Exm.º Senhor
Presidente da Junta Autónoma de Estradas
Número:46/A/96
Processo.R-2754/92
Data:11.04.1996
Área: A1

Assunto:EXPROPRIAÇÃO POR UTILIDADE PÚBLICA – AQUISIÇÃO CONVENCIONADA – INDEMNIZAÇÃO – CONTEMPORANEIDADE – MORA NO CUMPRIMENTO – RESPONSABILIDADE CIVIL CONTRATUAL – JUROS DE MORA

Sequência:Acatada

I-Dos Factos

1. A Sra… solicitou a intervenção do Provedor de Justiça alegando para tanto que:

a) em 2 de Julho de 1992, foi celebrada com a JAE acordo de expropriação de dois terrenos de que é comproprietária (parcelas n.ºs 192 e 193 das Freguesias de Trouxemil e Torre de Vilela) formalizado através de escritura de expropriação.

b) nos termos daquele acordo, a JAE comprometeu-se a efectuar o pagamento da quantia indemnizatória ali estipulada no prazo de trinta dias a contar da data da celebração da aludida escritura, o que não foi cumprido, já que o pagamento da quantia dividenda só veio a efectuar-se em 2 de Dezembro de 1992.

c) atento tal incumprimento, e tendo sido instada pela reclamante a pagar os correspondentes juros moratórios, veio a JAE, em 26 de Janeiro de 1993, reconhecer o direito dos expropriados a tal pagamento.

d) não obstante, e posteriormente, invocou a existência de dificuldades orçamentais que a impediriam de honrar o compromisso assumido.

e) Interpelado V.ª Ex.ª, pela Provedoria de Justiça, a pronunciar-se quanto à questão em apreço, e focando as dificuldades sentidas no pagamento de juros tendo em consideração as disponibilidades orçamentais, invocou a existência de “uma certa burocracia para vencer” e a prossecução do superior interesse público que caracteriza a actividade da JAE, admitindo, no entanto, que “não haverá certamente base legal para a recusa do pagamento de juros” (ofício n.º …).

II-Dos Fundamentos

2. Atente-se, desde logo, no facto de o direito à propriedade privada, consagrado no art.º 62.º da Constituição da República Portuguesa, não fazendo, embora, parte do elenco dos “direitos, liberdades e garantias”, gozar do respectivo regime naquilo em que reveste natureza análoga à daqueles, conforme se alcança do disposto no art.º 17.º desta Lei Fundamental.

2.1. O n.º 2 do art.º 62.º da CRP, ao exigir para a expropriação por utilidade pública o pagamento de “justa indemnização”, entende-a como elemento integrante do próprio acto de expropriação proibindo, por conseguinte, o seu protelamento arbitrário.

2.2. Não posso, assim, deixar de concordar com a doutrina exposta por GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, quando defendem que “A ideia de justa indemnização comporta, desta forma, duas dimensões importantes:
a) uma ideia tendencial de contemporaneidade, pois, embora não sendo exigível o pagamento prévio, também não existe discricionariedade quanto ao adiamento do pagamento da indemnização
b) justiça de indemnização quanto ao ressarcimento dos prejuízos suportados pelo expropriado” (anotação ao art.º 62.º da Constituição da República Portuguesa, pag. 336, Coimbra, 1993, 3ª edição revista).

3. Por seu turno, já decidiu o Tribunal Europeu de Direitos do Homem no sentido de só dever ter-se por justa a indemnização contemporânea ao momento translativo do direito real sobre a coisa, na falta de outro momento acordado (v.g. Acórdão Lithgow, A 102, pag. 50, §119).

4. Dispõe o n.º 2 do art.º 2.º do Código das Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 438/91, de 9 de Novembro, que também na aquisição de bens por via do direito privado, deve assegurar-se a igualdade, a justiça e a imparcialidade no tratamento das situações.

5. Do art.º 33.º do mesmo Código, resulta a possibilidade de constituir objecto de acordo entre expropriante e expropriado o modo de satisfação das prestações, sendo que se exige na al. c) do n.º 1 do art.º 36.º deste mesmo diploma que da escritura de expropriação haja de constar a indemnização acordada e a forma de pagamento.

6. Tendo a JAE adquirido os terrenos em causa por meios do direito privado, será de aplicar ao caso o disposto na Lei Civil quanto ao incumprimento das obrigações (pelo que não colhe o argumento segundo o qual, não existindo no actual Código de Expropriações disposição expressa que determine o pagamento de juros, este não será devido).

7. É indiscutível que tanto no momento da celebração, como no do cumprimento do contratos, deverão as partes pautar a sua actuação de acordo com os ditames da boa fé (art.ºs 762.º, 798.º, e 799.º do Código Civil).

8. Os princípios da boa fé e do cumprimento pontual dos contratos – no duplo sentido de o ser dentro do prazo a que as partes se obrigaram e coincidindo, na íntegra, com o acordado -, surgem assim como enformadores de toda a relação obrigacional.

9. Entendo que a boa fé abrange não só o dever de agir com lisura e correcção, como também com o cuidado e diligência necessários a satisfazer a pretensão que levou o credor a celebrar o contrato em causa.

10. Assim sendo, não posso deixar de concordar com ANTUNES VARELA quando defende que “mais do que o respeito farisaico da fórmula na qual a obrigação ficou condensada, interessa a colaboração leal na satisfação da necessidade a que a obrigação se encontra adstrita. Por isso ele se deve ater não só à letra, mas principalmente ao espírito da obrigação contratual” (in Das Obrigações em Geral, Coimbra, 1978, 2ª Edição, Vol. II, pag. 11).

11. E dúvidas não restam que a forma e o prazo de pagamento são determinantes na formação da vontade de contratar.

12. A este propósito, chama-se ainda a especial atenção de V.ª Ex.ª para o disposto no art.º 804.º, a al. a) do n.º2 do art.º 805.º, e nos n.ºs 1 e 2 do art.º 806.º, todos do Código Civil.

13. É de concluir, pois, que a mora pressupõe a existência de um simples retardamento na prestação, cujo cumprimento se mantém, no entanto, possível e desejável.

14. Para que haja mora é ainda necessário que a prestação seja certa – determinada -, líquida – por já estar perfeitamente apurado/fixado o seu montante -, e exigível (v.g., por emergir de obrigação com prazo certo).

15. A responsabilidade do devedor pelos danos causados pela mora só fica excluída se este provar que a mesma não lhe é imputável – emergente de causa estranha à sua vontade (caso de força maior), culpa de terceiro ou do próprio credor.

16. O credor terá, assim, direito à prestação devida, acrescida da indemnização moratória que, regra geral, coincidirá com o montante de juros, à taxa legal, contados do momento da constituição em mora e até efectivo e integral pagamento.

17. Reportando-me agora aos factos do caso em apreço, resulta claro que a partir do momento em que a prestação se venceu (trinta dias a contar da data em que foi celebrada a escritura de expropriação), ficaram preenchidos todos os requisitos constitutivos da mora, dando-se, então, o seu início – obrigação certa, exigível e líquida, sendo o retardamento da prestação imputável ao devedor, já que a JAE não ilidiu a presunção legal de o incumprimento lhe ser imputável.

18. Com efeito, não se vislumbra que seja o facto de existirem dificuldades orçamentais, ou o de não conter o Código das Expropriações disposição expressa que condene o expropriante no pagamento de juros (já que, e quanto a este último aspecto – repita-se – sendo a aquisição efectuada por via de direito privado é certa a sua sujeição às prescrições da Lei Civil), passíveis de justificar a recusa de pagamento de juros moratórios.

19. Não poderá a JAE invocar a atitude culposa dos seus serviços encarregues da celebração do acordo – como seja a de ter a Direcção de Estradas de Coimbra procedido “à celebração da escritura notarial em data que, não dispondo de fundos suficientes, o não deveria ter feito” (ofício de V.ª Ex.ª n.º…) -, facto a que o credor é totalmente alheio, para se eximir ao cumprimento das suas obrigações.

Considero, do mesmo passo, dever a JAE abster-se de alegar o interesse público que prossegue com a sua actividade para, com isso, justificar o prejuízo do credor com a recusa do pagamento de juros moratórios – não esqueçamos que foi em nome do interesse público que o credor ficou privado da titularidade dos imóveis objecto de expropriação, o que parece, já de si, constituir um sacrifício suficiente.

III-Conclusões

Pelos motivos expostos, ao abrigo do disposto no art.º 20.º, n.º 1, al. a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril,RECOMENDO:

que seja prestado o pagamento à Senhora ….. e demais antigos comproprietários, do valor dos juros de mora à taxa legal, contados desde o vencimento da obrigação e até ao momento em que o pagamento se efectuou.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel