Presidente da Assembleia da República
Número:21/B/97
Processo:R-1661/96
Data:23.12.1997
Área: A5

Assunto:FUNÇÃO PÚBLICA – DIREITO À PRIVACIDADE – CREDENCIAÇÃO – DEVER DE INFORMAR – CONHECIMENTO EFECTIVO DO INTERESSADO – AUTORIZAÇÃO.

Sequência: Acatada

I

No âmbito do processo identificado em epígrafe, verificou-se uma situação passível de aperfeiçoamento normativo, com vista a uma melhor tutela da vida privada dos cidadãos e salvaguarda da própria Administração.

II

Foi-me dirigida queixa devidamente identificada, onde se alegava violação da privacidade da reclamante. A situação prende-se com a celebração de um contrato a termo certo com o Conselho Nacional de Planeamento Civil de Emergência, para o exercício de funções de auxiliar administrativa e, mais concretamente, com a actividade investigatória diligenciada pelas entidades de segurança a propósito deste vínculo laboral. Refere a reclamante que esta actividade se terá materializado em questões colocadas à respectiva vizinhança, relativas à sua pessoa e às pessoas do seu círculo familiar, que, alegadamente, afectaram a sua imagem, alimentando suspeições num dos seus meios sociais. Acrescenta, ainda, que nunca imaginou as consequências que poderiam advir do simples facto de se ter candidatado ao lugar em questão. O Gabinete do Ministro da Defesa Nacional respondeu, via Procuradoria-Geral da República, esclarecendo que a função a que se candidatou a reclamante está abrangida pela necessidade de credenciação, atendendo aos fins e tarefas a prosseguir pelo respectivo serviço, criado pelo Decreto-Lei n.º 153/91, de 23 de Abril, nos termos da Resolução do Conselho de Ministros n.º 50/88, de 3 de Dezembro. Esclareceu também que o núcleo de segurança do respectivo serviço se limitou a solicitar o inquérito indispensável à credenciação, a organizar o respectivo processo e a remetê-lo à Autoridade Nacional de Segurança, não tendo conhecimento das investigações realizadas, mas apenas da obtenção ou não da credenciação. Esclareceu ainda que é habitual o júri informar o candidato de que, na eventualidade de ser nomeado, será sujeito a uma investigação para efeitos de credenciação.

III

O ponto de partida da reclamante é um direito fundamental que encontra acolhimento na Declaração Universal dos Direitos do Homem, art.º 12º, onde se estipula que “Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação”; no Pacto das Nações Unidas relativo aos Direitos Civis e Políticos do Homem, art.º 17º, que retoma o mesmo direito em termos idênticos, determinando que “Ninguém será objecto de intervenções arbitrárias ou ilegais na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem de atentados ilegais à sua honra e à sua reputação”; na Convenção (Europeia) Para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, art.º 8, que no respectivo n.º 1 estipula que “Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência”, determinando o n.º 2 que “Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem-estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros”; na Constituição da República Portuguesa, art.º 26º, que refere que “A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra à reserva da intimidade da vida privada e familiar….”,(n.º 1) sendo que “A lei estabelecerá garantias efectivas contra a utilização abusiva, ou contrária à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias” (n.º 2); no Código Civil, art.º 80º, onde se estipula que “Todos devem guardar reserva quanto à intimidade da vida privada de outrem”, medindo-se a extensão desta reserva “conforme a natureza do caso e a condição das pessoas”(n.º 2).

O bem jurídico em questão é ainda objecto de tutela penal. Como se pode observar, o conteúdo do direito pode ser analisado em duas vertentes: a que respeita ao acesso a factos do círculo íntimo e a que respeita à respectiva divulgação. A questão colocada pela reclamante reconduz-se à primeira. Todavia, o problema pressupõe o esclarecimento de uma questão prévia e que é a da determinação dos factos que são objecto da reserva, determinação do que se reconduz ao domínio do privado e do que cabe no domínio do público e, dentro do que pertence ao primeiro, daquilo que merece tutela como reserva da vida privada e do que não merece. Não cabendo aqui um enunciado exaustivo do debate que sobre esta matéria se mantém, até porque não se pode precisar no caso concreto quais os factos sobre que incidiu a curiosidade dos poderes públicos, interessa realçar a plasticidade do direito, cuja amplitude, nomeadamente na identificação dos factos que devem ficar fora do alcance alheio, deve ser definida pela natureza do caso e a condição das pessoas. É isto mesmo o que resulta do art.º 80º, n.º 2, do Código Civil. É neste contexto que deve ser equacionado o caso da reclamante, que, apesar de não estar numa situação de exposição ao público, se propõe ocupar um cargo que assume um interesse directo para o público, independentemente do respectivo conteúdo funcional.

O exercício e as circunstâncias da função assumem uma dimensão de interesse público relevante, implicando uma necessidade de salvaguardar valores de segurança interna e de garantia da segurança protectiva das matérias classificadas contra actos de sabotagem e espionagem, bem como de evitar falhas humanas susceptíveis de ocasionar comprometimentos e quebras de segurança. É este interesse que faz do seu caso um caso de natureza especial e da sua situação de candidata ou de nomeada uma condição também especial, moldando o respectivo direito. Assim, verifica-se que o elemento definidor dos factos que permanecem em reserva ou que cedem à actividade investigatória de certas autoridades é activado por um acto de vontade do titular do bem protegido, pelo que a tutela do direito deve envolver, neste caso, um amplo conhecimento para o interessado das repercussões que o seu acto de vontade pode ter na legitimação da invasão da respectiva intimidade.

IV

Face aos interesses envolvidos, não há elementos que permitam considerar ilegítima a concreta conduta investigatória da Administração em si mesma, atendendo a que surge devidamente enquadrada pela lei. Com efeito, o Conselho Nacional de Planeamento Civil de Emergência, que actua a nível nacional e ao nível da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), tem funções que implicam o manuseamento de informação classificada sujeita ao ACORDO DE SEGURANÇA ENTRE AS PARTES DO TRATADO DO ATLÂNTICO NORTE. A protecção da informação manuseada por estes serviços é prosseguida através de mecanismos repressivos, que sancionam penalmente os infractores aos deveres de sigilo, e de mecanismos preventivos, que visam escolher pessoal que, em princípio, ofereça garantias de que o sigilo não venha a ser quebrado.

Assim, o manuseamento surge condicionado pela devida credenciação do pessoal, exigindo juízos de confiança relativamente a todos aqueles que possam ter acesso a estes documentos, desde que classificados com o grau de “confidencial” ou superior, de modo a apurar da respectiva lealdade, idoneidade e discrição. Este juízo de confiança é necessário mesmo para o pessoal que desempenhe as funções de contínuo, porteiro, guarda, empregado da limpeza e outros, desde que actue em condições que proporcionem oportunidades de acesso, ainda que involuntário, a matérias credenciadas (ponto 4.2.4.1.d) das Instruções aprovadas pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 50/88, de 3 de Dezembro). O juízo de confiança referido implica, pois, uma habilitação, prévia à credenciação, que tem por objectivo determinar se o candidato é de lealdade e honestidade indubitáveis, bem como se a sua reputação, hábitos, contactos sociais, discrição e bom senso permitem que lhe sejam confiadas informações classificadas, podendo e devendo, para o efeito, fazer-se os inquéritos de segurança. O juízo de confiança sobre comportamentos futuros é um juízo de prognose que só se pode fundamentar em factos indiciários passados, que constituem o objecto dos inquéritos de segurança e cuja amplitude é variável em função do grau de segurança pretendido, admitindo-se um particular rigor nos casos de credenciação máxima. O inquérito de segurança é elaborado segundo normas estabelecidas pela Autoridade Nacional de Segurança, responsável pela segurança da informação classificada relativa à Organização do Tratado do Atlântico Norte (como é o caso), nos termos do art.º 1º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 372/84, de 28 de Novembro, a pedido do serviço proponente, que fará acompanhar o pedido de fotocópia de ficha individual completamente preenchida e do registo biográfico e disciplinar (ponto 4.2.4.2.1. das Instruções supra citadas).

