RECOMENDAÇÃO n.º 7/A/2007
[artigo 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril]


Entidade visada: Presidente do Conselho de Administração dos Serviços Municipalizados de Ponta Delgada
Proc.º: R-2191/05 (Açores)
Data: 30.07.2007


Assunto: Taxas e tarifas. Carácter bilateral. Tarifa de disponibilidade da rede de águas residuais.



I
INTRODUÇÃO


A presente intervenção foi desencadeada por uma queixa que me foi dirigida quanto à cobrança por parte dos Serviços Municipalizados de Ponta Delgada de uma tarifa de disponibilidade da rede de águas residuais, prevista no artigo 70.º do Regulamento Municipal dos Sistemas Públicos Prediais de Distribuição de Água e de Drenagem de Águas Residuais do Concelho de Ponta Delgada, doravante mencionado apenas como Regulamento Municipal (v. DR, II, n.º 56, de 7 de Março de 2002, e DR, II, n.º 225, Apêndice n.º 82/2006, de 22 de Novembro).



Foi alegado que é ilegal a cobrança de uma “tarifa de disponibilidade” do sistema de drenagem de águas residuais, conjuntamente com as tarifas devidas pelo consumo de água e recolha de resíduos sólidos, naqueles casos em que não existe efectiva ligação do sistema predial ao sistema público.



Tal ilegalidade resultaria da cobrança de uma taxa sem efectiva contraprestação, estando-se, pois, perante um tributo cuja criação está vedada ao município sob pena de violação do princípio de reserva de lei.



Ouvidos esses Serviços Municipalizados, foi defendida a legalidade da tarifa de disponibilidade com os seguintes fundamentos:




a) O carácter sinalagmático inerente àqueles tributos encontra-se presente na tarifa em causa, já que “a disponibilidade de um sistema de saneamento básico é por si só geradora de utilidade para os munícipes”. “Isto porque as utilidades geradas, que justificam a cobrança de uma taxa, podem ser futuras”. É o que acontece neste caso com a disponibilização de um sistema de saneamento básico.



b) A ilegalidade está antes no facto de o consumidor não proceder à ligação do seu sistema predial ao sistema público de drenagem de águas residuais, “em clara violação do artigo 150.º do Decreto Regulamentar n.º 23/95, de 23 de Agosto” (v. também artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 207/94, de 6 de Agosto, e artigo 76.º do Regulamento Municipal).


Contudo, pelas razões que adiante procurarei desenvolver, este órgão do Estado entende que:




a) a actuação dos Serviços Municipalizados viola o próprio Regulamento Municipal;
b) ainda que assim não fosse, na situação em preço está ausente a bilateralidade inerente ao conceito de taxas latu sensu.



II
EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS



A
O Regulamento Municipal



1. O artigo 70.º do Regulamento Municipal, no seu n.º 2, fundamenta assim a cobrança da tarifa de disponibilidade: ” para prover aos custos de conservação e manutenção (…) dos ramais de ligação, sendo fixada em função (…) do tipo de utilizador, no caso da rede de drenagem de águias residuais”.



O mesmo artigo define a tarifa de disponibilidade como “uma tarifa mensal a cobrar pela EG [entidade gestora], desde o momento em que a ligação à rede pública se mostre efectuada e o serviço se mostre disponível para ser utilizado.”



Ou seja, da própria definição da entidade gestora resulta que há dois requisitos cumulativos para a cobrança da mencionada tarifa: a disponibilidade do sistema público e a ligação ao mesmo dos sistemas prediais.



No caso concreto, não se verifica um dos pressupostos: a ligação à rede pública.



B
A exigência de contraprestação pública



2. Mas, ainda que assim não fosse, a ausência de uma “vantagem ou utilidade correspectivas” (Saldanha Sanches) continuaria a inquinar a actuação da autarquia nesta matéria.



Seja-me permitido relembrar, de modo epígrafe, que as tarifas que aqui estão em causa são preços públicos, que se configuram como uma espécie de taxas “que têm de característico, face às taxas em sentido estrito, o facto de, por um lado, corresponderem a bens ou serviços que não são por essência da titularidade do Estado, de acordo com a concepção dominante numa determinada sociedade, e, por outro lado, serem susceptíveis de avaliação em termos de mercado, de modo que o seu montante não é independente do critério objectivo por que se rege a formação dos correspondentes preços. Pelo que as tarifas se apresentam como taxas em que entre elas e as correspondentes contraprestações específicas se verifica não só uma equivalência jurídica, como é característica de todas as taxas, mas também uma equivalência económica” (sublinhados meus) — v. Casalta Nabais. Por um Estado Fiscal Suportável, Estudos de Direito Fiscal, pp. 582 e seg.s, Coimbra, Almedina, 2005.



Ou seja, não há tarifa sem contraprestação.



3. Mas, invocam esses serviços a possibilidade de as utilidades geradas pela cobrança da taxa serem futuras.



De facto, citando Teixeira Ribeiro (Noção Jurídica de Taxa, in Revista de Legislação e Jurisprudência, n.º 3727, ano 117-1985), afirma-se “(R)epare-se em que para serem devidas taxas nem sempre é precisa a efectiva utilização dos bens. É-o quando elas são pagas na altura em que os bens estão a ser utilizados, como nos serviços dos Registos, ou depois, de os bens terem sido utilizados, como nos tribunais. Mas não o é quando o pagamento das taxas precede a utilização, como é o caso das propinas e das licenças.”



A própria citação efectuada esclarece, nesse mesmo passo, qual o sentido desse deferimento: nos exemplos citados “(A) exigência das taxas continua então exclusivamente relacionada com a utilização dos bens, mas as conveniências da cobrança fazem com que elas sejam devidas pela simples possibilidade dessa utilização. E daí que, se os bens não forem depois utilizados — se os estudantes, por exemplo, não frequentarem as escolas onde se inscreveram — nem por isso haja direito à restituição das importâncias pagas“. (sublinhados meus)



3.1. Situações mais de fronteira poderiam ter sido invocadas ainda que também para concluir pela necessidade de contraprestação para que estejamos perante uma tarifa.



3.1.1. Assim, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 357/99, a propósito de uma taxa de urbanização, do qual se conclui que “o que se exige — e lhe retira a unilateralidade típica do imposto — é que ocorram vantagens ou utilidades correspectivas, de modo que os munícipes tenham a possibilidade jurídica de exigir a realização, em prazo razoável, das infra-estruturas urbanísticas, para além de poderem utilizar os equipamentos que a autarquia disponibiliza” (cit. por Saldanha Sanches, Poderes Tributários dos Municípios e Legislação Ordinária, in Fiscalidade, n.º 6, Lx., Instituto Superior de Gestão, 2001).



Precisando: “admite-se que a utilização do bem (voluntária ou obrigatória) se perfilhe como mera possibilidade, exigindo-se porém, que a imposição do pagamento continue exclusivamente relacionada com aquela utilização” (v. acórdão cit.).



3.1.2. Ou, ainda, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 76/88, de 21 de Abril, também citado pelos Serviços. Pronuncia-se pela constitucionalidade da taxa de saneamento (então em causa), no segmento em que se refere ao sistema de recolha resíduos sólidos. É, de facto, uma taxa, “porque a Câmara Municipal de Lisboa vem efectivamente proporcionando à população em geral o serviço, específico e divisível, de recolha, depósito e tratamento de lixos”.



Ou seja, “o Tribunal firmou orientação no sentido de que, ainda que nem todos os munícipes aproveitem desses serviços de recolha, depósito e tratamento de lixos, os mesmos podem ainda ser reconduzidos ao conceito de taxa por, na sua origem, lhes assistir o fundamento sinalagmático que é a característica distintiva desse tributo“, mas sem tal carácter sinalagmático não há taxa, mas imposto (v., por último, acórdão n.º 68/2007, do Tribunal Constitucional, in DR, II, de 5 de Março, com referência à abundante jurisprudência constitucional e à doutrina sobre o tema).



Aliás, foi já sublinhado no âmbito deste processo que o acórdão n.º 76/88, apresentado pelos serviços em defesa da sua actuação, concluiu no sentido de que a tarifa de saneamento em apreciação era um imposto na parte em que “se destina a custear a drenagem de águas residuais, por incidir sobre consumidores que não gozam desse benefício (…)“.



4. No caso concreto não há contrapartida pública que justifique a cobrança da tarifa de disponibilidade e o facto de o Município reunir condições para vir a proporcionar tal serviço não altera este dado.



Como não o altera o facto de ser obrigatória, para os proprietários, a ligação aos sistemas públicos de drenagem de águas residuais (v. infra).



C
Uma contraprestação possível no caso concreto



5. No decurso da instrução deste processo foi referido que este órgão do Estado aceitara a conformidade de uma taxa de disponibilidade num município em que também havia residências não ligadas ao sistema público de águas residuais, porque, quanto a estas e como contrapartida, o município assegurava o esvaziamento das fossas a título gratuito, isto é, sem custos acrescidos, e mediante previsão regulamentar.



Permita-me que esclareça melhor o sentido da minha sugestão.



6. A única forma pela qual julgo possível interpretar e aplicar o referido artigo 70.º do Regulamento Municipal sem redundar na sua ilegalidade e, mesmo, inconstitucionalidade (dada a reserva de lei existente em matéria de criação de impostos), é a que entende que a tarifa de disponibilidade é cobrada mesmo que não haja ligação à rede pública de saneamento, mas em que a entidade que procede à sua cobrança assegura aos munícipes abrangidos uma prestação de serviço análoga à que seria prestada como contrapartida da cobrança da referida tarifa, isto é, procede ao esvaziamento de fossas, sem encargos adicionais.



6.1. Este entendimento foi recentemente defendido junto deste órgão do Estado, com base num Parecer inédito do Prof. Freitas do Amaral, que exige ainda o requisito adicional de proporcionalidade entre o serviço prestado e o valor da tarifa cobrada, para legitimar a cobrança de tarifas de disponibilidade (ou seus equivalentes) àqueles cujos prédios não estão ligados à rede pública de saneamento.



6.2. Seguindo o Parecer, tais consumidores recebem “um serviço alternativo de tratamento de águas residuais, que consiste, essencialmente, na recolha e transporte ‘personalizado dos efluentes até às estações de tratamento ’ “.



Determinado que o custo unitário de uma operação de despejo de fossas sépticas e posterior transporte de efluentes nelas recolhidas até às estações de tratamento é equivalente ou superior aos valores dos serviços de tratamento normal, justifica-se que paguem esse serviço como se ele fosse prestado segundo o outro processo, porque tal solução “é a mais adequada e eficazmente protege os interesses jurídico-públicos da defesa do ambiente e da preservação da saúde pública, sendo que, como é sabido, a prossecução do interesse público é um padrão fundamental de orientação da conduta administrativa (artigo 266.º, n.º 1, da Constituição), traduza-se esta em actos gerais ou individuais“.



Na verdade, a solução consagrada, fazendo com que os consumidores de água cujos prédios não estão ligados à rede pública de saneamento paguem o serviço de tratamento com a periodicidade com o que o fazem os demais consumidores e não apenas só após a efectiva prestação do serviço, induz aqueles a, uma vez que já foram pagando antecipadamente o serviço, solicitar a sua efectiva prestação pelos [Serviços Municipalizados], conseguindo-se, desse modo, o resultado mais adequado para a salvaguarda da saúde pública e do ambiente“.



D
A obrigatoriedade de ligação aos sistemas públicos



7. O facto de ser obrigatória, para os proprietários, a ligação aos sistemas públicos de drenagem de águas residuais não legitima a actuação dos Serviços Municipalizados no sentido de usar a taxa de disponibilidade como sanção.



De facto, se os proprietários são, indiscutivelmente, os destinatários da obrigação de ligação dos sistemas de drenagem de águas residuais prediais ao sistemas público, são outros os meios adequados à obtenção do cumprimento de tal dever (v. artigos 9.º do Decreto-Lei n.º 207/94, de 6 de Agosto, 150.º do Decreto Regulamentar n.º 23/95, de 23 de Agosto, e 15.º do Regulamento Municipal).


Desde logo, o incumprimento de tal dever legitima a própria entidade gestora a proceder à ligação dos sistemas, debitando depois os custos ao proprietário, se necessário através de cobrança coerciva (v. artigos 26.º do Decreto-Lei n.º 207/94, de 6 de Agosto, 15.º, n.º 5 e 22.º do Regulamento Municipal). Acresce que, não se conformando, o proprietário incorre em procedimento contra-ordenacional, sujeitando-se ao pagamento de coima (v. artigos 6.º e 28.º do Decreto-Lei n.º 207/94, de 6 de Agosto, e 8.º e 77.º do Regulamento Municipal).


É que os diplomas que enquadram esta matéria — e ao abrigo dos quais o Regulamento Municipal foi elaborado — atribuem à entidade gestora o dever de “promover a instalação, substituição ou renovação dos ramais de ligação dos sistemas “esclarecendo que “os ramais de ligação devem considerar-se tecnicamente como partes integrantes das redes públicas de distribuição e drenagem, competindo à entidade gestora promover a sua instalação” (cfr. artigos 4.º, n.º 3, alínea h), do Decreto-Lei n.º 207/94, de 6 de Agosto, e 282.º do Decreto Regulamentar n.º 23/95, de 23 de Agosto).



Podem, pois, os Serviços Municipalizados lançar mão dos meios ao seu dispor para promover a ligação à rede pública, nomeadamente intimando o proprietário para que proceda a tal ligação e ponderando substituir-se-lhe se isso não acontecer.



Nesta última hipótese — ou seja, se os Serviços realizarem as obras e o proprietário não pagar as despesas daí decorrentes —, poderão sempre recorrer à cobrança coerciva dos encargos suportados, lançando mão do processo de execução fiscal regulamentado no Código de Processo e Procedimento Tributário, no âmbito do qual podem proceder à penhora do próprio imóvel. Não será, pois, um encargo incobrável, este que a entidade gestora assumirá se não lograr convencer o proprietário a efectuar por si as obras de ligação à rede.



III
CONCLUSÕES



Pelas razões que deixei expostas e no exercício do poder que me é conferido pelo disposto no artigo 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, RECOMENDO a V. Ex.ª que tome medidas para:







A. Que cesse de imediato a cobrança da tarifa de disponibilidade, nos casos em que não existe efectiva ligação dos sistemas prediais aos sistemas públicos de drenagem de águas residuais;



B. Que pondere a possibilidade de proceder ao esvaziamento de fossas sépticas, sem encargos adicionais para os particulares, caso em que seria admissível a cobrança da tarifa de disponibilidade, já que então há para os munícipes abrangidos uma prestação de serviço análoga à que normalmente é prestada como contrapartida da cobrança da referida tarifa.



Permito-me lembrar a V. Ex.ª a circunstância da formulação da presente Recomendação não dispensar, nos termos do disposto no artigo 38.º, n.ºs 2 e 3, da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, a comunicação fundamentada a este órgão do Estado da posição que vier a ser assumida em face das respectivas conclusões.



O Provedor de Justiça,
H. Nascimento Rodrigues