RECOMENDAÇÃO N.º 19/A/2006
[art. 20º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril]



Entidade visada: Presidente do Conselho de Administração do Hospital de São Sebastião, E.P.E.
Proc.º: R-2727/01
Data: 20-12-2006
Área: A4


Assunto: Enfermeiros. Continuidade dos cuidados de enfermagem. Sobreposição de turnos.


 


I
– Introdução –


1. Como é do conhecimento de V. Exa., o Sindicato dos Enfermeiros Portugueses requereu a minha intervenção sobre a questão de, no Hospital que V. Exa. dirige, a organização dos turnos de enfermagem não prever um período destinado à passagem de informação entre os enfermeiros, pelo que o tempo utilizado para este efeito não tem sido qualificado como trabalho efectivo.



2. Em cumprimento do dever de audição prévia estabelecido no art. 34º da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril (Estatuto do Provedor de Justiça), foi conhecida a posição desse Hospital sobre o assunto, que se traduz essencialmente no seguinte:




a) O Hospital de São Sebastião beneficia de “um estatuto jurídico especial, que lhe confere a possibilidade de adoptar métodos de gestão empresarial“, o que conduziu a que “o problema da passagem de turno tivesse sido encarado de modo diferente daquele que é habitual nos hospitais públicos portugueses“.



b) Foi adoptado pelo Hospital um sistema de incentivos, aplicável ao pessoal de enfermagem vinculado por contrato individual de trabalho, em cujas condições de atribuição se prevê o registo sistemático no processo clínico da informação relevante para o acompanhamento dos doentes. O sistema praticado permite “a correcta transmissão da informação necessária ao bom desempenho dos serviços“.



c) Aos enfermeiros oriundos do Hospital de São Paio Oleiros que se mantêm integrados no quadro destinado ao pessoal com relação jurídica de emprego público é reconhecida a faculdade de passarem para o regime do contrato individual de trabalho e, desse modo, beneficiarem do aludido sistema de incentivos. Não o tendo feito, não podem exigir que a organização do Hospital se molde “aos interesses de um grupo minoritário a quem estão garantidas todas as condições de trabalho inerentes à sua condição de funcionários públicos“.



d) A Circular Normativa n.º 18/92, da Direcção-Geral dos Hospitais, invocada pelo Sindicato reclamante, não determina a obrigatoriedade da sobreposição de turnos, apenas sugere essa via, quando seja necessária.



3. A instrução do processo compreendeu, igualmente, a auscultação da Administração Regional de Saúde do Centro, da Ordem dos Enfermeiros e da Secretaria-Geral do Ministério da Saúde que, com fundamentação substancialmente coincidente, afirmaram a necessidade da sobreposição de turnos como forma de garantir a continuidade dos cuidados de enfermagem, defendendo, do mesmo passo, que o correcto registo escrito de todos os dados clínicos no processo do doente não substitui a transmissão verbal de informação no momento da passagem de turno.



4. Não obstante os esforços desenvolvidos e, designadamente, a comunicação do entendimento que as entidades auscultadas manifestaram sobre o assunto, manteve esse Hospital a posição inicialmente transmitida. 


I
– Apreciação –



5. É chegado, pois, o momento de apreciar a reclamação que me foi dirigida. E importa, para tanto, começar por proceder a um adequado enquadramento da questão. Ora, inversamente do que a posição de V. Exa. sugere, o problema não se dirime no foro do regime laboral aplicável, antes tem na sua génese uma questão de boa prática dos cuidados de enfermagem, ou seja, das respectivas leges artis.



É imperioso encarar os cuidados de enfermagem como uma componente essencial dos cuidados de saúde, que enfrenta hoje uma crescente exigência no que respeita à qualificação técnica, científica e deontológica da actividade, a que se tem tentado dar resposta através de uma também mais exigente regulamentação da profissão. Como se reconhece no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 104/98, de 21 de Abril, “…as modificações operadas nas competências exigidas aos enfermeiros e, por isso mesmo, no seu nível de formação académica e profissional têm vindo a traduzir-se no desenvolvimento de uma prática profissional cada vez mais complexa, diferenciada e exigente“, donde decorre que “os enfermeiros constituem, actualmente, uma comunidade profissional e científica da maior relevância no funcionamento do sistema de saúde e na garantia do acesso da população a cuidados de saúde de qualidade, em especial em cuidados de enfermagem“.



Por esta ordem de razões, foi criada, pelo diploma citado, a Ordem dos Enfermeiros e aprovado o respectivo Estatuto, o qual contém a regulamentação da actividade de enfermagem quanto à respectiva deontologia profissional. Trata-se, pois, de matéria a que o legislador conferiu dignidade equivalente à que já gozavam o exercício e a regulamentação de outras profissões de prestação de cuidados de saúde, facto que, apesar de corresponder a uma opção recente, não pode ser presentemente ignorado.



6. A questão da transmissão da informação clínica entre profissionais de enfermagem surge, na regulamentação deontológica, numa dupla vertente: como um direito e como um dever.



Dispõe o art. 75º do Estatuto da Ordem dos Enfermeiros (1) que constitui direito dos membros efectivos da Ordem “a informação sobre os aspectos relacionados com o diagnóstico clínico, tratamento e bem-estar dos indivíduos, famílias e comunidades ao seu cuidado“.



Por outro lado, é dever do enfermeiro, “no respeito do direito ao cuidado na saúde ou na doença … assegurar a continuidade dos cuidados, registando fielmente as observações e intervenções realizadas“, bem como “manter-se no seu posto de trabalho enquanto não for substituído, quando a sua ausência interferir na continuidade de cuidados” [art. 83º, alíneas d) e e)].



7. A interpretação destes preceitos pela Ordem dos Enfermeiros leva-a a considerar (2)indispensável que, para além do registo escrito, a transmissão de informações sobre os cuidados de enfermagem que foram prestados e os que deverão ser a cada doente” seja feita também “pessoalmente, de forma presencial e verbal, entre enfermeiros“.



Explica a Ordem que “com esta prática, obter-se-á uma transmissão mais completa e contextualizada das informações clínicas que sejam necessárias de difundir em relação ao quadro clínico de cada doente” porquanto “a transmissão pessoal do estado clínico dos doentes autentica de bondade os registos escritos de enfermagem, conferindo-lhes segurança e certeza em relação ao seu estado de saúde“. Sublinha também que “a observação presencial de doentes por intermédio de dois enfermeiros que se sucedem em turnos de trabalho é indispensável para o aquilatar do seu estado de saúde e como forma de garantir a idónea continuidade dos cuidados que se tenham de prestar“.



8. Esta posição da Ordem dos Enfermeiros, defendida no uso das competências que lhe estão legalmente atribuídas em matéria da definição do exercício da enfermagem e de garante do respeito pelas regras de deontologia profissional (3), encontra acolhimento na formulação legal dos preceitos deontológicos supra enunciados, pois estes não limitam a garantia de continuidade dos cuidados de enfermagem ao registo escrito da informação clínica: não só o dever de assegurar tal continuidade tem um conteúdo mais amplo do que o registo dos dados clínicos, como este não está igualmente circunscrito à forma escrita.



Por outro lado, a conjugação deste dever com o de o enfermeiro se manter no seu posto de trabalho enquanto não for substituído, quando, como é o caso dos serviços hospitalares, a sua ausência interferir na continuidade dos cuidados (4), legitima que se considere que o enfermeiro só está em condições de ser substituído quando o profissional de enfermagem que vai continuar os cuidados que aquele prestou se encontre na posse de toda a informação necessária, transmitida de forma fiel. E, como sublinha a Ordem dos Enfermeiros, complementar a informação escrita com a transmissão pessoal e oral da informação é condição imprescindível de garantia da fiabilidade da informação.



9. A relevância da transmissão verbal de informação clínica entre enfermeiros não se circunscreve ao plano deontológico. Na verdade, sendo exigida pela necessidade de garantia da continuidade dos cuidados de enfermagem, esta passagem de informação assume uma importância específica no plano mais geral da qualidade dos cuidados de saúde, de que, aliás, as regras deontológicas são tributárias.



É nessa perspectiva que a Administração Regional de Saúde do Centro pondera o assunto, ao defender (5) que “o tempo para a passagem de turno de enfermagem é essencial para uma prestação de cuidados de qualidade, não obstante a existência de registos de dados clínicos em suporte de papel ou informático, atenta a importância do contacto verbal entre enfermeiros que se sucedem no tratamento dos doentes” (6), orientação que aquela ARS transmitiu a esse Conselho de Administração.



Esta posição foi secundada, mais recentemente, pela Secretaria-Geral do Ministério da Saúde.



10. Assente que a prestação de cuidados de enfermagem de qualidade e no respeito pelos deveres deontológicos exige que se verifique a transmissão verbal de informações entre enfermeiros que se sucedem, a questão subsequente é a de saber como se dá resposta a essa necessidade em termos da organização da prestação laboral destes profissionais.



Até porque, nos termos do art. 75º, n.º 2, alínea c), do Estatuto, os enfermeiros têm o direito de usufruir de condições de trabalho que garantam o respeito pela deontologia da profissão e pelo direito do utente a cuidados de enfermagem de qualidade.



11. E o certo é que – convém notar – não nos deparamos, nesta sede, com diferenças de relevo entre os regimes público e privado, ou seja, entre o aplicável aos funcionários e agentes da Administração Pública e aos vinculados por contrato de trabalho. Por esta razão e porque se trata, como se demonstrou, de garantir a prestação de cuidados de enfermagem de qualidade e no respeito pelas normas deontológicas, não está em causa, ao invés do que tem vindo a ser sublinhado por V. Exa, uma questão atinente a um grupo minoritário de funcionários e ao seu regime especial de trabalho.



12. Na resposta ao problema enunciado, importa, antes de mais, afastar o recurso às figuras do trabalho suplementar ou extraordinário e da tolerância para a conclusão de tarefas não terminadas na hora estabelecida para o termo do período normal de trabalho diário, esta última prevista no art. 163º, n.º 2, do Código do Trabalho, porquanto, em qualquer dos casos, estamos perante figuras jurídicas marcadas pela excepcionalidade ou pelo carácter não regular das situações abrangidas.



Assim, o trabalho suplementar só pode ser prestado em caso de acréscimos eventuais e transitórios de trabalho ou por motivos de força maior ou similares (art. 199º, ns. 1 e 2, do Código do Trabalho), assim como para a prestação de trabalho extraordinário por parte de funcionários e agentes se exige a verificação de necessidades de serviço imperiosas, motivadas pela acumulação anormal ou imprevista de trabalho e outras similares (art. 26º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 259/98, de 18 de Agosto). Para além disso, num e noutro regime fixaram-se limites máximos, diários e anuais, da prestação de trabalho para além do período normal de trabalho (art. 200º do Código do Trabalho e art. 27º do Decreto-Lei n.º 259/98).



Por seu turno, o art. 163, n.º 2, do Código do Trabalho, dispõe que “há tolerância de quinze minutos para as transacções, operações e serviços começados e não acabados na hora estabelecida para o termo do período normal de trabalho diário, não sendo, porém, de admitir que tal tolerância deixe de revestir carácter excepcional, devendo o acréscimo de trabalho ser pago quando perfizer quatro horas ou no termo de cada ano civil“.



13. Assim sendo, e uma vez que estamos perante uma necessidade permanente e regular, a única via de corresponder à exigência deontológica acima exposta será a da sobreposição de turnos, ou seja, a organização dos turnos de modo a que se verifique um período em que os enfermeiros – os que terminam e os que iniciam o turno – se encontrem o tempo suficiente para poderem transmitir a informação clínica pertinente. Resposta que será válida tanto para os profissionais que se encontram vinculados pelo regime do contrato individual de trabalho, como para os que mantêm o regime aplicável aos funcionários e agentes.



Note-se que se trata de tempo inserido no período normal de trabalho e que, por essa razão, deve ser contado para efeitos dos limites da duração do trabalho.



Foi este o procedimento sugerido na Circular Normativa n.º 18/92, de 30.7.92, da Direcção-Geral dos Hospitais, cujo carácter não vinculativo – em que esse Hospital se tem escudado para não adoptar a via aqui preconizada – perdeu hoje relevância, em face da consagração legal posterior dos já enunciados deveres deontológicos.



E foi esta também a solução encontrada por um número considerável dos serviços hospitalares nacionais, que compreendem, tal como o Hospital de São Sebastião, diversos regimes laborais. Por exemplo, nas “Normas para a Elaboração de Horários de Enfermagem”, em vigor no Hospital do Barlavento Algarvio, E.P.E., refere-se expressamente que “existe sobreposição de dois turnos, de 30 minutos, por forma a garantir uma passagem de serviço que favoreça a transmissão completa da informação relativa aos doentes, que se encontra integrada no tempo total de trabalho diário do enfermeiro“.



Se há estabelecimentos hospitalares em que o período de sobreposição é de apenas 15 minutos, como sucede no Centro Hospitalar de Setúbal, E.P.E., já no Hospital Garcia de Orta, E.P.E., por exemplo, este período foi aumentado de 20 para 30 minutos, por se considerar que desse modo se adequaria a duração da passagem de turno às necessidades efectivas dos respectivos serviços, com vista a “criar condições para assegurar com maior eficácia a continuidade de cuidados“.



14. Senhor Presidente, creio que deixei suficientemente demonstrado que a questão em causa não reside na natureza do regime de trabalho aplicável aos enfermeiros, nem encontra solução através de um sistema de incentivos, como o que vigora no Hospital de São Sebastião, através do qual se valoriza tão só o registo escrito dos dados clínicos.



Resta-me, agora, acrescentar que das razões expostas decorre igualmente a irrelevância da natureza jurídica do Hospital e do respectivo modelo de gestão. Na verdade, se a sobreposição de turnos é imposta não só pelo cumprimento de deveres deontológicos no exercício profissional da enfermagem, como pelo respeito do direito dos doentes à prestação de cuidados de saúde de qualidade, é exigência que se mantém qualquer que seja a natureza do serviço de saúde. E foi por este motivo que muitos outros estabelecimentos hospitalares com idêntica natureza à do Hospital de São Sebastião (7) reconheceram, como se viu, a necessidade de, para além do registo escrito dos dados clínicos, se assegurar a passagem pessoal de turno, adaptando a tanto a respectiva organização dos turnos.


Em face dos motivos expostos e no exercício do poder que me é conferido pela disposição contida no art. 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril,







Recomendo a V. Exa. que determine a reorganização dos turnos de enfermagem do Hospital de São Sebastião, de modo a que compreendam um período de sobreposição, destinado à transmissão da informação clínica relevante entre os enfermeiros que se sucedem nos turnos.


Queira V. Exa, em cumprimento do dever consagrado no art. 38º, n.º 2, do Estatuto aprovado pela Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, dignar-se informar sobre a sequência que o assunto venha a merecer.



O Provedor de Justiça
H. Nascimento Rodrigues


 





Notas de rodapé:


(1) Adiante designado apenas por Estatuto. Como se referiu, foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 104/98, de 21 de Abril.


(2) Ofício dirigido a este Órgão do Estado em 25.7.2005, com a refª 6227 (CD/E-05), de que foi remetida cópia a V.Exa. através do ofício da Provedoria de Justiça n.º 13530, de 1.8.2005.


(3) Art. 3º, n.º 2, alíneas a), b) e d) do Estatuto.


(4) A ressalva da lei justifica-se porque há situações em que a prestação de cuidados de enfermagem não se faz em regime de continuidade.


(5) Ofício n.º 6282, de 7.5.2002, dirigido à Provedoria de Justiça.


(6) Sublinhado não existente no original.


(7) Como é o caso dos já referidos Hospital do Barlavento Algarvio, E.P.E., Centro Hospitalar de Setúbal, E.P.E. e Hospital Garcia de Orta, E.P.E., mas também, por exemplo, do Hospital de Santa Maria, E.P.E. e do Instituto Português de Oncologia Francisco Gentil – Centro Regional de Oncologia de Coimbra, E.P.E.


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