Ministro da Justiça
P-13/99
N.º 28/B/99
1999.07.23
Área:Açores

Assunto:MENORES – TRÁFICO – ALTERAÇÃO LEGISLATIVA – OBRIGATORIEDADE DE DECLARAÇÃO MÉDICA – REGISTO DO NASCIMENTO – (VENDA DE CRIANÇAS NOS ACORES).

Sequência: Sem resposta.

I-Introdução

A propósito da divulgação de notícias que davam conta de casos de entrega de crianças, pelos pais naturais a terceiros, ocorridos fora de processos de adopção (ou em desrespeito pelas respectivas normas), foi suscitada a questão do procedimento de registo de nascimento, e dos respectivos requisitos. A matéria objecto do presente processo relaciona-se, como é bom de ver, com a necessidade/conveniência da alteração da disposição do Código do Registo Civil que regula os requisitos especiais do registo de nascimento artigo 102º do Código do Registo Civil (adiante, C.R.C.), aprovado pelo Decreto-Lei nº 131/95, de 6 de Junho, com alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 36/97, de 31 de Janeiro, e pelo Decreto-Lei nº 120/98, de 8 de Maio.
O debate gerado à volta desta questão teve, desde logo, a virtualidade de revelar uma evidência: o regime jurídico do registo civil não confere a necessária garantia de veracidade das declarações de nascimento registadas. Por outro lado, a pronta colaboração dos senhores conservadores do registo civil de Angra do Heroísmo e de Praia da Vitória – a qual deve ser louvada -, permitiu a audição das entidades que mais de perto se têm visto envolvidas na polémica da contraposição entre, por um lado, a desejável desburocratização do processo de registo civil de nascimento e, por outro, a necessária veracidade dos factos sujeitos ao registo civil.

A presente comunicação resulta da verificação da necessidade de serem introduzidas alterações ao normativo que disciplina a matéria do registo civil de nascimento; e não foi precedida de audição prévia porquanto considerei que o cumprimento deste dever colidiria com a urgência na consagração das alterações legislativas que entendo recomendar.
Em 28/06/99, esteve na Extensão da Provedoria de Justiça da Região Autónoma dos Açores o Senhor Dr. A…, conservador do registo civil de Angra do Heroísmo. Na reunião que com ele mantive estiveram ainda presentes o Dr. B…, adjunto do meu Gabinete, e o Dr. C…., assessor responsável pela Extensão da Provedoria de Justiça da Região Autónoma dos Açores.
O Senhor Dr. A… fez uma exposição sobre as implicações, em termos de registo civil, dos casos de entrega de crianças alegadamente ocorridos na ilha Terceira, nos Açores. Aproveitou, ainda, para descrever um conjunto de situações que considerou merecedor de especial ponderação e que, no seu entendimento, justificaria a realização de alterações no normativo que regula o registo civil. Na sua exposição, o Senhor Dr. A… abordou as questões do registo de nascimento, da paternidade presumida e da revisão de sentenças de divórcio estrangeiras.
Referindo-se ao artigo 102º do Código de Registo Civil (requisitos especiais do registo de nascimento) o senhor conservador sustentou a insuficiência dos requisitos cujo cumprimento é imposto, e defendeu a conveniência da imposição da obrigatoriedade de apresentação de declaração médica atestando o nascimento a registar.
Transcrevo, na íntegra, o teor da exposição entregue em mão pelo Senhor Dr. A…, na parte relativa ao artigo 102º do Código do Registo Civil.
“Na generalidade dos Países civilizados, do registo de nascimento consta a menção de que o registado nasceu – este é o facto principal que se pretende registar – facto, que é naturalmente certificado pelo médico que assistiu ao parto.
Juntam-se alguns modelos de registos estrangeiros de nascimento.
Este deve ser o procedimento normal, sempre que em Portugal ocorrer um nascimento num hospital, seja do Estado, seja particular.
Parece, pois, que o artº.102º do C.R.C. subordinado ao título (Requisitos Especiais) devia prescrever que a declaração de nascimento se fundamentasse na declaração verbal do declarante, e no certificado médico, se necessário, incluindo outros documentos, como sejam, os Bilhetes de Identidade dos pais, ou outras informações, que adiante se referem, tratando-se, sobretudo, dos casos de omissão do registo, ou quando o nascimento ocorre fora dos estabelecimentos hospitalares.
Pode acontecer que, algum, ambos os pais, ou outra pessoa, compareçam na Conservatória para declarar um nascimento que ocorreu fora de qualquer Estabelecimento Hospitalar, e o Conservador tenha fundadas dúvidas sobre se o facto é verdadeiro, e se os pais declarados são, ou não, os pais biológicos do registando.
Neste caso, apesar de a Lei (nºs 2 e 3) do artº 102º do C.R.C, já prescrever a atitude que deve ser tomada, não seria despiciendo referir que ao Conservador, no caso de justificados dúvidas, se deparar a possibilidade de recorrer ao pároco da residência dos pais, ao presidente da Casa do Povo, ou da Junta de Freguesia, normalmente, pessoas que, pelo contacto directo e contínuo com as populações, têm conhecimento das situações reais.
Neste caso, seria de alterar o nº 4 do referido artigo, pois tais diligências necessitam de certo tempo, facto que não é compatível com o dever de lavrar o registo a seguir à declaração.
O recurso a estas entidades, para dissipar fundadas dúvidas do Conservador, pode tornar-se também necessário, mesmo que o declarante do nascimento exiba o certificado médico, pois que este apenas tem por objectivo certificar o facto do nascimento.
A não obrigatoriedade de apresentar tal certificado, na prática, permite pôr em dúvida que o nascimento tenha, de facto, ocorrido.
Isto é muito grave, mesmo que não ultrapasse o campo da mera possibilidade.
O registo tem como objectivo, a prova de um facto verídico, pelo que tem de estar acima de qualquer suspeita.

Em resumo: se a Lei tornasse obrigatória a apresentação na Conservatória de um certificado de nascimento, passado pelo hospital e assinado pelo médico que assistiu ao parto, ou que o possa comprovar, reduzir-se-ia o número de casos de omissão de registo, em que pode estar subjacente a intenção dolosa do tráfico de bebés.
Hoje, a esmagadora maioria dos nascimentos ocorrem em hospitais do Estado ou Clínicas particulares, pelo que não pode considerar-se uma exigência da Lei, difícil de cumprir, mas, simplesmente, a constatação de que o nosso País progrediu em matéria de assistência sanitária das populações mesmo quanto àqueles extractos economicamente mais débeis.
Aliás, seria, apenas, acompanhar o que se faz no estrangeiro”.

Na mesma reunião, o Senhor Dr. A… defendeu, ainda, a necessidade de serem alteradas as disposições relativas à paternidade presumida, em especial a constante do artigo 119º, nº 4, do C.R.C., e manifestou a opinião de que deve ser atribuído “às sentenças proferidas pelos tribunais estrangeiros, o mesmo tratamento que se concede aos tribunais eclesiásticos” (vide ofício nº …, dirigido ao senhor Chefe de Gabinete de Sua Excelência o Ministro da Justiça).
No dia 07/07/99, o assessor na Extensão da Região Autónoma dos Açores deslocou-se à conservatória do registo civil de Angra do Heroísmo tendo recebido do Senhor Dr. A…. documentação relativa às três situações que expusera anteriormente, na reunião de 28/06/99.
Ainda em 07/07/99, o meu assessor estabeleceu contacto telefónico com o Senhor Dr. D… Moniz, conservador do registo civil da Praia da Vitória. O Senhor Conservador afirmou conhecer as declarações do senhor conservador de Angra do Heroísmo mas informou discordar do seu teor, designadamente por não considerar necessária a introdução de alterações à redacção das disposições do C.R.C. que regulam a matéria do registo de nascimento.
O senhor conservador ficou de enviar para a Extensão da Provedoria de Justiça da Região Autónoma dos Açores comunicação escrita sobre este assunto; tal veio a suceder a coberto do ofício nº …. Deixo transcrita a parte desta comunicação relevante para a economia da presente Recomendação:
“Quanto ao que motivou o contacto de V.Exª, a anunciada “venda de bébés”, o mesmo é inteiramente desconhecido nesta Conservatória do Registo Civil de Praia da Vitória, afigurando-se que, independentemente da existência ou não, nesta Ilha ou noutro qualquer ponto do território da República Portuguesa, de condutas ilícitas, a questão é mais mediática que real.
Na sequência de notícias surgidas na Comunicação Social, o Sr. Conservador do Registo Civil de Angra do heroísmo manifestou publicamente, via audiovisual, parece no sentido de dever ser exigível um documento aquando da declaração de nascimento verbal feita na Conservatória.
Com todo o respeito pelo direito à diferenças, que muito prezamos, discordamos dessa exigência de mais um documento, um papel, em tempo de desburocratização, e que pouco ou nada adianta na concretização dos quatro princípios de direito registral: publicidade, unicidade, credibilidade, veracidade (Fortunato Leite de Faria, Factos e Actos do Registo Civil, 1986, pág. 13).

Desde, pelo menos, o Código do Registo Civil aprovado pelo Decreto nº 22018 de 22/12/1932 que o regime aplicável às declarações do nascimento é, na essência, o actual, no sentido de que apenas se baseia na declaração verbal, sem suporte documental (artº 233º desse Código).
É certo que, ao tempo, era exigível, em todos os registos, a intervenção de testemunhas – artº 210º ibidem.
Esta exigência de intervenção de testemunhas mantém-se no C.R.C. de 1958 (D.L. 41967 de 22/11/58), no seu artº 107º, e na versão inicial do C.R.C. aprovado pelo D.L. 47678 de 5/5/67 (artº 58º).
Porém, já na revisão deste Código pelo D.L. 49054 de 12/6/69 a intervenção de testemunhas deixa de ser obrigatória, excepto nos assentos de casamento lavrados por inscrição – artº 58º, 59º e 76º, nº 1 do Código então revisto.
E mesmo neste caso deixa de ser obrigatória a partir do C.R.C. de 95, aprovado pelo D.L. 131/95 de 6/6, alterado pelo D.L. 36/97 de 31/01.
Ou seja, todo o percurso do Direito Registral Português tem sido no sentido de simplificar, dispensando formalidades e prova consideradas desnecessárias.
E são-no, de facto. Podemos asseverar, tanto quanto nos é dado saber, que em quase 25 anos de função apenas nos recordamos dum único caso de falsas declarações aquando da declaração de nascimento.
Ora, se tivermos em conta uma média de 200 nascimentos/ano (é superior), teremos que em 5.000 nascimentos declarados um enfermava de falsidade quanto às declarações, ou seja, 0,02%.
Não cremos merecer a pena introduzir novas formalidades por caso(s) sem expressão.
Uma das características do Estado de Direito é o exercício da livre actuação do cidadão, o que implica necessariamente a possibilidade de violação de regras éticas e legais de conduta.
De resto, os documentos escritos também podem ser falsificados (mesmo impressos hospitalares e assinaturas de licenciados em medicina).
E ainda teríamos de criar regras para os casos em que não houvesse intervenção clínica (nascimentos em casa; no meio de transporte, etc.).
Desconhecemos o direito comparado (à excepção do americano e canadiano, apenas pelo contacto com certidões).
Ora, mesmo aí se prevê casos em que o (a) assistente ao parto possa ser outrem que não médico ou enfermeiro.
Além disso, iríamos ter a exigência de prova documental aquando da declaração de nascimento atempada que estabelece a filiação.
Porém, quer a perfilhação quer o reconhecimento da maternidade, que estabelecem a filiação em fase posterior, apenas dependeriam das declarações dos próprios – artºs 125º e segs. e 130º e segs. C.R.C. Ou estar-se-á a pensar em testes ao ADN?…
De resto, a exigência de certificado médico aquando do óbito, e a sua dispensa no registo de nascimento, não podem ser comparadas sem mais.
No óbito desaparece uma pessoa jurídica, que mais nenhum acto irá praticar, ainda que eventuais herdeiros irão, eventualmente, abrir a herança.
Porém, logo após o nascimento, uma assistente social relacionará os recém-nascidos, e os Serviços Materno-Infantil da área irão contactar a família; ao chegar-se à idade escolar dar-se-á pela existência ou não do cidadão; o mesmo quando tiver de ser recenseado; e para ir exercendo quaisquer direitos médico-sociais, será exigível prova documental.
Não é, pois, fácil a existência de cidadão-fantasma.
E quanto às possíveis falsas declarações que possam surgir aqui e além, terão de ser apreciadas e punidas nos termos legais, muito para além do mero âmbito registral”.
Importa destacar que ambos os senhores conservadores, de Angra do Heroísmo e de Praia da Vitória, descreveram outras situações merecedoras de uma especial ponderação e, eventualmente, justificativas de alterações na redacção das respectivas disposições legais. Estas questões estão a ser tratadas em processo autónomo.

II-Exposição de Motivos

Se o registo civil é tido como o cadastro geral dos cidadãos , compreende-se que ele seja imperativo relativamente ao nascimento e à filiação porquanto – na expressão do Decreto de 16 de Maio de 1832, de MOUZINHO DA SILVEIRA – “atesta e legitima as épocas principais da vida civil dos indivíduos” (artigo 69º). Também é esta circunstância que justifica que os factos cujo registo é obrigatório só podem ser invocados depois de registados (artigo 2º, C.R.C.).
Fora os casos excepcionais regulados na secção II (Filiação) do Capítulo II (Actos de registo em especial) do C.R.C., a filiação fica registada no assento de nascimento, uma vez que o nome completo, a idade, o estado, a naturalidade e a residência habitual dos pais constituem requisitos especiais do registo de nascimento artigo 102º, nº 1, alínea e), C.R.C.. Ou, dito de outra forma: “o registo de nascimento, em geral, tem por objecto o assentamento de dois factos sujeitos a registo obrigatório – o nascimento e a filiação do registado” , nos termos do disposto no artigo 1º, nº 1, alíneas a) e b), do C.R.C.; mas, ainda assim, “é evidente que qualquer deles está subordinado a disciplina legal própria” .

Em Portugal, os registos públicos pessoais preocuparam-se desde sempre com três espécies de assentos: nascimentos, casamentos e óbitos .
Sobre a história do registo civil português, bem como sobre a sua relevância social e as vicissitudes políticas que o determinaram, não será despropositado reler o preâmbulo do Decreto-Lei nº 41.967, de 22 de Novembro, diploma que aprovou o Código de 1958. Aí é referido, para além do carácter relativamente recente do registo civil enquanto serviço público dotado de organização autónoma, que:
“Foi a Igreja que primeiro criou, para os fiéis, e com o simples intuito de facilitar a prova dos estados de família ligados a certos sacramentos (o baptismo e o matrimónio) e de documentar o cumprimento de sufrágios fúnebres, um registo do estado civil das pessoas, sob a forma de assentos paroquiais (cfr., entre nós, as Constituições diocesanas de 25 de Agosto de 1536, promulgadas pelo Infante D. Afonso, Cardeal de S. João e de S. Paulo e Arcebispo de Lisboa).
Só bastante mais tarde o Estado reconheceu vantagem de tornar extensiva a todos os indivíduos a prática posta em vigor pela Igreja relativamente aos católicos e bem assim a necessidade de aproveitar a iniciativa eclesiástica, subordinando a realização do registo a princípios jurídicos uniformes, que assegurassem a sua regularidade e fiscalização.
Data precisamente de 16 de Maio de 1832 o decreto que em Portugal proclamou a existência do registo civil para todos os indivíduos.
Às providências revolucionárias de Mouzinho da Silveira outras se sucederam sobre a matéria do registo, dentro ainda do período do liberalismo (…); mas foram o Código Civil (de 1867) e o Decreto de 28 de Novembro de 1878 os diplomas que, antes do advento do regime republicano, mais desenvolvidamente cuidaram do novo regime.
(…)
Foi profunda a reforma introduzida (…) pelo Código de Registo Civil de 18 de Fevereiro de 1911. O novo diploma estabeleceu o princípio da obrigatoriedade da inscrição no registo civil dos factos a ele sujeitos; estendeu a obrigatoriedade a todos indivíduos, fosse qual fosse a sua confissão religiosa; confiou a realização do registo a funcionários privativos; e, para garantir a efectivação dos princípios proclamados na Lei, não hesitou em fixar a precedência obrigatória do registo civil sobre as cerimónias religiosas correspondentes e em cominar algumas sanções pesadas para os infractores desse regime de prioridade legal.
(…)Ao mesmo tempo, porém, que conseguia lançar as bases definitivas do Registo Civil, o Código de 1911 acusava as deficiências próprias de um diploma de brusca e profunda transição. Assim se explica a larga série de providências que houve necessidade de tomar logo em seguida à sua publicação.
(…)
Esta legislação dispersa, que alterou em muitos pontos o diploma de 1911, determinou, a breve trecho, a necessidade de reunir em novo Código toda a regulamentação do Registo Civil: e assim nasceu, após a tentativa fracassada do Decreto nº 15.380, de 17 de Abril de 1928, o Código do Registo Civil de 22 de Dezembro de 1932″.
As alterações legislativas sucessivamente introduzidas ao Decreto-Lei nº 41.967, de 22 de Novembro (Código de 1958), bem como a publicação de novos códigos , trouxeram-nos até ao actual Código do Registo Civil, aprovado pelo Decreto-Lei nº 131/95, de 6 de Junho.
Chegados a este ponto, importa aludir, em traços necessariamente gerais, às disposições que regulam a matéria da declaração e registo de nascimento.
Sem embargo do nascimento dever ser declarado em qualquer conservatória do registo civil (artigo 96º, C.R.C.), o respectivo registo é lavrado na conservatória da área da naturalidade do registando (artigo 101º). O conteúdo deste registo vem definido no artigo 102º, cujos termos importa ter presentes:

Artigo 102º
Requisitos especiais

1. Além dos requisitos gerais, o assento deve conter os elementos seguintes:
a) O nome próprio e os apelidos;
b) O sexo;
c) A data de nascimento, incluindo, se possível, a hora exacta;
d) A freguesia e o concelho da naturalidade;
e) O nome completo, a idade, o estado, a naturalidade e residência habitual dos pais;
f) O nome completo dos avós;
g) As menções exigidas por Lei em casos especiais.
2.Os elementos são fornecidos pelo declarante, devendo ser exibidos, sempre que possível, os documentos de identificação dos pais.
3.O funcionário que receber a declaração deve averiguar a exactidão das declarações prestadas, em face dos documentos exibidos, dos registos em seu poder e das informações que lhe for possível obter.
4.A realização das averiguações necessárias não deve impedir que o assento seja lavrado em acto seguido à declaração.
Desde logo, o assento de nascimento realiza, pelo menos em parte, um direito proclamado na Constituição, o direito à identidade pessoal. Como refere ANTUNES VARELA , este direito diz respeito “à definição da posição do indivíduo dentro da sociedade familiar em que se integra”. E aquilo que o C.R.C. designou por requisitos especiais – e que corresponde, grosso modo, aos elementos constitutivos do assento de nascimento – vem, do mesmo passo, dar cumprimento não só àquele direito ao nome mas, igualmente, ao direito à historicidade pessoal .
Relativamente à relevância do nome enquanto manifestação do direito à identidade pessoal, o mesmo autor realça a sua importância enquanto “elo importantíssimo de ligação da pessoa àqueles que a conceberam e (…), ao mesmo tempo, enquanto um instrumento de identificação fundamental do indivíduo dentro da comunidade política a que pertence” e conclui que “a ligação da pessoa aos seus progenitores assenta, não só sobre a obrigatoriedade da declaração de nascimento prescrita nas leis do registo civil (art.s 2º e 96º e segs. do Cód. Reg. Civil de 1995), mas também sobre a norma do direito civil que regula (embora deficientemente, a partir da infeliz alteração legislativa do Código Civil com a reforma de 77: art. 1875º do Cód. Civil) a composição do nome do filho” .

O direito à historicidade pessoal, porém, ultrapassa a mera questão do nome, e releva muito para além do conhecimento do nome dos progenitores. Na vertente historicidade pessoal o direito à identidade pessoal de um indivíduo não pode ser desligado do “direito ao reconhecimento em todos os lugares da sua personalidade jurídica” (artigo 6º, da Declaração Universal dos Direitos do Homem). Daí que a alteração arbitrária dos elementos que compõem a história de um indivíduo representa uma intolerável privação de um direito fundamental.
Daí que a invocação, em defesa da simplificação do registo, da necessidade de desburocratizar a Administração tenha que encontrar sempre como limite a veracidade dos elementos a que se dá publicidade. E não se pode perder de vista que o princípio da desburocratização, tendo embora dignidade constitucional, é um princípio organizatório que visa consagrar a celeridade, a economia e a eficiência das decisões da Administração, e não pode constituir fundamento para nenhuma diminuição injustificada de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
No caso em apreço, porém, o debate sobre a burocratização do procedimento de registo de nascimento através da imposição da apresentação de uma declaração médica atestando o nascimento a registar não parece fazer sentido; com efeito, tanto no Hospital de Santo Espírito de Angra do Heroísmo , como em diversos outros estabelecimentos hospitalares do Continente que contactei , é sempre entregue às mães respectivas um boletim de saúde infantil, do qual constam todos os elementos identificativos do recém-nascido, incluindo a filiação deste. Curiosamente, o modelo da Direcção Regional de Saúde da Secretaria Regional da Saúde e Segurança Social dos Açores contém, no verso da capa, a seguinte recomendação para os pais: levem o Boletim quando forem registar a vossa filha/o à Conservatória do Registo Civil.
Foi possível apurar que, para além do boletim de saúde infantil, o Hospital de Santo Espírito de Angra do Heroísmo:
-Elabora sempre um relatório de internamento, que entrega às utentes;
-Quando há parto, entrega igualmente um cartão de recém-nascido;
-Quando é solicitado, entrega também um boletim de internamento.
Mais: o serviço de obstetrícia envia aos centros de saúde a que pertencem as utentes uma informação relativa a cada parto com a identificação das mães.
Falar em aumento da burocracia para defender a desnecessidade de passagem de declaração médica atestando o nascimento – e a sua entrega/exibição na respectiva Conservatória do Registo Civil – não faz, pelos motivos tenho vindo a expor, qualquer sentido. Mas devo frisar que, ainda que assim não fosse, a segurança jurídica que esta formalidade assegura sempre justificaria a sua ponderação, ainda que viesse a aumentar a burocracia do processo.
Faço notar, ainda, que a actual redacção do artigo 102º, nº 3 parece já permitir que o funcionário que recebe a declaração verbal de nascimento se auxilie da declaração médica escrita, situação que, segundo apurei, ocorre na grande maioria das situações. A inovação que recomendo corresponde, portanto, a conferir o carácter de obrigatoriedade a um procedimento que tem vindo a ser seguido em muitas conservatórias do registo civil portuguesas. E, da mesma forma, não julgo aceitável falar-se na possibilidade das declarações serem falsificadas uma vez que esta susceptibilidade (a qual, em abstracto, é universal porquanto respeita a todos os actos relativos, ou não, ao registo civil) não pode condicionar a busca da consagração da veracidade do registo nem, tão pouco, pode impedir a garantia do exercício de um direito fundamental dos indivíduos, o da sua identidade pessoal.
Argumentar, diferentemente, com a possibilidade do parto ocorrer sem assistência médica (o que inviabilizaria a passagem da declaração) também não se me afigura razoável, por duas ordens de razões:
– Porque o médico pode passar a declaração a posteriori (a exemplo, aliás, do que ocorre nas situações de óbito);
-Porque pode ser suprida a inexistência de declaração médica (através de testemunhas, ou permitindo-se a averiguação oficiosa pelo Conservador, o que, como atrás referi, já é permitido).
Não posso, igualmente, deixar de refutar a alegação do senhor conservador do registo civil de Praia da Vitória, de que em cerca de vinte e cinco anos de funções apenas detectou um caso de falsas declarações relativas ao nascimento. É que a preocupação central que me leva a recomendar alterações aos requisitos do registo de nascimento não se prende, como julgo ter deixado claro, com os casos de falsas declarações que, com maior ou menor facilidade, podem ser detectadas; diferentemente, são os casos em que não existe qualquer hipótese de verificação do nascimento – porque, por exemplo, este nunca foi declarado – que constituem o objecto principal da minha intervenção.

Não se pode perder de vista que o regime hoje vigente possibilita, por um lado, que seja registado o nascimento de qualquer pessoa (permitindo-se não só que pessoas sem nenhuma ligação ao recém-nascido figurem no registo como pais naturais como, até, que sejam registado o nascimento de uma criança que nunca existiu) e, por outro, não assegura que todos os nascimentos ocorridos em Portugal sejam declarados para efeitos de registo civil.
Acresce que as situações que pude observar em Angra do Heroísmo, bem como aquelas que me foram relatadas relativas a todo o território nacional, e que motivaram a abertura do processo de averiguações no âmbito do qual formulo a presente recomendação – cuja instrução, esclareça-se, ainda decorre – revelou não só a abstracta permissividade do regime português de registo civil de nascimento como diversas situações claramente indiciadoras de nascimentos não declarados perante o registo civil e de prestação de falsas declarações, designadamente quanto à filiação. Importa, pois, deixar claro que tanto a existência de nascimentos não registados, por um lado, como a veracidade dos elementos efectivamente declarados, por outro, são insusceptíveis de averiguação. Por esta razão, os dados relativos aos registos falsos não têm fiabilidade e não podem, obviamente, sustentar a manutenção do actual regime do registo de nascimento. Este é, aliás, um dos principais motivos que me levam a formular a presente recomendação.

Não obstante o que deixei dito, devo manifestar a minha sensibilidade relativamente à preocupação de desburocratizar a Administração; mas, neste caso, o caminho parece ser não o de suprimir a apresentação de documentos que atestem a ocorrência dos factos cujo registo se busca mas, o que é substancialmente diferente, o da adopção de um sistema que desobrigue os pais ou familiares da competência de declararem o nascimento – como acontece, ao que julgo saber, em alguns países nórdicos, nos quais os estabelecimentos hospitalares comunicam oficiosamente os nascimentos que aí ocorrem às conservatórias, à segurança social, à câmara municipal, e às demais entidades públicas interessadas. Este procedimento, como se constata, tem a virtualidade de compatibilizar a pretendida desburocratização com a necessária segurança jurídica.
Devo acrescentar que o regime previsto nas alíneas d) e e) do nº 1 do artigo 97º do C.R.C. (a declaração de nascimento compete, obrigatoriamente e sucessivamente, às seguintes pessoas: ao director do estabelecimento onde o parto ocorreu ou aos donos da casa onde o nascimento se verificou; ao médico ou à parteira assistente e, na sua falta, a quem tiver assistido ao nascimento) já aflora este princípio de declaração oficiosa, pese embora somente nas situações em que os pais, as pessoas por eles incumbidas e os parentes não tenham já declarado verbalmente o nascimento perante o registo civil.
Todavia, este regime não cumpre o desígnio de garantir, com absoluta certeza, que todos os nascimentos ocorridos em Portugal sejam declarados e passem a constar do registo civil. Deve, pois, consagrar-se, a par da imposição de todos os nascimentos serem declarados ao registo civil, a obrigatoriedade de os estabelecimentos onde os partos ocorrerem, ou das pessoas que a eles assistirem, assegurarem, em todos os casos sem excepção, a comunicação ao registo civil.

III-Conclusões

Pelas razões que deixei expostas e no exercício do poder que me é conferido pelo disposto no artigo 20º, nº 1, alínea b), da Lei nº 9/91, de 9 de Abril,RECOMENDO:
a alteração das pertinentes disposições do Código do Registo Civil por forma a:

A. Que seja tornada obrigatória a exibição de declaração médica/do estabelecimento hospitalar atestando o nascimento, para efeitos de registo civil do respectivo nascimento;
B. Que, quando o nascimento tiver ocorrido sem assistência médica/fora de estabelecimento hospitalar, seja tornada exigível a declaração do médico que primeiro assistiu ao recém-nascido;
C. Que seja consagrada, em todas as situações sem excepção, a obrigatoriedade de os estabelecimentos onde os partos tiverem ocorrido, ou das pessoas que a eles tiverem assistido, comunicarem aqueles nascimentos ao registo civil
As alterações legislativas que recomendei resultam da circunstância de estar suficientemente demonstrada, nesta fase da instrução do processo, a necessidade de serem introduzidas alterações legislativas no regime jurídico do registo civil de nascimento; não obstante, e quanto aos restantes aspectos, prossegue na Extensão da Provedoria de Justiça da Região Autónoma dos Açores a averiguação das situações de entrega de crianças, pelos pais naturais a terceiros, fora dos competentes processos de adopção.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel