Presidente da Câmara Municipal de São João da Madeira
Número:77/A/97
Processo:R-613/96
Data: 16.12.1997
Área: A1

Assunto:URBANISMO E OBRAS – OBRAS PARTICULARES – PROPRIEDADE PRIVADA – DOMÍNIO PÚBLICO – CEDÊNCIA – CÓDIGO DAS EXPROPRIAÇÕES.

Sequência:Acatada.

I-Exposição de Motivos

Dos Factos

1. Foi apresentada na Provedoria de Justiça uma queixa relativa ao condicionamento imposto por essa Câmara Municipal aquando da aprovação do projecto de arquitectura apresentado pela empresa L…, Lda., no âmbito do processo camarário de obras n.º …, para construção de um edifício à Rua …, nesse Concelho.

2. Com efeito, nos termos do ofício n.º …, dirigido à citada empresa, foi comunicada a decisão de aprovação do projecto de arquitectura “com a obrigatoriedade de cedência para o domínio privado da Câmara Municipal do terreno sobrante já que o mesmo foi considerado para o cálculo do C.O.S.”.

3. Em …, em ofício assinado pelo Senhor Notário Privativo da Câmara Municipal de S. João da Madeira, foi solicitado ao Senhor…, sócio-gerente da empresa, a apresentação de diversos documentos (certidões do teor do artigo matricial e da descrição predial do prédio, fotocópias do registo comercial da firma e dos documentos de identificação dos seus representantes), “para efeitos de elaboração da escritura de cedência de parcela de terreno ao domínio público municipal”.

4. A “escritura de cedência de parcela de terreno ao domínio público pela firma L…” foi outorgada em 28-01-1994 nos Paços do Concelho de S. João da Madeira, perante o Senhor Director do Departamento de Gestão, Administração Geral e Finanças da Câmara Municipal de S. João da Madeira, exercendo as funções de Notário Privativo do Município.

5. Nos termos da escritura, a empresa L…, Lda. “cede gratuitamente ao Município de S. João da Madeira para integrar no Domínio Público Municipal, uma parcela de terreno com a área de novecentos e seis metros quadrados, (…), a destacar de um prédio urbano sito na …, com a área total de mil trezentos e noventa e dois metros quadrados”.

6. Pelo Senhor Presidente da Câmara Municipal de S. João da Madeira, enquanto representante do Município, foi dito:
“Que aceita para o Município de S. João da Madeira a presente escritura de cedência de parcela de terreno, para integrar no domínio público municipal conforme prevê o Plano de Pormenor da zona nascente, em elaboração para aquela zona.
Que se houver alteração ao Plano de Pormenor referido, em elaboração e análise, e a parcela de terreno cedida pela presente escritura vier a adquirir uso diferente do previsto no Plano de Pormenor da Zona nascente, não integrando o Domínio Público Municipal, a parcela de terreno cedida pela presente escritura, reverterá novamente e de imediato para o segundo outorgante”

7.No decurso da instrução do processo referenciado em epígrafe, foram solicitados esclarecimentos à Câmara Municipal de São João da Madeira, através do ofício n.º …. (de que se junta cópia, em anexo, para mais fácil identificação), os quais vieram a ser prestados nos termos constantes do ofício n.º… (de que igualmente se remete cópia).

8. Em síntese, foi apurado o seguinte:
A. A Câmara Municipal de S. João da Madeira esclarece que a parcela de terreno cedida vai ser integrada no Domínio Público e não no Domínio Privado Municipal “conforme se encontra previsto no Plano de Pormenor do Sector Nascente que se encontra em fase de recolha de pareceres”;
B. O fim previsto para o terreno é de espaço público cuja manutenção será da responsabilidade da Câmara Municipal;
C. Quanto ao estado actual do terreno – sem qualquer aproveitamento e coberto de silvas – vem ser prestada informação segundo a qual “o terreno cedido encontra-se sem qualquer tipo de ocupação pois isoladamente não assegura as condições de utilização para o fim previsto dado tratar-se de uma parcela de terreno que não confronta coma via pública e que no futuro integrará um conjunto de outras parcelas, vindo a constituir-se como uma área ampla de fruição pública”;
D. O Plano de Pormenor do Sector Nascente é invocado como a “base” para o licenciamento da obra, o que terá fundado a necessidade de cedência da parcela;
E. Salvaguarda, por último, a Câmara Municipal a hipótese de reversão da parcela a favor do requerente, caso ocorra “eventual alteração do fim a que a parcela em causa se venha a destinar”.

Do Direito
Do Princípio da Legalidade da Administração

9. Da análise dos factos acima descritos resulta que o licenciamento das obras de construção apreciadas no âmbito do processo camarário n.º … foi condicionado à cedência de uma parcela de terreno que integrava o terreno de implantação da construção.

10. O proprietário do terreno em causa coincide com o requerente no processo de licenciamento das obras particulares promovidas no local.

11. Não obstante as razões invocadas pela Câmara Municipal de S. João da Madeira – as quais se prendem essencialmente com o regime contido em plano urbanístico em elaboração -, não se vislumbra que base legal poderá ter sustentado a imposição camarária de cedência da parcela de terreno.

12. É que o processo de licenciamento que correu os seus termos na Câmara Municipal de S. João da Madeira não se referia a operação de loteamento e obras de urbanização, mas a obras de construção.

13. O regime de licenciamento municipal das obras particulares previsto no Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, difere do regime estabelecido no Decreto-Lei n.º 448/91, de 29 de Novembro, quanto ao licenciamento de operações de loteamento e obras de urbanização. Uma das diferenças radica exactamente na obrigatoriedade das cedências para integrar o domínio público, apenas contemplada no licenciamento de loteamentos.

14. O citado Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, não prevê nem admite o condicionamento das licenças à cedência de terrenos ao município, seja para integração no domínio público, seja para integração no domínio privado a título de compensação em espécie.

15. Já o regime de licenciamento dos loteamentos prevê a cedência de parcelas de terrenos ao município, cabendo distinguir:

16. No art. 16.º do Decreto-Lei n.º 448/91, de 29 de Novembro (à data, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 25/92, de 31 de Agosto) regulam-se as cedências no âmbito do loteamento urbano. A sua interpretação não dispensa a do preceito que o antecede, o qual tem por epígrafe “Terrenos para espaços verdes e de utilização colectiva, infra-estruturas e equipamentos”.

17. A definição das parcelas de terreno destinadas a espaços verdes e de utilização colectiva, infra-estruturas e equipamentos ou os parâmetros para o seu dimensionamento deverão ser encontrados nos planos municipais de ordenamento do território, ou, caso estes não procedam a tal definição, na Portaria n.º 1182/92. Para aferir do respeito pelos parâmetros indicados consideram-se quer as parcelas destinadas aos fins pretendidos de natureza privada, quer as parcelas a ceder ao município. Tratando-se de parcelas privadas, aplica-se o regime das partes comuns do instituto da propriedade horizontal (cfr. art. 15.º, do Decreto-Lei n.º 448/91)

18. Voltando ao art. 16.º, encontra-se o regime das cedências ao município. Prevê o mesmo a cedência gratuita ao município (e não à câmara municipal, como resultaria literalmente do preceito em análise) de parcelas de terreno para espaços verdes e de utilização colectiva, infra-estruturas e equipamentos públicos, “que, de acordo com a operação de loteamento, devam integrar o domínio público”, ocorrendo a cedência com a emissão do respectivo alvará, o que dispensa a celebração da escritura pública de transmissão da propriedade.

19. Pese embora a norma em análise encontrar precedentes nos regimes legais pretéritos, onde se destaca o disposto no art. 42.º, do Decreto-Lei n.º 400/84, de 31 de Dezembro, determinando as cedências obrigatórias nos loteamentos, poderá ainda questionar-se a obrigatoriedade de cedência de parcela do terreno para integrar o domínio público. António Duarte de Almeida “et al”. consideram que “face ao teor dos arts. 15.º e 16.º, sobretudo depois da redacção dada pela L 25/92, de 31/8, coloca-se, desde logo, a seguinte questão: será possível que numa operação de loteamento não sejam cedidas ao município parcelas de terreno destinadas a espaços verdes e de utilização colectiva, infra-estruturas viárias e equipamentos, existindo tais parcelas mas sendo elas de natureza privada, como se prevê nos n.ºs. 2 e 3, do art. 15.º, depois da redacção que lhe foi dada pela L 25/92, de 31/8?” (cfr. Legislação Fundamental do Direito do Urbanismo Anotada e Comentada, Vol. II, Lisboa, 1994, p. 572).

20. A resposta, segundo os Autores citados, não deve ser formulada em abstracto, antes dependendo do que determinarem os planos municipais de ordenamento do território para o local. “Assim, numa operação de loteamento em área não abrangida por plano municipal de ordenamento do território ou quando o regulamento deste plano não imponha cedências para o domínio público, o loteador tem obrigatoriamente de respeitar os parâmetros de dimensionamento fixados na citada portaria, mas daí não resulta que tais parcelas tenham de ser cedidas para o domínio público do município. (…) Só haverá obrigatoriedade de cedência para o domínio público das parcelas destinadas a equipamento, que pela sua natureza e finalidade tenham de ter livre acesso da colectividade, designadamente equipamentos destinados à prestação de serviços na área da saúde, educação, assistência social, segurança, protecção civil, matadouros, feiras, etc… (cfr. dos AA., ob. cit., pp. 572-573).

21. A nova redacção dos artigos 15.º e 16.º do Decreto-Lei n.º 448/91, de 29 de Novembro veio, desta forma, formular o enquadramento legal das situações de condomínio fechado (ou de loteamento fechado).

22. Mesmo se contestada a obrigatoriedade de cedência de parcela de terreno para integrar o domínio público municipal, deverá analisar-se, sumariamente, o regime das cedências de parcelas de terreno que devam integrar o domínio privado do município.

23. No n.º 4 do citado art. 16.º, vem dispor-se que em caso de prédio a lotear já se encontrar servido pelas infra-estruturas referidas no art. 3.º, alínea b), ou não se justificar a localização de qualquer equipamento público no local, não há lugar a cedências como as descritas, “ficando, no entanto, o proprietário obrigado a pagar à câmara municipal uma compensação, em numerário ou em espécie, nos termos definidos em regulamento aprovado pela assembleia municipal”.

24. No n.º 5 explicita-se que “quando a compensação seja paga em espécie através da cedência de parcelas de terreno, estas integram-se no domínio privado do município e destinam-se a permitir uma correcta gestão dos solos”.

25. Dos preceitos transcritos retira-se que o legislador veio disciplinar as contrapartidas negociadas com os particulares aquando da aprovação ou licenciamento de actividades urbanísticas, “prática algumas vezes feita à margem da lei – atenda-se à prática de todo ilegal de muitos municípios condicionarem a emissão de licenças de construção ao pagamento de quantias em dinheiro a título de mais-valia, encargos de urbanização, compensação por melhoria ou simplesmente contrapartidas, mesmo naqueles casos em que não se verificou nenhuma prestação do município a favor do particular” (António Duarte de Almeida e Outros, ob. cit., pp. 580-581).

26. Na mesma linha, o Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, ao estabelecer o regime jurídico do licenciamento de obras particulares, estatuiu no art. 68.º, que “a emissão de alvarás de licença de construção e de utilização está sujeita ao pagamento das taxas a que se refere a alínea b) do art. 11.º da Lei n.º 1/87, de 6 de Janeiro, não havendo lugar ao pagamento de quaisquer mais valias ou compensações”. O preceito da Lei das Finanças Locais para que se remete dita tão só que “os municípios podem cobrar taxas pela concessão de licenças de execução de obras particulares e de utilização de edifícios”.

27. A redacção actual do citado art. 68.º do regime aprovado pelo Decreto-Lei n.º 445/91 (introduzida pelo Decreto-Lei n.º 250/94, de 15 de Outubro) acrescenta que “a exigência, por parte da câmara municipal ou de qualquer dos seus membros, de mais-valias não previstas na lei ou de quaisquer contrapartidas, compensações ou donativos confere ao titular da licença de construção, quando dê cumprimento àquelas exigências, o direito a reaver as quantias indevidamente pagas ou, nos casos em que as contrapartidas, compensações ou donativos sejam realizados em espécie, o direito à respectiva devolução e à indemnização a que houver lugar” (cfr. n.º 4 do art. 68.º).

28. Chegados a este ponto, deverá ponderar-se o que se reputa essencial na diferenciação dos regimes de licenciamento no que concerne às cedências.

29. Compreende-se que a constituição de lotes para construção urbana possa implicar, na generalidade dos casos, a execução de obras de urbanização, por forma a dotar o prédio das infra-estruturas necessárias, como arruamentos ou redes de abastecimento de águas ou de escoamento de esgotos. Verifica?se ainda que as operações de loteamento, especialmente quando associadas à expansão dos aglomerados urbanos e correspondendo a respectiva licença a uma disciplina conformadora dos solos urbanos, são acompanhadas da implantação de equipamentos colectivos e da criação de zonas verdes ou de fruição colectiva, com vista à satisfação de necessidades dos futuros residentes e da comunidade.

30. Assim sendo, mostram-se justificadas as cedências feitas ao município de parcelas de terreno para os fins acima enunciados, em sede de loteamentos.

31. Este entendimento, porém, não encontra aplicação nos casos em que se trate tão só de licenciar a construção de um edifício, como acontece na situação em análise.

32. Maiores reservas merecem as cedências de parcelas de terrenos para integrarem o domínio privado municipal, a título de compensação em espécie. Mesmo no âmbito dos loteamentos, se não acompanhadas de qualquer contraprestação individual, as compensações (em espécie ou em numerário) ao município aproximam-se da figura dos impostos, cuja consagração legal deve revestir-se de especiais garantias para os particulares.

33. Limito esta questão a uma breve nota, porquanto, não obstante a deliberação reclamada se referir à cedência do terreno sobrante para integrar o domínio privado municipal, verificou-se que a parcela em questão foi doada para integrar o domínio público municipal. Assim não fora e deparar-nos-íamos com um imposto cobrado à revelia da lei.

34. Para mais, não será despiciendo atentar nos fundamentos de indeferimento dos pedidos de licenciamento de obras particulares que vêm regulados no n.º 2 do art. 63.º, do regime aprovado pelo Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro. A falta de infra-estruturas pode, legitimamente, ser invocada como razão para o indeferimento do pedido. Assim se reforça a aplicação do disposto no art. 68.º, o qual apenas se refere à taxa a cobrar pela emissão da licença de construção, que não se confunde com a cobrança de qualquer imposto.

35. Não se questiona a possibilidade de fixação de condições no licenciamento de obras particulares. No entanto, o princípio da legalidade da administração mostra-se desrespeitado no caso vertente, com a imposição de uma condição que a lei não prevê, nem admite.

36. De tudo quanto fica exposto, concluo pela ilegalidade da imposição de uma cedência gratuita ao município de uma parcela de terreno, em sede de licenciamento de obras particulares.

Do Princípio da Prossecução do Interesse Público, no Respeito pelos Direitos e Interesses Legalmente Protegidos dos Cidadãos

37. O sacrifício patrimonial infligido parece ainda motivo suficiente para chamar à colação outro princípio constitucional que deve enformar a actividade administrativa, qual seja o da “prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos” (cfr. art. 266.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa).

38. Quero com isto tornar presente que os fins não justificam os meios.

39. No caso vertente, trata-se da criação de uma zona verde e de fruição colectiva, conforme projectado. A parcela de terreno em causa, no entendimento dessa Câmara Municipal, é necessária a tal empreendimento, de cuja bondade não se duvida.

40. No entanto, o interesse público deveria ser prosseguido através da aquisição onerosa da parcela de terreno, por acordo com o particular ou, na falta dele, por recurso à expropriação necessariamente contemporânea de justa indemnização.

41. Não se diga que o particular consentiu na alienação gratuita do terreno, invocando-se a escritura pública de doação como aceitação tácita do acto posteriormente reclamado.

42. Quanto a este aspecto, permito-me recorrer ao ensinamento da jurisprudência administrativa, em caso não dissemelhante do agora exposto. O Supremo Tribunal Administrativo, decidindo recurso cujo objecto radicava numa decisão camarária que havia exigido o pagamento de uma importância em dinheiro, a título de encargo de mais-valias e de obras de urbanização, como condição de licenciamento de construção de um edifício, considerou que:
“É certo que os ora apelados não apresentaram qualquer reserva ao procederem ao pagamento da mencionada importância (…).

Mas também é certo que o pagamento não pode qualificar-se como espontâneo e incompatível com a vontade de recorrer, como a lei exige, dada a sua obrigatoriedade derivada do facto de, sem ele, os ora apelados não poderem exercer o direito de edificarem o seu prédio, cujo projecto fora aprovado, uma vez que o acto administrativo era executório, independentemente de recurso ou outra forma de impugnação” (cfr. Acórdão de 30-11-1978, in Acórdãos Doutrinais do Supremo Tribunal Administrativo, n.º 208, pp. 428 e ss., p. 430).

43. Por maioria de razão, não poderia o requerente deixar de doar a parcela de terreno exigida, como condição de deferimento do licenciamento das obras de construção, porquanto resulta claro da deliberação da Comissão de Apreciação de Obras Particulares de 9?09?1993, comunicada através do ofício dessa Câmara Municipal n.º 4482, que sem cedência não haveria licenciamento. A “obrigatoriedade de cedência para o domínio privado da Câmara Municipal do terreno sobrante” (como se lê no ofício citado), associada à aprovação do projecto de arquitectura apresentado pelo interessado, retira espontaneidade à doação do imóvel.

44. Pondere-se, então, o devido respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares.

45. Está em causa o direito de propriedade sobre o imóvel, assegurado pela Constituição no seu art. 62.º. E “elemento essencial do direito de propriedade consiste no direito de não se ser privado dela (…), de não ser arbitrariamente privado da propriedade e de ser indemnizado no caso de desapropriação” (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra 1993, pp. 333-334).

46. No n.º 2 da disposição constitucional citada, ao ser consagrada a expropriação, cumprem-se dois desideratos. Por um lado, o de conferir o poder expropriatório às entidades públicas; por outro lado, “reconhece ao cidadão um sistema de garantias que inclui designadamente os princípios da legalidade, da utilidade pública e da indemnização” (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, ob. cit., pp. 334-335).

47. Não cumpre aqui desenvolver o instituto da expropriação e o seu regime constitucional e legal. Atente-se, porém, nos aspectos significativos para a situação em análise.

48. O destino do imóvel mereceu ponderação no projecto de um plano de pormenor, à data em elaboração, e hoje, ao que se sabe, ainda não publicado e, por isso, ineficaz.

49. Contudo, a necessidade de dominialização do bem com vista à realização do interesse colectivo, implicando a transferência da propriedade do mesmo, pode basear o acto de declaração de utilidade pública para efeitos expropriatórios.

50. O instituto da expropriação (goradas as possibilidades de acordo com o proprietário) parece adequado ao fim que se tinha em vista. A previsão em plano urbanístico (enquanto regulamento) não afasta, contudo, a necessidade de declaração de utilidade pública dos prédios e direitos a expropriar (cfr. art. 10.º, n.º 2, do Código das Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 438/91, de 9 de Novembro).

51. Note-se que “as expropriações acessórias aos planos são expropriações em sentido clássico. Têm como finalidade a aquisição de prédios ou direitos a eles relativos para fins de utilidade pública, os quais constam dos objectivos do plano urbanístico. São terrenos para a realização de infra?estruturas urbanísticas (arruamentos, redes de esgotos, de abastecimento de água, de fornecimento de gás e de electricidade, de telecomunicações, etc.), para a construção de equipamentos colectivos (escolas, hospitais, parques infantis, instalações desportivas, etc.), para a criação de jardins públicos e espaços verdes, etc.” (cfr. Fernando Alves Correia, O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra, 1989, p. 474).

52. A tal não obsta a limitação às declarações de utilidade pública por iniciativa autárquica contida no art. 32.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 69/90, de 2 de Março (alterado nos termos dos Decretos-Lei n.ºs 281/93, de 17 de Agosto e 68/94, de 3 de Março), pois o Plano Director Municipal de S. João da Madeira encontra-se publicado desde 4 de Maio de 1993.

53. Para além destes aspectos do regime expropriatório, não parece demais insistir na garantia da indemnização, a qual “visa compensar o sacrifício especial suportado pelo expropriado, ou, por outras palavras, garantir a observância do princípio da igualdade (…), que tinha sido violado com a expropriação, apresentando-se como uma reconstituição em termos de valor da posição do proprietário que o expropriado detinha” (cfr. Fernando Alves Correia, As Garantias do Particular na Expropriação por Utilidade Pública, Coimbra, 1982, p. 128). A importância da indemnização justifica a referência constitucional, que se traduz na seguinte imposição “a expropriação por utilidade pública só pode ser efectuada mediante o pagamento de justa indemnização” (art. 62.º, n.º 2, CRP).

II-Conclusões

1. De tudo quanto fica exposto, conclui-se pela ilegalidade e injustiça do acto camarário que, em sede de licenciamento de obras particulares, impôs a cedência ao município de uma parcela de terreno com a área de 986 m2 conforme previsto em projecto de plano de pormenor, para área de fruição pública.

2. A falta de suporte legal que permita à Administração Pública condicionar a aprovação de um projecto de arquitectura ou a emissão de uma licença de construção à cedência gratuita de uma parcela de terreno, é acrescida pela expressa proibição contida na parte final do art. 68.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro.

3. A imposição reclamada deverá ter-se por nula e de nenhum efeito.

4. A nulidade do acto camarário, ou da parte do acto que obriga o destinatário a alienar gratuitamente o imóvel em causa, resulta do que vem disposto no art. 133.º, n.º 2, alínea d), do Código do Procedimento Administrativo.

5. Com efeito, tal imposição ofende o conteúdo essencial do direito fundamental à propriedade (art. 62.º, CRP), direito económico, social e cultural de natureza análoga (cfr. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, 2ª ed., Coimbra, 1993, p. 143) aos direitos, liberdades e garantias. E essa ofensa, no caso que nos ocupa, assenta na consideração de que “na previsão dos actos administrativos que ofendem o conteúdo essencial de um direito fundamental, incluem-se, além dos que o violam pelo seu conteúdo ou motivação, também aqueles em cujo procedimento se postergaram, e nessa intensidade, direitos dessa natureza dos interessados” (cfr. Mário Esteves de Oliveira e Outros, Código do Procedimento Administrativo Comentado, Coimbra, 1997, p. 647).

6. A violação do conteúdo essencial do direito de propriedade resulta, não da caracterização deste direito como um direito absoluto, intocável – formulação inaceitável num Estado Social de Direito -, mas da verificação da aniquilação do núcleo essencial do direito, com a transferência da sua titularidade, à margem da Constituição e da lei, sem qualquer compensação para o particular, não se acautelando “um resto substancial de direito, liberdade e garantia, que assegure a sua utilidade constitucional” (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, ob. cit., p. 154).

7. Insiste-se na necessidade de compensação do particular (a qual não se verificou neste caso) por duas ordens de razões.

8. Em primeiro lugar, deverá atentar-se no ensinamento de GOMES CANOTILHO, que, na esteira da juspublicística alemã, reconduz a determinação do conteúdo do direito de propriedade ao correspondente dever de indemnização, entendendo que a “delimitação do conteúdo constituirá uma restrição de direito geradora de compensação quando a medida delimitadora?restritiva tiver um peso económico na esfera jurídico?patrimonial do proprietário” (cfr. do Autor, Protecção do Ambiente e Direito de Propriedade (Crítica de Jurisprudência Ambiental), Coimbra, 1995, p. 98).

9. Em segundo lugar, a compensação-justa indemnização visa assegurar o princípio da igualdade perante os encargos públicos, que assenta, por um lado, na igual repartição dos encargos públicos (impostos, restrições ao direito de propriedade) pelos particulares e obriga, por outro lado, a Administração Pública a reconhecer, nos casos em que se exija um sacrifício especial a um indivíduo ou grupo de indivíduos por razões de interesse público, o direito a uma indemnização ou compensação aos indivíduos particularmente sacrificados.

10. O acto administrativo em causa afectou absolutamente o núcleo essencial do direito à propriedade, quer pelo seu conteúdo ablativo, como se viu, quer pela postergação do procedimento expropriatório, o qual oferece importantes garantias ao particular, porquanto “ao expropriado tem que ser permitido fazer valer adequadamente as suas razões, bem como fiscalizar o procedimento que conduz à extinção do seu direito de propriedade” (cfr. António Duarte de Almeida e Outros, Legislação Fundamental de Direito do Urbanismo Anotada e Comentada, vol. I, Lisboa, 1994, p. 263), o que me permite concluir pela sua nulidade.