Este inquérito deve basear-se em toda a informação disponível, determinando a Lei n.º 20/87, de 12 de Junho, no art.º 8º, n.º 2, alínea d), que compete ao Governo, através do Conselho de Ministros, fixar, nos termos da lei, as regras de classificação e controle de circulação dos documentos oficiais e, bem assim, de credenciação das pessoas que devem ter acesso aos documentos classificados. Estas regras foram concretizadas na já referida Resolução do Conselho de Ministros. Face a este panorama legal, pode-se verificar que a Administração pode ter acesso a factos que habitualmente integram o conceito de vida privada da reclamante, nos termos e para os efeitos referidos. Todavia, e face ao que deixámos referido em III, temos de concluir que o dispositivo legal vigente não retira todas as consequências que a tutela da intimidade da vida privada comporta.

V

De facto, a partir do caso concreto não foi possível apurar a violação do direito fundamental que tutela o bem jurídico da intimidade da vida privada, atendendo a que a reclamante integra uma situação especial, decorrente de um acto de vontade seu. Admitindo que é necessário formular juízos de confiança sobre os candidatos e nomeados para certos lugares, torna-se necessário garantir o melhor esclarecimento dos interessados no momento do respectivo acto de vontade que os vai colocar na situação especial de menor protecção da sua esfera privada, permitindo-lhes determinar previamente se pretendem sujeitar-se ou não à actividade investigatória necessária, dando a conhecer o tipo de investigação a que irão estar sujeitos, como é que esta se poderá processar, bem como o tipo de factos que irão ser objecto de investigação. Pode dar-se o caso de o candidato valorar mais os factos da sua intimidade do que o emprego a que se candidata. No caso que deu origem a esta Recomendação, temos de um lado a Administração, que refere que é usual os “júris dos concursos esclarecerem os concorrentes de que, a serem nomeados, serão sujeitos a uma investigação para efeitos de credenciação” e que a reclamante terá dado o seu assentimento. Do outro lado, contrapõe a reclamante que não tomou conhecimento e que, se soubesse, nunca se teria candidatado a tal lugar.

Assim, face à impossibilidade de determinar se o conhecimento dos candidatos é efectivo ou não, considera-se que as informações referidas no parágrafo anterior devem ser transmitidas por escrito aos candidatos, que as deverão aceitar expressamente como condições de candidatura. Das Instruções aprovadas pela Resolução já citada resulta o preenchimento de uma ficha individual com várias informações sobre a pessoa e familiares do interessado, na qual este aporá a sua assinatura numa declaração final que implica a possibilidade de confirmação dos factos declarados. Contudo, admitindo que a investigação possa ir além dos factos declarados, com vista à formulação de juízos de lealdade, idoneidade e discrição, verifica-se que esta declaração ou a declaração constante da ficha de instrução especial para acesso a matérias muito secretas não revela a consciencialização da possibilidade de outras investigações sobre factos da respectiva esfera pessoal. Por outro lado, e como revela muito claramente o caso concreto subjacente à presente Recomendação, não importa só a consciência do que se vai investigar, mas também do modo como se vai investigar. Com efeito -e independentemente da fidedignidade dos resultados-, é muito diferente, por exemplo, solicitar informações policiais ou bancárias, ou questionar familiares, vizinhos, colegas de trabalho ou manter a residência sob vigilância. Impõe-se, pois, que os interessados conheçam e autorizem, por escrito e o mais pormenorizadamente possível, as investigações a que vão ser sujeitos para fins da credenciação, na dupla vertente do objecto e da forma/método da investigação. E isto, não só para proteger o direito à privacidade do interessado – colocando-o expressa e conscientemente perante a opção entre a privacidade e a credenciação – , mas também para salvaguardar a posição da própria Administração – no caso concreto, por exemplo, esta foi incapaz de demonstrar sem margem para dúvidas que estava autorizada pela reclamante a proceder às investigações efectuadas.

Nestes termos,RECOMENDO:

A Vossa Excelência, que promova diligência normativa adequada no sentido de ser prestada a todos os candidatos a lugares que envolvam credenciação e correspondentes inquéritos de segurança informação escrita sobre a necessidade de actividade investigatória, enunciando o mais pormenorizadamente possível os factos sujeitos a investigação e os métodos de investigação que podem ser utilizados, devendo esta informação ser assinada pelo interessado, comprovando que tomou conhecimento e consciência das suas implicações e que autorizou a investigação.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel