RECOMENDAÇÃO N.º 6/A/2007
(artigo 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril)


Entidade visada: Presidente da Câmara Municipal de Lisboa
Proc.º: R-1722/05
Área: A1
Data: 04-05-2007


Assunto: licenciamento – obras de remodelação – Casa do Arco – Rua da Praia do Bom Sucesso, n.ºs 37 – 47


 


I
DA QUEIXA



1. Encontra-se em instrução neste órgão do Estado o processo com a referência em epígrafe, organizado a partir de queixa apresentada, em Abril de 2005, pela sociedade “…………”.



2. Pretende a reclamante o licenciamento dos trabalhos de reconstrução da “Casa do Arco”, designação dada ao conjunto de três edificações sitas na Rua ………, em Lisboa, queixando-se, no essencial, das sucessivas objecções levantadas pela Câmara Municipal.



3. Analisados os resultados obtidos pela presente instrução, indicia-se um procedimento algo tergiversante por parte dos serviços da Câmara Municipal de Lisboa, com a suscitação de impedimentos de natureza arquitectónica que, em lugar de serem condensados e opostos de uma só vez, vão sendo apresentados em sucessão uns dos outros.



4. E, apesar de quanto tem vindo a ser promovido pelos serviços da Provedora de Justiça, bem como das diligências efectuadas pela queixosa, verifico que o assunto não sofreu, até ao presente, alteração significativa, motivo pelo qual entendi formular a presente Recomendação a V.Ex.a.



 


II
ANTECEDENTES



5. Na reclamação a este órgão do Estado, a queixosa manifestou-se contra as vicissitudes que resultavam de dissidências entre a Direcção Municipal de Gestão Urbanística e a Direcção Municipal de Conservação e Reabilitação Urbana a respeito do estado de degradação da denominada Casa do Arco: enquanto os técnicos da Divisão de Apoio Técnico e Segurança de Obras, atenta a situação de insegurança e risco de colapso, concluíam pela necessidade de demolição dos corpos laterais das edificações e do interior do edifício central, a DMCRU insistia na realização de obras de conservação.



6. Veio a ser ultrapassada a oposição, admitindo-se que a reclamante procedesse à reconstrução dos prédios em causa e, nessa operação, demolisse as edificações laterais e mantivesse a fachada norte da construção central.



7. Ficou, assim, sem efeito a sugestão que apresentáramos para que, em 15.12.2005, se realizasse nas instalações da Provedoria de Justiça uma reunião entre elementos de ambas as Direcções Municipais e representantes da queixosa, com o propósito de analisar o assunto e definir uma solução adequada, em face dos interesses públicos e privados em jogo.



i) O primeiro projecto – cobertura em mansarda “à francesa”



8. Com vista a concretizar a sua pretensão urbanística, a queixosa submeteu à apreciação da Câmara Municipal de Lisboa o pedido de licenciamento das obras de construção civil a efectuar nos edifícios do conjunto da “Casa do Arco”, o que deu origem aos processos nº 1623/EDI/2005 (bloco B – edifício central), nº 1624/EDI/2005 (bloco A – edifício poente) e nº 1625/EDI/2005 (bloco C- edifício nascente).



9. Encontrando-se o edifício central em vias de classificação, atento o seu valor arquitectónico, foi necessária prévia intervenção do Instituto Português do Património Arquitectónico, que se pronunciou favoravelmente sobre os projectos apresentados.



10. Segundo indicação do IPPAR, deveria fazer-se uma diferenciação entre o edifício central e as construções adjacentes. Assim, foi proposto o segundo piso, nos blocos A e C, com a configuração de mansarda “à francesa” e, no bloco B, projectou-se aquele piso ” à portuguesa”, com águas mais acentuadas – cfr. Anexo I.



11. Respeitou-se o número de pisos anteriormente existentes – rés-do-chão, 1º andar e cobertura – sendo esta última aproveitada agora para fins habitacionais.



12. Em Janeiro de 2006, a reclamante foi notificada, ao abrigo do disposto no art. 100.º, do Código do Procedimento Administrativo, da intenção da Câmara Municipal de Lisboa de indeferir os projectos de arquitectura relativos aos edifícios laterais, com fundamento no incumprimento do disposto no art. 50.º, nº 1, alínea a), do Regulamento do Plano Director Municipal de Lisboa (“RPDM”) (1).



13. Através de contactos informais com os serviços camarários (2) apurou-se que o indeferimento estaria ligado ao entendimento, segundo o qual a cobertura em mansarda corresponderia a um aumento da cércea, à luz do conceito estabelecido no RPDM. Tal interpretação foi também transmitida à reclamante.



14. Admitir-se-ia, porém, uma cobertura com aproveitamento habitacional, desde que esta apresentasse pendentes mais inclinadas e janelas em gateira, ao estilo designado por sótão “à portuguesa”.



ii) O segundo projecto – cobertura com pendentes inclinadas “à portuguesa”



15. Em face da posição da Câmara Municipal de Lisboa, e com o propósito de ver a operação urbanística licenciada com brevidade, a reclamante apresentou novos projectos de arquitectura, acolhendo as indicações a respeito do piso de cobertura – cfr. Anexo II.



16. A diferença relativamente aos projectos iniciais residia na inclinação do telhado, a partir da mesma fileira, implicando uma diminuição da área de utilização habitacional do piso superior.



17. Afirma a queixosa que os técnicos camarários terão expressado opinião favorável a este projecto em reunião de 30.03.2006. Essa posição seria confirmada em reunião de 12.07.2006, entre representantes da reclamante, técnicos do IPPAR e o gabinete do Senhor Director Municipal de Gestão Urbanística.



18. Os novos projectos relativos aos edifícios laterais, apresentados no âmbito dos processos de licenciamento nº 1624/EDI/2005 e nº 1625/EDI/2005, vieram também a recolher parecer favorável do IPPAR.



19. Não obstante, foram indeferidos por despacho de V.Ex.a, com data de 26.02.2007.



20. Para além de algumas imprecisões gráficas dos projectos, que a queixosa admitiu e se dispôs a corrigir, foi de novo a configuração do piso de cobertura que fundamentou, no essencial, a proposta de indeferimento, desta vez, por se considerar não cumprido o art. 50.º , nº 1, alínea i) do RPDM (3)



 
III
O PEDIDO DA RECLAMANTE



21. A queixosa, em face do indeferimento do projecto de arquitectura dos edifícios laterais da Casa do Arco, comunicou-nos que havia aceite reformular os pisos de cobertura dos edifícios da Casa do Arco na convicção de que assim obteria o licenciamento da operação urbanística.



22. Isto, apesar de se sentir prejudicada pelo arrastamento temporal do procedimento, pelos custos inerentes à alteração dos projectos e pela diminuição da área habitacional resultante da nova configuração da cobertura. Tendo cumprido todos os parâmetros que lhe foram sendo indicados pelos serviços da Câmara Municipal de Lisboa, sentiu-se defraudada ao receber a comunicação do indeferimento dos projectos.



23. Pretende, assim, retomar o seu projecto inicial de reconstrução dos edifícios laterais com mansarda à francesa, cuja proposta de indeferimento considerou infundada mas com a qual se conformara.



24. Adianta que o IPPAR, apesar de ter aprovado a segunda proposta, continua a sustentar que a cobertura em mansarda consubstancia o projecto mais adequado, em termos de preservação da qualidade arquitectónica da Casa do Arco.



25. Mais solicitou a minha intervenção junto de V.Ex.a, que administra agora o pelouro do urbanismo, no sentido de persuadir os competentes serviços camarários a aceitarem a pretensão urbanística expressa nos projectos inicialmente apresentados em sede dos processos de licenciamento nº 1623/EDI/2005, nº 1624/EDI/2005 e nº 1625/EDI/2005.



 


IV
APRECIAÇÃO



26. Detém-se esta análise na proposta inicial, com a cobertura amansardada, uma vez que é o projecto que a queixosa pretende ver aprovado e, relativamente ao qual, veio a concretizar o seu pedido de intervenção.



27. Cumpre, antes de mais, questionar a conclusão alcançada pelo Senhor Chefe de Divisão da Zona Ocidental, Arq. ……….., no despacho em que propõe o indeferimento do projecto inicial apresentado no processo nº 1625/EDI/2005, segundo a qual, a operação em causa não se trata de uma reconstrução com alteração mas sim de uma construção nova, situação confirmada através das peças desenhadas com as cores convencionais.



