Presidente da Câmara Municipal de Grândola
Número:31/A/97
Processo:R-2304/96
Data:23.04.1997
Área: A1

Assunto: URBANISMO E OBRAS – ORDENAMENTO DO TERRITÓRIO – URBANISMO – OBRAS DE CONSTRUÇÃO – LICENÇA – LOTEAMENTO URBANO – DESCONFORMIDADE – RESPONSABILIDADE CIVIL POR ACTO LÍCITO.

Sequência: Não Acatada.

I-Exposição dos Motivos

Dos factos

1. Tendo decidido, no termo da instrução do presente processo, concluir pela procedência da reclamação apresentada, formulei a Recomendação n.º 73/A/96, remetida a V.Exa. em 2 de Outubro pp., nos termos da qual, em síntese, foi sugerido que o procedimento de alterações, promovido pela Câmara Municipal de Grândola, ao alvará de loteamento n.º 6/90 fosse sustido e que a deliberação camarária de 30 de Novembro de 1994, que deferiu requerimento de licença de construção para o que erroneamente se designou lote n.º 1 (lotes n.ºs 1, 2 e 276 a 283), fosse declarada nula, de acordo com o disposto no art. 134º, n.º 2, do Código do Procedimento Administrativo, e cassado, consequentemente, o alvará de licença de obras n.º … .

2. Formulada a citada Recomendação, veio a Câmara Municipal de Grândola assumir posição, através de ofício …, dando cumprimento, em tempo, à norma contida no art. 38º, n.º 2, da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril.

3. Quanto ao que primeiramente foi recomendado – a cessação do procedimento municipal de alteração das prescrições contidas no alvará de loteamento n.º … – ali se responde que “a Câmara Municipal deliberou acatar a recomendação (…) com cuja fundamentação se conforma, sustando consequentemente o procedimento então em curso”.

4. Já quanto ao segundo aspecto, qual seja o da declaração de nulidade do acto de licenciamento das obras particulares, indica a Câmara Municipal de Grândola, após breve intróito apelativo da tutela da confiança devida aos titulares do alvará respectivo, “não adoptar imediatamente a recomendação”, por se tratar de assunto afecto à jurisdição administrativa, porquanto terá sido interposto recurso contencioso de anulação do acto reclamado, devendo o município “aguardar a decisão do Tribunal chamado a pronunciar-se, em homenagem à protecção da confiança do titular da licença”.

5. Procurou conhecer-se da existência de processo em curso no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, o que havia, inclusivamente, merecido referência na edição do jornal …, quando noticiou encontrar-se em apreciação naquele Tribunal um recurso contencioso de anulação “do acto que permitiu a anexação dos dez lotes em causa”, bem como “outro recurso administrativo, instaurado pelo Ministério Público, a pedido do Governador Civil de Setúbal, com efeito suspensivo do despacho da Câmara de Grândola que concede a licença para as obras em causa”. Com efeito, resulta do art. 53º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, o efeito suspensivo do recurso contencioso de anulação, quando interposto por órgãos do Ministério Público contra actos administrativos cuja invalidade resulte de infracção ao regime do licenciamento municipal de obras particulares.

6. Não viria, porém, a ser interposto recurso contencioso do acto de licenciamento das obras em causa, decorrente da participação feita pelo Senhor Governador Civil do Distrito de Setúbal, conforme despacho do Dmo. Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, de 9 de Dezembro de 1996.

7. Entendeu o Dmo. Procurador da República que, a recorrer contenciosamente daquele acto, ocorreria litispendência por identificação do pedido e da causa de pedir com o recurso dos recorrentes particulares, colocando o Tribunal “na posição de poder vir a proferir duas decisões antagónicas – art. 498º do C.P.C.”, sem prejuízo de se reconhecer pertinência à causa de pedir invocada e de se reconhecer também que o recurso a interpor sempre lograria ter efeito suspensivo, ao invés do que ocorre com o recurso interposto pelos particulares.

8. Em aditamento ao despacho de 9 de Dezembro pp., veio o Ministério Público indicar complementarmente não lhe ter sido o acto de licenciamento de obras participado pela Inspecção-Geral da Administração do Território, uma vez que, sob proposta do Exmo. Inspector-Geral, de 3-11-1995, prolatada sobre o relatório da inspecção promovida ao município de Grândola, decidiu Sua Excelência o Ministro do Equipamento, do Planeamento e da Administração do Território, em 4-04-1996, ordenar à Comissão de Coordenação da Região do Alentejo que procedesse a um levantamento exaustivo das situações de infracção ao PROTALI, promovesse a instrução dos respectivos processos de ilícito de mera ordenação social e determinasse os adequados embargos, abstendo-se de exercer o poder de participação ao Ministério Público.

9. Considera o Dmo. Procurador da República que as medidas ordenadas pelo Senhor Ministro apresentam uma maior eficácia relativamente à eventual obtenção da declaração de nulidade, no âmbito dos tribunais administrativos. Justifica esta asserção com duas ordens de razões. Por um lado, invoca a morosidade da Justiça Administrativa; por outro lado, pondera a dificuldade de execução da sentença que declarasse nulo o acto reclamado, pelos encargos trazidos à Administração e dada a aquisição dos imóveis por terceiros de boa-fé.

10. Sobre os dois despachos citados e na sequência de reclamação contra os mesmos apresentada, foi proferido o despacho do Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto, de 19.02.97, que veio confirmar a decisão de não interposição de recurso contencioso pelo Ministério Público, embora se baseie em motivação diversa.

11. Neste último despacho, afasta-se o argumento da litispendência e revelam-se dois outros fundamentos, relativos à deliberação camarária de alteração do loteamento de 16-07-1992. O Dmo. Procurador-Geral Adjunto considera que a falta de parecer prévio da Comissão de Coordenação da Região do Alentejo se mostra suprida com a emissão desse parecer em data posterior à data da alegada alteração. Mais considera que a nova redacção do art. 56º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 448/91, de 29 de Novembro (por força da Lei n.º 26/96, de 1 de Agosto), determinando, não já a nulidade, mas sim a anulabilidade dos actos de licenciamento de loteamentos não precedidos de consulta das entidades cujos pareceres, autorizações ou aprovações sejam legalmente exigíveis, como seria o requisito da autorização de dois terços dos proprietários dos lotes, acarreta a “eminente desvalorização desse requisito que o retira do regime das nulidades”.

12. Note-se que este último argumento é precedido de advertência feita quanto à aplicabilidade do novo regime de qualificação da invalidade do acto, porquanto o Procurador-Geral Adjunto afirma que “é inquestionável ser esse preceito direito substantivo só aplicável às relações jurídicas constituídas após a sua entrada em vigor”.

13. Ainda que chegados a este ponto, e não cumprindo apreciar das razões principais e acessórias que motivam o despacho de arquivamento do Ministério Público, nem da sua congruência, validade e justificação, seria de crer, no entanto encontrar-se acautelado o controlo da legalidade do acto que licenciou as obras em curso ao arrepio de disposições urbanísticas, já que os particulares teriam, no mesmo recurso contencioso de anulação do acto modificativo do alvará, pedido a declaração de nulidade daquele.

14. Não é assim, porém. Na verdade, por esclarecimento facultado à instrução deste processo pelo Ministério Público, em resposta a pedido de informações formulado em 17 de Janeiro pp., ficou conhecido que tal recurso não tem sofrido movimentação por motivo de baixa por doença do Mmo. Juíz a quem se encontra o processo concluso.

15. Note-se que o recurso interposto pelos particulares não tem efeito suspensivo, pelo que, não tendo sido declarada a nulidade do acto de licenciamento das obras nem decretado o embargo destas, o acto reclamado continua a produzir os seus efeitos, habilitando a continuação da execução das obras.

Do Direito
O Recurso Contencioso do Acto de Licenciamento

16. Invoca a Câmara Municipal de Grândola, em resposta à Recomendação formulada, o princípio da tutela da confiança dos titulares da licença de construção na consistência dos actos autorizativos praticados pela Administração Pública e a pendência de recurso contencioso cujo objecto igualmente se reconduz à validade daquele acto autorizativo, justificando a não adopção imediata da Recomendação.

17. Este segundo argumento merece-me duas objecções.

18. Em primeiro lugar, o estado do processo citado revela que não será para breve a decisão aguardada, porquanto, por vicissitudes alheias à vontade dos recorrentes particulares e do próprio Tribunal, não tem aquele sido movimentado.

19. Em segundo lugar, a intervenção do Provedor de Justiça não contende com a acção judicial em curso, nem no que se refere ao decurso de quaisquer prazos (que não se suspendem nos termos do art. 22º, n.º 1, da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril), nem no que concerne à actividade jurisdicional materialmente considerada.

20. Quanto a este último aspecto, é de notar que, quer a actuação do Provedor de Justiça, ao recomendar que seja declarada a nulidade do acto, quer a actuação da Câmara Municipal de Grândola, que venha a proceder em conformidade com o recomendado, encontram fundamento na lei. A intervenção do Provedor de Justiça pauta-se pela função que lhe é cometida no sentido de assegurar a justiça e a legalidade do exercício dos poderes públicos, sendo a sua actividade independente dos meios graciosos e contenciosos previstos na Constituição e nas leis (cfr. art. 23º, n.º 2 da CRP). A Câmara Municipal de Grândola, pode, como qualquer órgão administrativo e qualquer tribunal, declarar, a todo o tempo, a nulidade do acto ferido deste vício (cfr. art. 134º, n.º 2, do Código de Procedimento Administrativo).

21. Em última análise, a auto-declaração de nulidade do acto de licenciamento de obras em causa apenas acarretaria, quanto ao recurso contencioso, a inutilidade superveniente da lide ou a extinção do objecto desse processo.

A Tutela da Confiança dos Particulares

22. Quanto à tutela que merecem os titulares da licença de construção, pese a confiança que depositam na actuação administrativa e a segurança jurídica, sub-princípios informadores do princípio constitucional do Estado de Direito, deve a mesma, quanto a mim, ser ponderada nos moldes que se passam a enunciar.

23. É certo que o princípio da tutela da confiança baseia as expectativas legítimas dos cidadãos que esperam que os actos praticados pela Administração Pública incidentes sobre os seus direitos, posições jurídicas e relações produzam, de forma duradoura, os efeitos previstos na lei. Certo ainda que a tal se faz corresponder o princípio da tendencial irrevogabilidade dos actos administrativos constitutivos de direitos (cfr. CANOTILHO, J.J. Gomes, Direito Constitucional, 6ª ed., Coimbra., 1996, p. 373).

24. Restará conhecer se o princípio poderá ser invocado no caso vertente da nulidade do acto que aprovou a licença de construção.

25. O regime da revogabilidade dos actos administrativos é insusceptível, por natureza, de aplicação aos actos nulos, (art. 139º, n.º 1, alínea a), do Código de Procedimento Administrativo). Não tem sequer cabimento ponderar as restrições ao poder de revogação dos actos constitutivos de direitos, porquanto, tratando-se de acto ferido de nulidade, cede a tutela da confiança dos cidadãos ao princípio da legalidade da Administração (igualmente princípio concretizador do princípio do Estado de Direito), que não se compadece com a manutenção de um acto que enferma tão grave vício. Aliás, e primeiramente, a opção feita pelo legislador, ao afastar a regra geral da anulabilidade dos actos inválidos, indica que se “privilegia, assim, a tutela da legalidade urbanística em detrimento da tutela da confiança dos administrados nos actos de licenciamento” (ALMEIDA, António Duarte e Outros, Legislação Fundamental do Direito do Urbanismo Anotada e Comentada, II vol., Lisboa, 1994, p. 921).

26. A licença das obras de construção do bloco de apartamentos em causa, titulada pelo alvará n.º 27/95, é nula e de nenhum efeito, por se subsumir na previsão de uma relação de desconformidade reputada pelo legislador como das mais graves – a infracção ao disposto em alvará de loteamento em vigor (e, para mais, esgotadas as vias legais para a sua alteração, sustido o procedimento municipal de alteração e faltando o consentimento expresso de dois terços dos proprietários). Não se repete aqui o enunciado das razões que basearam a minha posição quanto ao assunto e motivaram a formulação da Recomendação n.º 73/A/96, para a qual se remete.

27. Deve, porém, atentar-se na não produção de efeitos da licença nula, independentemente da declaração da respectiva nulidade, conforme a lei prescreve (art. 134º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo).

28. Esta asserção é formulada no plano do direito, porquanto, de facto, decorrem as operações materiais das obras indevidamente autorizadas pela Administração.

29. E a lei não se mostra alheia ao problema, atentos os investimentos efectuados pelos donos das obras, os prejuízos causados à segurança do mercado imobiliário e a devida protecção aos terceiros de boa-fé. Com efeito, o preceituado no art. 52º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro (na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 250/94, de 15 de Outubro) vem constituir o município na obrigação de indemnizar pelos prejuízos causados aos interessados.

30. Parece justa a solução legal quando aplicada ao caso vertente. Se a lei comina com nulidade as licenças de obras emitidas pelas câmaras municipais sem acatamento da disciplina urbanística contida em instrumento adequado (o alvará de loteamento em vigor), e se este regime de invalidade é justificado pelo critério do interesse predominantemente protegido ou tutelado, qual seja o interesse público do respeito pela legalidade urbanística, que decorre da fundamental tarefa do Estado de assegurar um correcto ordenamento do território (art. 9º, alínea e), CRP), pondera também o interesse dos particulares que sacrifica.

31. É ainda no quadro dos corolários do Estado de Direito que se prevê o ressarcimento dos danos causados aos cidadãos pelo Estado, pois o Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis por prejuízos causados pelas acções ou omissões praticadas pelos titulares dos órgãos, funcionários ou agentes no exercício das suas funções (art. 22º CRP).

32. Deverá, por isso, a Câmara Municipal de Grândola, enquanto órgão executivo do município, cumprir a lei, declarando a nulidade do acto de licenciamento e ressarcindo, se houver dano. O princípio da tutela da confiança, a ser invocado, servirá, (a meu ver, de forma mais adequada), não para justificar a omissão da declaração de nulidade, mas para a adopção célere dessa declaração, evitando maiores prejuízos ao titular da licença e a eventuais terceiros de boa-fé.
33. Esta última asserção funda-se ainda na necessidade de evitar o constrangimento do erário público, tanto mais onerado quanto maior o lapso de tempo decorrido entre a emissão do alvará de licença de construção e a declaração da sua nulidade.

De acordo com o que ficou exposto,RECOMENDO:

Que a deliberação que a Câmara Municipal de Grândola aprovou em 30-11-1994, deferindo requerimento de licença de construção, a qual veio a ser titulada pelo alvará de licença de obras n.º 27/95, seja declarada nula e de nenhum efeito, nos termos do disposto no art. 134º, n.º 2, do Código do Procedimento Administrativo, por violação do disposto no alvará de loteamento n.º 6/90, conforme determina a norma contida no art. 52º, n.º 2, alínea b), do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel