Sua Excelência
O Ministro da Administração Interna
Praça do Comércio
1149-015 Lisboa
               
Proc. Q-3365/12 (A5)
 
13.03.2012
 
 
RECOMENDAÇÃO N.º 2/B/2013
 
Formulada de acordo com o disposto no artigo 20.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 9/91,
de 9 de abril (Estatuto do Provedor de Justiça)
 
 
I
 
1. Determinei a abertura de processo de averiguações na sequência de queixa incidente sobre a validade de notificação levada a cabo pelo Comando da G.N.R., aquando da emissão do auto de contraordenação, por infração rodoviária, uma vez que o queixoso, de nacionalidade australiana, desconhecia a língua portuguesa.
 
2. Em cumprimento do princípio de audição prévia consignado no artigo 34.º da Lei n.º 9/91, de 9 de abril (Estatuto do Provedor de Justiça), veio a entidade visada transmitir ([1]) que «Os autos de contraordenação por infrações ao Código da Estrada elaborados nos termos dos artigos 170º e 175º, apenas dispõem de instruções em língua portuguesa»,acrescentando ainda que«Não é prática usual acionar a presença de um intérprete em sede de elaboração de autos de contraordenação, por infrações ao Código da Estrada a cidadãos estrangeiros»,reconhecendo-se o incumprimento do regime ínsito no n.º 2 do artigo 92.º do Código do Processo Penal«por manifesta falta de condições em que decorre o ato».
 
3. E refere ainda
 
 «…este obstáculo apenas poderá ser mitigado mediante uma alteração legislativa que permita uma introdução, nos autos de contraordenação, de instruções em várias línguas, o que já sucede noutros países. Aliás, situação análoga aconteceu há alguns anos, no caso dos direitos e deveres do detido e do arguido, previsto no artigo 61.º do Código de Processo Penal, que foram traduzidos em três línguas (Inglês, Francês e Espanhol) e afixados nos Postos Territoriais, junto aos locais de detenção».
 
4. Por sua vez, a Direção Nacional da Polícia de Segurança Pública (P.S.P.) veiculou ([2]) que «Quer o auto de notícia quer os termos da notificação referentes às contraordenações rodoviárias são aprovados por Despacho da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, por força do n.º 4 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de fevereiro».
 
5. Aduz-se, por outro lado, que «A tradução dos termos da notificação, no momento da fiscalização, dependerá sempre de alteração legislativa».
 
6. Finalmente, a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (A.N.S.R.) informou, por ofício de 11 de outubro de 2012, que
 
«Os atos praticados no âmbito do processo contraordenacional rodoviário, designadamente os termos da notificação do auto de contraordenação, têm que ser redigidos em língua portuguesa, devendo a administração, in casu, a ANSR, promover pela tradução dos documentos sempre que o arguido alegue não conhecer a língua portuguesa».
 
7. Acrescenta-se que
 
 «a ANSR já ponderou a utilização de língua estrangeira no auto de contraordenação e nos termos da sua notificação, no entanto, tal medida mostrou-se impraticável, uma vez que, as entidades fiscalizadoras, depararam-se diariamente com uma enorme variedade de condutores estrangeiros que representam uma diversidade de línguas maternas utilizadas».
 
8. Conclui aquela entidade que «a possibilidade de tradução, no momento da fiscalização, do auto de contraordenação, bem como, dos termos da sua notificação, só será possível havendo uma alteração legislativa que defina os critérios em que a mesma pode ter lugar».
 
 
 
 
II
 
9. O Regime Geral das Contraordenações (R.G.C.O.) ([3]) aplica-se sempre que não haja previsão na contraordenação em especial -Código da Estrada ([4]) quanto às contraordenações rodoviárias-, justificando-se, subsidiariamente, a adoção do regime vertido nos Códigos Penal e de Processo Penal na falta de previsão no referido R.G.C.O., tal como sucede no caso sub judice.
 
10. Prescreve o n.º 1 do artigo 92.º do Código de Processo Penal (C.P.P.) ([5]) que «nos actos processuais, tanto escritos como orais, utiliza-se a língua portuguesa, sob pena de nulidade».
 
11. Acautelando as situações de intervenção no processo de pessoa que não conheça ou não domine a língua portuguesa, o n.º 2 dispõe que «… é nomeado, sem encargo para ela (para essa pessoa), intérprete idóneo, ainda que a entidade que preside ao acto ou qualquer dos participantes processuais conheçam a língua por aquela utilizada» (sublinhado meu).
 
12. E refere o n.º 6 do mesmo preceito que «É igualmente nomeado intérprete quando se tornar necessário traduzir documento em língua estrangeira e desacompanhado de tradução autenticada».
 
13. Coloca-se, assim, a questão de saber que consequências advêm do facto de não se observar aquela formalidade.
 
14. O regime das nulidades no ordenamento jurídico português obedece ao princípio da legalidade ([6]), estabelecendo o n.º 1 do artigo 118.º do C. P. P., que «a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei».
 
15. Estatui, por sua vez, o n.º 2, que «nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular».
 
16. A análise aos preceitos legais que regulamentam a disciplina do ato de notificação, não permite concluir que em algum deles se comine expressamente a nulidade para a omissão de entrega ao notificando estrangeiro de tradução do documento na sua língua materna.
 
17. Examinemos então os artigos 119.º e 120.º do C. P. P., onde se faz o elenco das situações que integram, respetivamente, a categoria das nulidades insanáveis e a das nulidades dependentes de arguição ou sanáveis.
 
18. Refere o artigo 119.º do C.P.P. que
 
«Constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais: a) A falta do número de juízes ou de jurados que devam constituir o tribunal, ou a violação das regras legais relativas ao modo de determinar a respectiva composição; b) A falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do artigo 48º, bem como a sua ausência a actos relativamente aos quais a lei exigir a respectiva comparência; c) A ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência; d) A falta de inquérito ou de instrução, nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade; e) A violação das regras de competência do tribunal, sem prejuízo do disposto no artigo 32º, nº 2; f) O emprego de forma de processo especial fora dos casos previstos na lei».
 
19. Atento o normativo constante do artigo 119.º, verifica-se que a situaçãoora apreciada se não reconduz a qualquer das situações elencadas, não se alcançando aí o seu enquadramento.
 
20. No que concerne ao artigo 120.º, dispõe a alínea c) do n.º 2 que constitui nulidade «a falta de nomeação de intérprete, nos casos em que a lei a considerar obrigatória», sendo seguro que se não poderão deixar de incluir aqui todos os atos, orais ou escritos, que importe verter para a língua de algum dos intervenientes ([7]).
 
21. De resto, o n.º 1 do artigo 92.º engloba todos os atos processuais, tanto escritos como orais, pelo que a ambos se reporta o n.º 2 quanto à exigência de nomeação de intérprete no condicionalismo nele referido.
 
22. Assim, a inobservância do disposto nesse n.º 2 do artigo 92.º – a que, à partida, se reconduz o caso em apreço – padecerá sempre do vício de nulidade.
 
23. Não obstante, estamos em presença de invalidade dependente de arguição do interessado, sujeita à disciplina prevista nesse artigos 120.º e 121.º do C.P.P.
 
24. Tratando-se de nulidade prevista na al. c) do n.º 2 do artigo 120.º, e na ausência de regra específica que marque o tempo de arguição do vício, em qualquer das alíneas do n.º 3 do artigo 120.º, aplicar-se-á o prazo geral de dez dias que o artigo 105.º, n.º 1, do C. P. P. fixa para a prática de qualquer ato processual.
 
25. O referido prazo deverá ser contado a partir da notificação irregular feita ao arguido que, a partir desse momento, ficou de posse de todos os elementos para concluir pela ilegalidade que afetava a notificação efetuada ([8]).
 
 
III
 
26. Concluo, assim, que a elaboração de autos contraordenacionais efetivada pelas autoridades competentes, à luz do estipulado pelos artigos 170.º e 175.º do Código da Estrada, se encontra em flagrante violação do direito subsidiário aplicável, ferindo de nulidade o procedimento até aqui adotado nesta matéria.
 
27. Reconheço a impraticabilidade do atual modelo, o qual prevê a nomeação de intérprete por autoridade judiciária ou autoridade de polícia criminal em sede de tradução de atos processuais.
 
28. Afigurar-se-á, pois, incontornável a alteração legislativa do regime ínsito no Código da Estrada, relativamente a esta matéria, podendo suscitar-se a implementação de solução já reportada no Processo Penal, quanto à comunicação dos direitos e deveres processuais ao arguido, nos termos do disposto no artigo 61.º do C.P.P., tal como sugerido pelo ofício da GNR n.º 3913/GGCG de 28 de agosto de 2012, atrás citado.
 
29. Entendo que os formulários dos autos contraordenacionais devem estar traduzidos em idioma inglês, cuja universalidade e globalidade é hoje unanimemente reconhecida, não apenas em função do número de falantes como também pela respetiva distribuição geográfica, salvaguardando-se, deste modo, o dever de informação da esmagadora maioria dos utentes rodoviários.
 
30. Relativamente aos factos consubstanciadores da acusação formulada, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem estabelece na alínea a) do n.º 3 do artigo 6.º, que o acusado tem, como mínimo, o direito a ser informado no mais curto prazo, em língua que entenda e de forma minuciosa, da natureza e da causa da acusação contra ele formulada.
 
31. Ainda que a Convenção vigore na ordem jurídica interna portuguesa com valor infra constitucional, face ao teor do artigo 8.°, n. º 2, da Constituição, manterá sempre, de acordo com Irineu Cabral Barreto[9], valor «superior às leis ordinárias», no ordenamento jurídico português.
 
32. Assim, em decorrência do Direito Comunitário, o acusado deverá dispor de esclarecimento do significado do ato processual praticado.
 
33. Muito embora este segundo momento possa mostrar-se ultrapassado através da expedição, por via postal, do teor do despacho previamente traduzido em documento escrito elaborado para o efeito, pondero queseja disponibilizado ao arguido o acesso ao respetivo processo contraordenacional, no âmbito do qual se afigure possível consultar, também em língua inglesa, os diversos elementos de prova, tendo em vista a eventual preparação do direito de defesa.
34. Tal procedimento poderá ser salvaguardado num momento posterior ao da emissão do auto de contraordenação, nomeadamente, através de plataforma eletrónica disponibilizada para esse efeito ([10]).
IV
 
Nos termos descritos, de acordo com as motivações expostas, e exercendo o poder que me é conferido pelo artigo 20.º, n.º 1, alínea b) da citada Lei n.º 9/91, de 9 de abril, entendo RECOMENDAR a Vossa Excelência que:
 
 
1.        Seja acautelada a revisão do regime legal previsto nos artigos 170.º e 175.º do Código da Estrada, concernente à forma de comunicação ao arguido dos elementos constantes do auto de notícia exarado em contexto de contraordenação rodoviária, devendo garantir-se a tradução do referido documento em língua inglesa, sob pena de nulidade.
 
 
2.        Que, numa segunda fase, sejam igualmente facultados ao arguido, também em idioma inglês, a acusação formulada e os diversos elementos contantes do respetivo processo de contraordenação (eventualmente por encaminhamento para plataforma eletrónica).
 
 
Solicito a Vossa Excelência que, em cumprimento do dever consagrado no artigo 38.º, n.º 2, do Estatuto do Provedor de Justiça, se digne mandar informar-me sobre a sequência que este assunto venha a merecer, no prazo de 60 dias.
 
 
O PROVEDOR DE JUSTIÇA,
 
Alfredo José de Sousa
 
 
 
 


[1] Ofício n.º 3913/GGCG de 28 de agosto de 2012, do Comando Geral da GNR.
[2] Ofício n.º 219/DTSR, de 28 de janeiro de 2013.
[3] Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 23 de outubro, com as alterações que lhe sucederam.
[4] Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de maio, na redação conferida pelo Decreto-Lei n.º 138/2012, de 5 de julho.
[5] Arts. 32.º e 41.º do Decreto-Lei n.º 433/82 de 23 de outubro. Cfr. CRESPO, Ana Marta, Contraordenações rodoviárias: o direito de defesa do arguido, Conferência proferida no dia 2 de novembro de 2005 no Instituto Politécnico de Leiria, in http://www.estg.ipleiria.pt.
[6] Cfr. o Parecer do Conselho Consultivo da PGR  n.º 73/96, processo n.º 877, in http://dre.pt/pdf2sdip/2000/11/268000000/1881218819.pdf
 
 
 
[7] Cfr. Acórdão da Relação de Évora, de 22 de abril de 2010, proc.º n.º 11/05.0FCPTM.E1, e Acórdão da Relação  do Porto de 8 de junho de 2005, proc.º n.º 0513062, in http://www.dgsi.pt.
[8] Cfr. Acórdão da Relação do Porto, de 8 de junho de 2005, cit.
[9] A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Almedina, 3.ª ed., pág. 45.
[10] Refira-se, neste particular, o recém-criado «Portal das Contraordenações» da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, espaço restrito suscetível de ser alargado aos arguidos de nacionalidade estrangeira em processo de contraordenação rodoviária, através da introdução do número identificativo do Auto.