28. De acordo com o disposto no art. 7.º do RPDM, qualquer obra de reconstrução consiste em realizar de novo, total ou parcialmente, uma instalação já existente, no local de implantação ocupado por esta e mantendo, nos aspectos essenciais, a traça original.



29. Sem grande esforço se alcança resultado oposto àquela conclusão. A pretensão urbanística da queixosa caracteriza-se pela manutenção da implantação da Casa do Arco, com uma pequena alteração na fachada sul do edifício central, e pela reconstrução das edificações laterais mantendo o ritmo e a dimensão dos vãos das primitivas construções. Não se vê como possam surgir dúvidas quanto ao preenchimento da definição contida no art. 7º do RPDM. De todo o modo, o conceito de reconstrução que resulta da lei (art. 2.º, alínea c), do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação) é bem menos restritivo. Assim, ali se definem obras de reconstrução, como sendo as obras de construção subsequentes à demolição total ou parcial de uma edificação existente, das quais resulte a manutenção ou a reconstituição da estrutura das fachadas, da cércea e do número de pisos, o que, como se verá, é o presente caso.



30. Regressando à proposta de indeferimento, verifica-se que foi baseada no incumprimento do disposto no art. 50, nº 1, alínea a), do RPDM. A existência de construções vizinhas com uma cércea inferior seria, portanto, impeditiva da concretização do projecto.



31. Porém, esta fundamentação não se mostra adequada.



32. Como confirmado pelo então Director Municipal de Gestão Urbanística (oficio nº 431/INT/2006, de 27.01.2006), o estudo urbanístico desenvolvido pelo Departamento de Planeamento Urbano para o Quarteirão da Zona Oriental do Bom Sucesso (Rua da Praia do Bom Sucesso – Rua das Hortas -Avenida da Índia) prevê a reconstrução de vários edifícios térreos pertencentes à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e a sua ampliação para três pisos.



33. A este respeito, é de tomar em nota a apreciação do projecto feita na Informação 34732/INF/DZOC/GESTURBE/2005, de 13.12.2005, pelo técnico da Divisão da Zona Ocidental, o Arq…………:






“Assim, no que diz respeito à envolvente, são comuns as situações de aproveitamento de sótão, apresentando uma diversidade de modelos em que se inclui a presença do amansardado (…) Acresce ainda a questão de se tratar de uma ampliação e não ser actualmente defensável por aplicação da moda da cércea. No entanto, entre este conjunto de edifícios e um outro a Poente com três pisos e aproveitamento de sótão, existe um banda de edifícios com um piso, propriedade da Misericórdia de Lisboa para os quais conheço a existência de um estudo urbanístico que prevê a sua ampliação para três pisos, o que penso ser suficiente para justificar a aplicação da alínea a), do nº 1 do art. 50.º do RPDM.”



 


34. Não se afiguraria razoável, pois, a intenção de indeferir com base na existência de uma situação de facto que, desde já, se sabe que será alterada pela concretização da operação prevista no estudo urbanístico do Departamento de Planeamento Urbano.



35. E ainda que tal não sucedesse, sempre cumpriria ver se a alteração da cobertura nos termos pretendidos implicaria, efectivamente, o aumento da cércea das construções.



36. As edificações que originariamente compunham a Casa do Arco eram constituídas por rés-do-chão, primeiro andar e sótão. Para além de respeitar o número pré-existente de pisos, a proposta mantém o beirado de telhado existente nas fachadas norte e sul, modificando apenas a configuração da cobertura, projectada como mansarda “à francesa”, de modo a conferir condições de habitabilidade regulamentares em todos os pisos e a garantir o cumprimento do pé-direito mínimo (cfr. artigo 65.º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas – RGEU).



37. É questionável que o aumento da altura total da edificação, resultante da modificação da cobertura, possa corresponder a um acrescento da cércea, motivo que levou a considerar não ser respeitado o art. 50, nº 1, alínea a), do RPDM.



38. Nos termos do artigo 7.º do RPDM, a cércea é definida como a dimensão vertical da construção contada a partir do ponto da cota média do terreno no alinhamento da fachada até à linha superior do beirado ou platibanda ou guarda do terraço.



39. Observando-se os alçados propostos (Anexo 1), verifica-se que é mantido o beirado original do telhado, elevando-se a cumeada e conferindo-se a forma de mansarda à cobertura. Sem que ocorra alteração do beirado do telhado, não existirá fundamento para, nos termos da citada definição, considerar que ocorra um aumento da cércea.



40. Nem se entende, para efeitos do conceito regulamentar de cércea, que diferença possa existir entre a cobertura em mansarda e o sótão com gateiras, uma vez que ambos respeitam o beirado original. Aliás, a altura total da construção é superior precisamente no caso do sótão com águas mais inclinadas.



41. Importa também considerar que não se encontra no art. 79.º do RGEU qualquer distinção entre sótão, mansarda ou águas furtadas. Estes tipos de cobertura são equivalentes para efeitos de uso habitacional, estabelecendo-se que devem satisfazer todas as condições de salubridade previstas para os andares de habitação.



42. Igualmente, na Portaria nº 398/72, de 21 de Julho, onde são fixadas as condições mínimas de habitabilidade das edificações, se determina que: “Quando os sótãos, águas furtadas e mansardas possam ser utilizados para fins de habitação, nos termos do disposto no artº 79 do REGEU, será permitido que os respectivos compartimentos tenham o pé direito mínimo referido no nº 9 só em metade da sua área” (ponto 10).



43. De novo não é feita qualquer diferenciação entre o arranjo arquitectónico das coberturas que justifique um tratamento distinto por parte da Câmara Municipal de Lisboa.



44. Por último, e relativamente às áreas consolidadas de edifícios de utilização colectiva habitacional, no art. 50º, nº 1, al. i), do RPDM, admite–se a construção de sótãos para fins habitacionais desde que a sua altura não exceda os 3,5 m acima da cércea nem planos a 45º a partir das linhas superiores a todas as fachadas do edifício.



45. Não parece que, cumpridos os requisitos estabelecidos nesta norma, possa deixar de ser licenciada a reconstrução da Casa do Arco com a cobertura em mansarda, conforme pretende a reclamante.



V
CONCLUSÕES



46. Em face do exposto, não posso deixar de concluir nos seguintes termos:







i) a operação urbanística que a reclamante pretende ver licenciada consubstancia a reconstrução de um conjunto habitacional;



ii) não se mostra razoável que a reconstrução da Casa do Arco possa ser inviabilizada com base no desrespeito da moda da cércea, atento o teor do estudo urbanístico do Departamento de Planeamento Urbano atrás referido;



iii) mesmo que assim não fosse, a proposta de construção da cobertura amansardada não constitui um aumento da cércea, atendendo ao conceito vertido no RPDM;



iv) o aproveitamento habitacional dos pisos de cobertura é admitido pelo RPDM para a área em que se localiza a Casa do Arco.



v) a intervenção pretendida tem por objectivo a reconstrução de um elemento do património habitacional com significado histórico e arquitectónico que se encontra em gravíssimo estado de degradação, dotando-o de condições de habitabilidade em conformidade com as normas actuais.



Assim, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril (Estatuto do Provedor de Justiça), RECOMENDO ao município de Lisboa, superiormente representado por V.Ex.a., que aprove a operação urbanística de reconstrução da Casa do Arco, nos termos pretendidos pela queixosa.



Dignar-se-á V.Ex.a comunicar-me, para efeitos do disposto no artigo 38.º, n.º2, da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril (Estatuto do Provedor de Justiça), a sequência que a presente Recomendação vier a merecer.




O Provedor de Justiça,
H. Nascimento Rodrigues


 





Notas de rodapé:


(1) De acordo com esta norma, em áreas consolidadas de edifícios de utilização colectiva habitacional, tipo de solo urbano onde se situa a Casa do Arco, é permitido o nivelamento da cércea pela moda das cérceas da frente edificada do lado do arruamento onde se integra o novo edifício, no troço de rua entre duas transversais ou no troço de rua que apresente características morfológicas homogéneas


(2)  Com o então Director Municipal de Gestão Urbanística, Arq. ……….., com a Senhora Directora de Departamento de Gestão Urbanística I, Arqta. ………… e com o Senhor Chefe de Divisão da Zona Ocidental, Arq. ……………..


(3) É admitida a construção de sótão para fins habitacionais, arrecadações ou salas de condomínio, desde que a sua altura não exceda em qualquer caso e no ponto máximo: 3,5 m acima da cércea; Planos a 45º passando pelas linhas superiores de todas as fachadas do edifício.


««« voltar atrás