos de higiene e confabula um estado de indigência que procura compensar pela reserva de objetos que retira da via pública e dos contentores de resíduos sólidos urbanos.
 
6.    Constituindo uma condição clínica de relevância crescente, do ponto de vista social e de saúde pública, pelas consequências que a ela estão associadas, a Síndrome de Diógenes apresenta atualmente um interesse crescente no âmbito da investigação clínica, social e de saúde pública[2].
 
7.    Este é um assunto que tem vindo a merecer cada vez mais atenção nos planos europeu e internacional[3], denotando-se em Portugal uma menor sensibilidade para a problemática, o que surge como o principal fator impeditivo de uma conveniente identificação e gestão dos casos.
 
8.    Apesar do grave risco que acarreta para o doente, quase sempre idoso, e para os terceiros expostos à crescente degradação ambiental criada, o isolamento radical e uma condição de vida à margem da sociedade tornam difícil a deteção destes casos.
 
9.    Acresce que, ao invés do que seria de esperar, e atendendo à designação adotada, não é de todo linear que estas situações surjam como uma opção de vida, mas antes de um quadro psicótico que leva a que o doente, na grande maioria dos casos, recuse toda e qualquer ajuda. A comunidade de vizinhança não o entende assim e vai criando reações hostis e agressivas para com o doente.
 
10.Por outro lado, além de a conduta acumuladora poder derivar, por vezes, de perturbações mentais diversas não diretamente relacionadas com a Síndrome de Diógenes, existem alguns, ainda que poucos casos, em que aos indivíduos em causa não foi sequer diagnosticada qualquer doença mental.
 
11.Para além do mais, nos estudos realizados em Portugal, a Síndrome de Diógenes revelou não ser específica de um determinado estrato socio-económico, nem de uma faixa etária concreta, embora se possa considerar como um fenómeno maioritariamente geriátrico.
 
II
Análise
 
– Queixas apresentadas ao Provedor de Justiça –
 
12.A partir de algumas situações concretas de conflito de direitos[4], é-me dado observar que, apesar da regulação jurídica das formas de tratamento destas situações se revelar, aparentemente clara, na definição e delimitação das respetivas competências, a atuação coordenada das várias autoridades municipais e das autoridades de saúde não deixa de suscitar alguns problemas.
 
13.Feita uma breve resenha dos casos que analisámos, concluiu-se serem reveladores de um empenho dos municípios em promover a limpeza dos locais reclamados em contraste com uma colaboração muito deficitária das autoridades de saúde interpeladas, designadamente, os delegados de saúde, os quais, não raro, limitam-se a encaminhar as queixas para as câmaras municipais.
 
14.Com efeito, as autoridades de saúde questionam invariavelmente a existência de um risco efetivo para a saúde pública, limitando-se a classificar as situações como de mera insalubridade particular e a colaborar pontualmente, recusando uma interpretação adequada das competências que se lhe encontram legalmente atribuídas em matéria de prestação compulsiva de cuidados de saúde a indivíduos cujo comportamento possa prejudicar a saúde pública.
 
15.Na grande maioria dos casos, mesmo depois de reconhecida a situação de grave insalubridade no interior das habitações visadas e a necessidade de realizar coercivamente uma operação de limpeza, deparamo-nos com inúmeros obstáculos que começam, logo, pela dificuldade em obter autorização do doente para entrada no domicílio, problema este que se agrava se não estivermos perante o quadro de uma doença mental declarada.
 
16.A garantia constitucional de inviolabilidade do domicílio (artigo 34.º, n.º 2) não é absoluta, pois pode ser levantada por autorização judicial, e esta não se circunscreve, como às vezes se julga, à investigação criminal.
 
17.Na verdade, se assim for, só quando esteja em causa uma situação de perigo para a saúde pública, é que haverá lugar a intervenção dos delegados de saúde junto do Ministério Público com a finalidade de obter o suprimento judicial do consentimento e, ainda assim, chegados a esta fase, os próprios tribunais, pouco sensíveis a estas matérias, voltam a causar alguma entropia.
 
 
 
 
– Resultado das diligências efetuadas –
 
18.Levámos a cabo múltiplas averiguações, designadamente, pesquisas com o intuito de analisar o tratamento destas situações ao nível da Organização Mundial de Saúde e do direito comparado.
 
19.Teve lugar uma reunião gentilmente concedida pelo Professor Doutor Miguel Xavier, Coordenador da Área da Saúde Mental de Adultos, da Direção-Geral de Saúde, com o escopo de apreender a incidência deste tipo de patologia ao nível nacional e de sensibilizar os serviços de saúde para a importância de alinhar regras de coordenação das diferentes autoridades e serviços públicos envolvidos no tratamento deste tipo de situações, mas sobretudo no seu encaminhamento primário.
 
20.No decorrer da citada reunião, concluiu-se que, em grande parte, as situações de insalubridade doméstica referenciadas pela Direção-Geral de Saúde dizem respeito às zonas urbanas mais antigas, sendo, na maior parte dos casos, imputadas a indivíduos que sofrem de psicoses paranoides de base.
 
21.Todavia, apesar de, na maioria das situações relatadas, o desenvolvimento da síndrome de Diógenes estar muitas vezes associado a este tipo de psicoses, bem como a casos de esquizofrenia ou de doenças maníaco-depressivas, o diagnóstico precoce por parte das autoridades de saúde competentes assume uma relevância fundamental.
 
22. Até porque são estas mesmas autoridades que dispõem de legitimidade para requerer o internamento compulsivo dos doentes que dele careçam, junto das instâncias judiciais.
 
23.O Coordenador da Área da Saúde Mental de Adultos deu-nos conta ainda de que os tribunais, enquanto instâncias judiciais competentes para apreciar estes requerimentos, deveriam dispor de um conhecimento mais aprofundado das matérias, pelo que seria de orientar as autoridades de saúde para instruírem os pedidos de internamento compulsivo e as autorizações para entrar em domicílio com uma nota explicativa da patologia mental indiciada e caracterização dos comportamentos associados.
 
24.Considerou, pois, que à semelhança de uma experiência bem sucedida em Málaga, Espanha, onde constatámos a existência de um protocolo em matéria de «intervenção social em casos de insalubridade – Diógenes», a elaboração de um protocolo de coordenação de atuação concertado entre várias autoridades envolvidas que funcionasse com um documento orientador a divulgar junto das instâncias judiciais, revelar-‑se-ia de toda a utilidade.
 
25.Contactados dois académicos especialistas na matéria[5], foi também acentuada a importância do cruzamento entre a saúde pública e a saúde mental para uma leitura sociopatológica de cada situação concreta.
 
 
– Considerações jurídicas –
 
26.O Decreto-Lei n.º 82/2009, de 2 de abril[6] incumbe as autoridades de saúde de prover à defesa da saúde pública, desencadeando, de acordo com a Constituição e a lei, o internamento ou a prestação compulsiva de cuidados de saúde a indivíduos em situação de a prejudicarem (artigo 5.º n.º 3), bem como o internamento compulsivo do portador de anomalia psíquica grave (artigos 7.º alínea a), 8.º n.º 1 e 13.º da Lei n.º 36/98, de 24 de julho), mediante a apresentação de requerimento fundamentado junto do tribunal competente[7].
 
27.Compete ainda à autoridade de saúde de nível municipal (delegado de saúde), na sua área de jurisdição, fazer cumprir as normas que tenham por objeto a defesa da saúde pública[8], requerendo, quando necessário, o apoio das autoridades administrativas e policiais.
 
28.Por sua vez, cabe às câmaras municipais, zelar pela segurança e salubridade das edificações[9] (artigo 89.º do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro, com a redação do Decreto-Lei n.º 26/2010, de 30 de março), bem como, proceder à captura, alojamento e abate de canídeos e gatídeos, nos termos da legislação aplicável (artigo 64.º n.º 1 alínea x) da Lei n.º 169/99, de 18 de setembro, na redação da Lei n.º 5-A/2002, de 11 de janeiro).
 
29.Por outro lado, e em matéria de proteção da intimidade e da reserva privada, estabelece, a Constituição da República Portuguesa, como se referiu, o princípio da inviolabilidade do domicílio, dispondo que a entrada no domicílio das autoridades contra a vontade do sujeito só pode ser ordenada pela autoridade judicial competente, nos casos e segundo as formas previstos na lei (artigo 34.º n.º 2).
 
30.Ainda que esta norma constitucional se encontre, sistematicamente, no contexto das garantias do processo penal, há de aplicar-se, por maioria de razão, a outras situações (por exemplo artigo 95.º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação).
 
31.Verifico que as competências de cada uma das autoridades envolvidas no acompanhamento e tratamento deste tipo de casos se encontram delimitadas ao nível do direito interno, tal não obviando, no entanto, a que persista uma abordagem complexa e manifestamente insuficiente das questões em análise e da sua articulação com os poderes conferidos.
 
32.Na verdade, receio que o atendimento urgente a situações desta natureza não se compadeça com uma leitura restritiva das competências legais – da qual, no limite, poderia até resultar uma lacuna jurídica ou um conflito negativo de competências – carecendo ao invés de uma interpretação orientada para a resolução do problema em que, independentemente de se verificar um perigo para a saúde pública nos termos legalmente definidos, se reconheçam as situações de insalubridade que transcendem a esfera particular de origem, lesando todos quantos utilizem ou circulem nas imediações.
 
33. A tudo isto acresce ainda o facto de o internamento temporário e as operações de limpeza terem um efeito tranquilizador para os moradores vizinhos, mas que poderá durar por pouco tempo, na medida em que o regresso a casa do doente acentua o seu isolamento e exclusão comunitária.
 
V
Conclusões
 
Em face das motivações precedentemente expostas, e no uso do poder que me é conferido pelo disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 20.º da Lei n.º 9/91, de 9 de abril, RECOMENDO a V. Ex.ª, Senhor Diretor-‑Geral da Saúde, que, em colaboração com as demais autoridades envolvidas, promova a elaboração de um guia de orientações, por forma a:
 
a)    Garantir o justo equilíbrio dos direitos em confronto, através da definição de procedimentos que permitam, por um lado, acautelar o ambiente e a saúde pública, e por outro, a dignidade do doente;
 
b)    Alcançar uma atuação concertada das entidades de saúde e municipais envolvidas no tratamento deste tipo de casos;
 
c)    Melhorar a eficácia da intervenção dos serviços de saúde de nível municipal, assegurando a deteção precoce das situações sinalizadas, e evitando as interpretações demasiado restritivas dos conceitos envolvidos;
 
d)    Divulgar este mesmo documento – que se assumirá como um manual de procedimentos – junto das competentes instâncias judiciais, por forma a evitar entropias desnecessárias na fase decisória.
 
Embora apenas por dever de ofício, permito-me recordar V. Ex.ª. que a Recomendação determina, nos termos do disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 38.º da Lei n.º 9/91, de 9 de abril, transmitir-me, no prazo de 60 dias, a posição que vier a ser assumida em face das respetivas conclusões.
 
 
O PROVEDOR DE JUSTIÇA
 
 
Alfredo José de Sousa


[1] Esta designação foi utilizada pela primeira vez em 1975 por referência a Diógenes de Sinope, filósofo grego que adotou e promulgou até ao extremo os ideais de privação e de total desprendimento de necessidades materiais. Discute-se até aos dias de hoje se a escolha da definição será apropriada, na medida em que a mesma pressupõe um comportamento voluntário do acumulador, circunstância que nem sempre se verifica.
[2] Rosa Almeida e Óscar Ribeiro, «Síndrome de Diógenes: revisão sistemática da literatura», Revista portuguesa de saúde pública, 2012, 30(1), págs. 89 a 99.
[3] Esta questão tem mobilizado as instâncias internacionais, particularmente no contexto das políticas públicas de inclusão dos idosos, como se pode ver pela Resolução de 19/11/2010, da Assembleia Geral das Nações Unidas (Res. A/C.3/65/L.8/Ver.1).
[4] Os conflitos surgem quando o comportamento do doente entra em colisão com os direitos ao ambiente e à qualidade de vida de terceiros. São quase sempre, os vizinhos a queixarem-se da indiferença que dizem manifestada perante as suas reclamações pelas autoridades de saúde e pelos serviços municipais e das freguesias.
[5] Rosa Almeida e Óscar Ribeiro são também co-autores do artigo «Síndrome de Diógenes: revisão sistemática da literatura», publicado na Revista portuguesa de saúde pública, 2012, 30(1), págs. 89 a 99.
[6] Regras de designação, competência e funcionamento das entidades que exercem o poder de autoridade de saúde.
[7] O próprio Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, no acórdão H.M. contra Suíça, de 26.02.2002, http://hudoc.echr.coe.int., considerou que o internamento compulsivo de um doente para garantir cuidados médicos fundamentais e condições de vida e de higiene adequadas não viola o direito à liberdade e à segurança consagrado no artigo 5.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
[8] Nos termos do artigo 14.º alínea d) do Decreto-Lei n.º 286/99, de 27 de julho, são atribuições de cada unidade de saúde pública, no âmbito da respetiva área geodemográfica, monitorizar a saúde da população e os respetivos fatores de risco e de proteção.
[9] Nos casos de manifesta simplicidade, o artigo 12.º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas aprovado pelo Decreto-Lei n.º 38382, de 7 de agosto de 1951 prevê uma modalidade mais expedita de atuação, que dispensa, inclusivamente, a realização de prévia vistoria.