11. Nem se diga que o direito de reversão, timidamente referido na escritura pública de doação, acautela os interesses do particular. Prevê-se a reversão tão somente caso ocorra alteração ao Plano de Pormenor da Zona Nascente, em elaboração e análise, “e a parcela de terreno cedida pela presente escritura vier a adquirir uso diferente do previsto no Plano de Pormenor da Zona Nascente, não integrando o domínio público municipal”. Note-se que o plano urbanístico não se mostra hoje (três anos decorridos sobre a celebração da escritura) publicado.

12. Acresce ter sido afastada a garantia de reversão prevista no art. 5.º, n.º 1, do Código das Expropriações (cujo regime não foi seguido), passados dois anos sem aplicação do terreno aos fins que determinaram a sua aquisição. Mais se note que a parcela de terreno em causa mantém-se desocupada e sem aproveitamento, o que retira actualidade ao interesse público invocado para a desapropriação do imóvel.

13. A reparação da situação pode, porém, ser alcançada, se se observar o que vem disposto no n.º 4 do art. 68.º, do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro. Prevê esta norma que “a exigência por parte da câmara municipal de mais-valias não previstas na lei ou de quaisquer contrapartidas, compensações ou donativos confere ao titular da licença de construção, quando dê cumprimento àquelas exigências o direito a reaver as quantias indevidamente pagas ou, nos casos em que as contrapartidas, compensações ou donativos sejam realizadas em espécie, o direito à respectiva devolução e à indemnização a que houver lugar”.

14. A devolução da parcela de terreno indevidamente adquirida pelo município e a indemnização pelos prejuízos causados com a privação da propriedade do terreno ao longo destes últimos três anos, sem qualquer benefício para o particular ou para a comunidade, apresentam-se como a única forma de reparação da ilegalidade e injustiça praticadas pela Câmara Municipal de S. João da Madeira.

15. A tal não obsta a inclusão da norma invocada em diploma legal que veio a ser publicado em momento posterior ao da prática do acto reclamado e da celebração do negócio com o particular (refiro-me ao Decreto-Lei n.º 250/94, de 15 de Outubro), pois a proibição de imposição de quaisquer sacrifícios patrimoniais que não apenas os decorrentes do pagamento da taxa de emissão da licença de construção encontra-se na versão originária do regime do licenciamento municipal de obras particulares.

16. De resto, o princípio geral da reparação de danos decorre do princípio fundamental do Estado de Direito, consagrado na Constituição da República Portuguesa (art. 2.º), indissociavelmente ligado ao princípio da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas públicas pelos actos praticados pelos seus órgãos, no exercício de funções públicas, de que resulte a violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrém (art. 22.º, CRP).

17. Mostra-se injusto que a prossecução do interesse público represente o estabelecimento de encargos que recaiem sobre o particular, por ele integralmente suportados, colocando-o numa posição de desigualdade perante os restantes cidadãos.
De acordo com o que ficou exposto,RECOMENDO

1. Que seja declarada a nulidade do acto camarário comunicado à requerente “L…, Lda.” através do ofício n.º …, assinado pelo Exm.º Presidente da Câmara Municipal de S. João da Madeira, na parte em que impõe a obrigatoriedade de cedência ao município do terreno sobrante, propriedade da requerente;
2. Que seja resolvido o negócio jurídico celebrado entre o município de S. João da Madeira e a empresa “L…, Lda.”, de doação de uma parcela de terreno com a área de 986 m2, formalizada na escritura pública celebrada em 28 de Janeiro de 1994;
3. Que seja restituído o imóvel à empresa referida, enquanto titular da licença de construção, e paga a indemnização a que houver lugar, nos termos do disposto no citado art. 68.º, n.º 4, do regime aprovado pelo Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro (com a redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 250/94, de 15 de Outubro;
4. Que, futuramente, caso se revele ser indispensável a aquisição do terreno para a criação da área de fruição pública, conforme projectado, seja proposto à proprietária a sua alienação onerosa (compra e venda) e, na falta de acordo e nos termos da lei, se inicie procedimento expropriatório com vista à aquisição do terreno, mediante o pagamento de justa indemnização.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel