Presidente da Câmara Municipal da Póvoa do Varzim

R-841/93
Rec. nº 36/B/95
Data:04.09.95
Área: A1

Assunto:URBANISMO E OBRAS – OBRAS ILEGAIS – LICENÇA – OFICINA DE REPARAÇÃO DE AUTOMÓVEIS – CÂMARA MUNICIPAL – PODERES DE EMBARGO E DEMOLIÇÃO – DESPEJO SUMÁRIO DAS EDIFICAÇÕES.

Sequência:

I-EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS

A) Dos factos

Em razão de queixa que me foi dirigida sobre a laboração de oficina de reparação de automóveis, pintura e bate-chapas, sita no lugar de Gestrins, freguesia de Balazar e das diligências instrutórias efectuadas no âmbito do processo à margem referenciado, tomei conhecimento do seguinte:

1.Em reunião de 08.07.1992 a Câmara Municipal da Póvoa do Varzim deliberou notificar o Senhor… para proceder ao encerramento daquela oficina no prazo de 30 dias.

2.Por deliberação de 12.08.92, essa Câmara Municipal determinou o despejo sumário do prédio ocupado pelo Semhor… por motivo de desconformidade entre a utilização licenciada – barracão destinado a depósito de alfaias agrícolas – e a utilização exercida – oficina de reparação de automóveis, pintura e bate-chapas -, nos termos previstos no art. 165º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto nº 38.382, de 7 de Agosto de 1951, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 44 258, de 31.03.1962.
3.As ordens da autarquia não foram, porém, acatadas pelo destinatário, tendo sido levantado auto de notícia por contra ordenação, nos termos previstos no art. 54º, nº 1, al. c) do Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro, em 17.06.1994.

4.Por despacho de 07.03.95 do Vereador em exercício, o Senhor…. foi notificado para apresentar projecto de legalização do edifício no prazo de 90 dias.

B) Do direito

5.Passo a enunciar o teor das conclusões de parecer elaborado pelo Chefe de Divisão de Serviços Jurídicos que ao merecer a concordância do Senhor Vereador em exercício, veio a fundar a instauração de processo por contra-ordenação, mas também o não exercício por essa Câmara Municipal dos poderes que lhe são conferidos pelo art. 165º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas:

” Face a todo o vindo de expor, afigura-se-nos que o artigo 165º.do Regulamento Geral das Edificações Urbanas se encontra revogado pelas disposições do Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro e, por conseguinte, as Câmaras Municipais não têm hoje competência para ordenar e promover o despejo sumário de prédios que se encontrem a ser utilizados sem alvará de licença ou em desacordo com o uso nele fixado. “

6.Deve entender-se, todavia, que o art. 165º do citado Regulamento não foi revogado, ao menos na íntegra, por força do elenco de normas que o Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro consubstancia. Ver-se-á por que razões.

6.1.As disposições do R.G.E.U. não podem ter-se por expressamente revogadas por não existir qualquer norma legal no corpo do Decreto-Lei nº 445/91, ou no de outro diploma posterior ao do citado Decreto-Lei, que disponha sobre a cessação da sua vigência.
A referência à revogação de “todas as disposições contrárias ao presente diploma” que se contém no art. 73º do Decreto-Lei nº 445/91 não assume qualquer conteúdo útil pois que, tratando-se de disposições em contrário, sempre se deveriam ter por tacitamente revogadas.
A revogação tácita ocorrerá quando se verifique incompatibilidade entre as soluções consagradas na lei precedente e na lei subsequente ou quando da lei nova resulte o propósito de regular toda a matéria da lei anterior (revogação global).

6.2.Os artigos 1, 2º e 14º do R.G.E.U. vieram a inspirar a redacção dos artigos 1º e 2º do Decreto-Lei nº 166/70, de 15 de Abril, que reproduzem as soluções nele contempladas.

6.3.O Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro veio fixar o novo regime do licenciamento municipal das obras particulares determinando expressamente a cessação da vigência do Decreto-Lei nº 166/70, de 15 de Abril, excepto para efeitos do disposto no art. 72º, nº 1, do novo corpo legislativo.

6.4.Estatui o art. 162º do R.G.E.U. na redacção do Decreto-Lei nº 61/93, de 3 de Março, que
” a execução de quaisquer obras em violação das disposições deste Regulamento, que não seja já objecto de sanção por via do disposto no Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro, é punida com coima de 5000$ a 500 000$”.
Também o parágrafo 3º do art. 162º foi alterado por forma a restringir a aplicação da sanção ali cominada às condutas não abarcadas pelo regime sancionatório que o Decreto-Lei nº 445/91 prescrevera.
Parece infundada a asserção categórica enunciada no douto parecer em análise segundo a qual seria manifesto que o Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro, pretenderia regular toda a matéria sobre a qual, a nível de infracções urbanísticas e suas consequências, dispunham os artigos 160º e seguintes do Regulamento Geral das Edificações Urbanas.
Contém o Regulamento Geral das Edificações Urbanas, compreendidas nos artigos 15º a 159º do diploma, normas substantivas de ordem técnica, que não foram assimiladas pelo corpo do Decreto-Lei nº 445/91.
Que assim o é, comprova-o o cotejo das disposições dos diplomas referenciados, a par da expressa remissão que o art. 3º, nº 5 do Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro, na redacção do Decreto-Lei nº 250/94, de 15 de Outubro efectua para as normas do Regulamento Geral das Edificações Urbanas.
Assim, subsistem tipificadas como contra-ordenações certas condutas por desconformidade com as prescrições técnicas ora enunciadas, mantendo plena vigência, a par dos arts. 4º, 7º, 9º, 10º, 12º, 15º a 159º do R.G.E.U. o art. 160º e o art. 161º, na redacção que lhe foi conferida pelo art. 5º do Decreto-Lei nº 463/85, de 4 de Novembro.
De entre as condutas que o Decreto-Lei nº 445/91, de 15 de Outubro tipifica como contra-ordenações, merecem especial referência as contempladas no art. 54º, nº 1, alíneas a), b) e c), por se reportarem a comportamentos que colidiam com disposições do R.G.E.U. ora revogadas e, como tal, não integrarem a previsão legal do corpo do art. 162º, na actual redacção.
Ainda que o legislador não fizesse qualquer referência ao regime sancionatório que o Decreto-Lei nº 445/91 veio estabelecer, certo é que o âmbito de aplicação do art. 162º sofreu alterações, em razão da cessação da vigência de diversas disposições iniciais do R.G.E.U. em particular as que têm por fim delimitar os trabalhos cuja execução depende de aprovação municipal.

7.Entendo ser também significativo o facto de o legislador não ter procedido, em concomitância com as alterações introduzidas no art. 162º, à derrogação expressa do art. 165º do R.G.E.U., restringindo o alcance desta disposição, no que toca aos poderes de demolição e embargo atribuídos às Câmaras Municipais.

7.1.O poder de ordenar a demolição e embargo de obras ilegais que não hajam merecido aprovação municipal ou tenham sido executadas com inobservância de prescrições estabelecidas no Regulamento Geral das Edificações Urbanas foi atribuído às Câmaras Municipais pelo art. 165º do citado Regulamento.

7.2.Mantém a jurisprudência, não obstante a publicação e vigência do Decreto-Lei nº445/91, o entendimento segundo o qual o art. 165º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas confere às Câmaras Municipais o poder de ordenar a demolição e o embargo de obras a que se reporta o ponto que antecede.
Os poderes de demolição e embargo que o art. 165º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas confiou às Câmaras Municipais subsistem, em particular quando o seu exercício seja motivado pelo incumprimento das prescrições técnicas acima identificadas, cuja aplicabilidade o novo regime legal não afastou.
O mesmo sucederá, por certo, nas situações de licenciamento ilegal de obras pelo município, em razão de obras executadas ao arrepio das prescrições que o R.G.E.U. consigna terem merecido aprovação municipal.

7.3.Os artigos 57º, nº 1 e 58, nº 1 do Decreto-Lei nº 445/91, de 15 de Novembro habilitam o Presidente da Câmara a determinar o embargo e a demolição das obras executadas em violação das disposições do mesmo diploma, à excepção de obras promovidas pela administração directa do Estado.
O escopo daqueles preceitos abrange as obras efectuadas sem prévia licença, em desrespeito da licença concedida ou com preterição de normas legais e regulamentares aplicáveis.
De resto, nos termos do art. 53º, nº 2, al. l), do Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março, na redacção dada pela Lei nº 18/91, de 12 de Junho, assistia já ao Presidente da Câmara Municipal competência para ordenar a demolição de quaisquer obras, construções ou edificações efectuadas sem licença, com inobservância das condições dela constantes ou de normas regulamentares.
A faculdade de ordenar o despejo sumário é também concedida ao Presidente da Câmara Municipal, pelo art. 53º, nº 2, al. m), no que toca a prédios cuja expropriação por utilidade pública haja sido declarada, cuja demolição haja determinado, nos termos consignados no art. 53º, nº 2, al. l) e ainda quanto aos prédios cuja demolição ou beneficiação tenha sido determinada pela Câmara Municipal, nos termos previstos no art. 51º, nº 2, al. d) e pelo art. 165º, parágrafo 7º do R.G.E.U..

7.4.No que tange às competências da Câmara Municipal, o Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março, não faz qualquer referência expressa aos poderes de demolição, embargo e despejo com a amplitude que resulta da previsão do art. 165º do R.G.E.U. Não obstante, integra no leque das respectivas competências urbanísticas a faculdade de ordenar, precedendo vistoria, a demolição total ou parcial – ou a beneficiação – de construções que ameacem ruína ou constituam perigo grave para a saúde e segurança das pessoas e comete-lhe o exercício dos poderes que lhe sejam conferidos por lei (art. 51º, nº 4, al. i), do citado Decreto-Lei).
De entre os poderes atribuídos por lei contam-se as faculdades de determinar a demolição e o embargo administrativo das obras executadas em desconformidade com os artigos 1º a 7º e o despejo sumário dos ocupantes de edificações ou parte das edificações utilizadas sem as respectivas licenças ou em desconformidade com as mesmas.

7.5.A competência camarária para embargo e demolição de obras ilegais e para ordenar o despejo de edificações não licenciadas caberá ao Presidente da Câmara Municipal – e não à Câmara Municipal – nos casos de pequenas casas, até dois pavimentos, e de quaisquer construções ligeiras sobre cujo projecto não haja incidido aprovação municipal (art. 165º § 7º do R.G.E.U).
Assim, a manter-se o sentido útil desta disposição, há-de entender-se que em tais situações assiste em exclusivo ao Presidente da Câmara o poder de determinar o embargo, a demolição e o despejo sumário.

7.6.A titularidade por parte dos órgãos da autarquia local Câmara Municipal e Presidente da Câmara Municipal, de poderes de conteúdo idêntico não parece ter suscitado, seja na doutrina seja na jurisprudência, objecções firmes sobre a compatibilidade das previsões legais atributivas de tais poderes.

7.7.De resto, a faculdade de promover o despejo sumário nas situações de utilização não licenciada é confiada pelo legislador ao Presidente da Câmara nos casos discriminados no § 7º do art. 165º do R.G.E.U, e às Câmaras Municipais, tão só nos demais casos.
Da circunstância do Decreto-Lei nº 445/91 não prever o poder de determinar o despejo sumário dos inquilinos e demais ocupantes das edificações ou parte das edificações utilizadas sem as respectivas licenças ou em desconformidade com o título de utilização não deverá ser entendida como preclusão da competência que o art. 165º confiou às Câmaras Municipais.
Melhor interpretação sustentará que o silêncio legal se funda na titularidade e exercício de tais poderes pelas Câmaras Municipais, como meio de reposição da legalidade.
A afirmação da extinção daquele poder implicará destituir o município de um importante instrumento de que foi dotado por lei, de forma a assegurar a reintegração da ordem jurídica violada. MIGUEL ANTUNES GUIMARÃES (em estudo publicado na Revista de Administração Local, nº 130, Julho Agosto 1992, ano 15, p.p. 449 e segs.) aduz que as prescrições normativas do R.G.E.U. mantêm a sua plena validade em tudo o que não for prejudicado pelo novo regime jurídico de obras particulares. Considera serem aplicáveis ao embargo administrativo os trâmites processuais previstos no Decreto-Lei nº 445/91, o que não prejudicará a plena actualidade do despejo sumário previsto no art. 165º, que se harmoniza com o previsto nos arts. 57º e 58º do Decreto-Lei nº 445/91. Posição semelhante é sustentada por PEREIRA COSTA ao afirmar que “continuam em vigor o art. 165º (parte final do corpo do preceito) e seus §§ 4º a 7º e 168º do RGEU, nos termos dos quais pode ser ordenado o despejo sumário dos inquilinos e demais ocupantes das edificações utilizadas sem as respectivas licenças ou em desconformidade com elas ou cuja demolição tenha sido decretada ou ordenada” (Regime Jurídico de Licenciamento de Obras Particulares Anotado, Coimbra, 1993, p. 179).

8.Em parecer publicado in D.R. 2ª série, nº 287, de 14.12.1994, (Proc. nº61/94) o Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República esclarece ” a revogação tácita apenas se verifica na medida da contraditoriedade: a lei precedente só é ab-rogada até onde for incompatível com a nova lei; onde tal contraditoriedade não tenha lugar é possível a coexistência e a compenetração da lei anterior parcialmente revogada com a lei nova modificadora “.

CONCLUSÕES:

1.Assim, não obstante a revogação tácita de certas normas e segmentos de normas do R.G.E.U., mantêm-se em vigor os artigos 165º a 168º do Decreto-Lei nº 38.382, de 7 de Agosto de 1951, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 44 258, de 31 de Março de 1962.

2.O art. 167º é aplicável enquanto parâmetro de aferição da necessidade e oportunidade do exercício dos poderes de demolição pela Câmara Municipal e como norma complementar do disposto no art. 58º, nº 1, do Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro, no que concerne ao uso das competências confiadas ao Presidente da Câmara Municipal.

3.Ao invés, poderão ter caducado as normas dos parágrafos 1º, 2º e 3º do art. 165º do R.G.E.U. atento o teor do art. 57º nºs 2 a 4 e 59º do Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro.

4.Não existe um conflito directo e substancial entre os preceitos dos dois diplomas apreciados, designadamente entre os arts. 57º e 58º do Decreto-Lei nº 445/91, o corpo e os parágrafos 4º, 5º, 6º do artigo 165º e os artigos 167º e 168º do R.G.E.U., antes tais disposições se harmonizam e complementam.

5.Às regras de fixação de competência ora enunciadas acrescem os arts. 51º, nº 2, al. d), 51º, nº 4, al. i), 53º, nº 2, als. l) e m) do Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março, com as alterações posteriormente introduzidas, não se estabelecendo, em meu entendimento, qualquer relação de conflitualidade entre as normas dos diversos diplomas em causa.

6.Nem o legislador, ao traçar o regime das obras particulares, terá pretendido regular toda a matéria disciplinada pelo Regulamento Geral das Edificações Urbanas, estabelecendo um novo sistema de princípios completo e autónomo.

7.Estando em causa normas atributivas de competência perigoso será concluir que o facto de o legislador não retomar a atribuição de tais faculdades às Câmaras Municipais ao dispor acerca do regime do licenciamento das obras particulares, terá por alcance a revogação tácita das normas que habilitam as Câmaras Municipais a promover a demolição, o embargo e o despejo sumário.

8.A competência dos órgãos da Administração é de ordem pública. O órgão administrativo não pode prescindir ou renunciar ao uso dos poderes que lhe são legalmente conferidos para a prossecução das atribuições da pessoa colectiva a que pertence.

9.Acresce que a Administração não poderá alterar o conteúdo ou a repartição da competência estabelecidos por lei – a competência é imodificável (v.d. FREITAS DO AMARAL, Diogo, in Curso de Direito Administrativo, 2ª edição, Vol. I, pp. 608). Devo, pois, concluir que o corpo do art. 165º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas não foi revogado pelas disposições constantes do Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro.

10.Este meu entendimento escora-se nas considerações que antecedem, sendo de resto confirmado pelo legislador, quando, em sede de desenvolvimento do regime da propriedade horizontal, no que tange às relações entre condóminos e terceiros, estabeleceu que “para efeitos de aplicação do disposto nos artigos 9º, 10º, 12º e 165º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto-Lei nº 38 382, de 7 de Agosto de 1961, é suficiente a notificação do administrador do condomínio” (v.d. art.11 do Decreto-Lei nº 268/94, de 25 de Outubro).

De acordo com o exposto, no exercício dos poderes que me são conferidos no artº 20º, nº 1, alínea b) da Lei nº 9/91, de 9 de Abril, RECOMENDO:

A) Que, caso a notificação camarária de 07.03.1995 não haja sido acatada pelo Senhor …, a Câmara Municipal da Póvoa do Varzim determine o despejo sumário da edificação por ele ocupada, nos termos previstos no art. 165º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto-Lei nº 38 382, de 7 de Agosto de 1951.

B) Que a Câmara Municipal da Póvoa do Varzim exerça os poderes que lhe são conferidos pelo art. 165º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, promovendo o despejo sumário dos ocupantes das edificações ou parte das edificações utilizadas sem as respectivas licenças ou em desconformidade com o uso licenciado.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel