Presidente do Conselho de Administração da Caixa Geral de Depósitos

Rec. nº 137/A/94
Proc.: R-641/94
Data: 07.09.1994
Área: A3

ASSUNTO: ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA – CGD – MOVIMENTAÇÃO DE DEPÓSITOS BANCÁRIOS DA HERANÇA – CABEÇA DE CASAL – ACTOS DE MERA ADMINISTRAÇÃO – PERMISSÃO DA MOVIMENTAÇÃO MEDIANTE PROVA DA QUALIDADE DE CABEÇA DE CASAL E DO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES FISCAIS

Sequência: Não Acatada

1. O Sr. M. … dirigiu-me uma exposição invocando que a Caixa Geral de Depósitos não permitia a sua mãe, M. …, na qualidade de cabeça-de-casal da herança deixada por óbito de M. …, movimentar a conta bancária nº … (Agência de Pombal) sem a intervenção dos restantes herdeiros, não obstante ter a mesma feito prova daquela qualidade e de que se encontravam cumpridas as obrigações fiscais.

2. Entendeu a Caixa presidida por V.Exa, quer nos ofícios dirigidos ao reclamante, quer em resposta aos esclarecimentos que solicitei, que a movimentação de depósitos bancários da herança é acto de disposição que, em consequência, só pode ser praticado conjuntamente por todos os herdeiros, em obediência ao preceituado no art. 2091º do Código Civil.

3. Não posso, contudo, deixar de exprimir o meu desacordo relativamente a tal entendimento e reconhecer razão ao reclamante, pelos motivos que passo a expôr.

4. A lei civil atribui ao cabeça-de-casal o dever de administração da herança, sem especificar os poderes que aí se integram, deixando, assim, à doutrina a tarefa de definição dos limites de intervenção e dos deveres inerentes àquele cargo.

5. Com recurso a critérios como o do fim de tal dever de administração, bem como o do confronto com outros regimes paralelos de administração de bens (a tutela, a administração de bens do casal) e com a alienação ou oneração de bens e ainda mediante a análise dos poderes e deveres particulares que a lei atribui ao cabeça-de-casal, a doutrina e alguma jurisprudência concluem, com relativa unanimidade, que actos de mera administração são os que visam a conservação e frutificação normal dos bens, sem alteração da integridade do património (Ac. Rel. Porto, de 22.2.80, CJ, V, 1, p. 56) e que “a administração cometida ao cabeça-de-casal não tem a extensão da conferida ao administrador dos bens do casal” (Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, I, Coimbra, 1990, p. 322).

6. Bem elucidativo é, sem dúvida, o contributo do Prof. Mota Pinto para a distinção entre entre actos de mera administração e de disposição:
“A consideração, quer num quer noutro tipo de situações, onde a lei opera com a dicotomia administração-disposição, da ‘ratio legis’ conduz à conclusão de os actos de mera administração ou de ordinária administração serem os correspondentes a uma gestão comedida e limitada, donde estão afastados os actos arriscados, susceptíveis de proporcionar grandes lucros, mas também de causar prejuízos elevados. São os actos correspondentes a uma actuação prudente, dirigida a manter o património e a aproveitar as suas virtualidades normais de desenvolvimento, mas alheia à tentação dos grandes voos, que comportam risco de grandes quedas.

Ao invés actos de disposição são os que, dizendo respeito à gestão do património administrado, afectam a sua substância, alteram a forma ou a composição do capital administrado, atingem o fundo, a raíz, o casco dos bens.” (Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra, 1989, p. 408).

7. Chegados a este ponto, cumpre analisar o acto de movimentação de depósitos bancários à luz dos critérios enunciados.

8. Não é correcto afirmar-se (vd. ofício nº …, de 17.3.94 do Director de Assuntos Jurídicos dessa Caixa) que o levantamento de dinheiro depositado, só por si, envolva a alteração da composição e estrutura do património. A “composição e estrutura” de dinheiro depositado numa conta bancária é, mercê da sua natureza fungível, necessariamente idêntica à do dinheiro à guarda do seu titular. Em rigor, a substãncia daquele bem só se modificaria se, com tal quantia, o administrador, por exemplo (aí, sim, exorbitando claramente os seus poderes) adquirisse outro bem.

9. Em boa verdade, a movimentação de uma conta bancária da herança não envolve, considerada isoladamente, a disposição dos bens que integram aquela, até porque, normalmente, tal acto assume o carácter de acto preparatório de outro acto, este sim, de administração ordinária ou de disposição.

Por exemplo, se o cabeça-de-casal levantar o dinheiro depositado para, com ele, efectuar novo depósito noutra instituição bancária com melhor remuneração e sem riscos acrescidos está a desempenhar, com zelo e dentro dos limites legais, a função de prover à conservação e frutificação normal dos bens da herança.

Assim já não sucederá, por exemplo, se com o dinheiro levantado o cabeça-de-casal adquirir outro bem. Contudo, nesta hipótese, acto de disposição é a alteração do património mediante a aquisição de bem diverso do que compunha a herança e não olevantamento do dinheiro depositado.

Acresce salientar que excede claramente o âmbito da relação de depósito a verificação, pelo Banco, do fim último da movimentação de uma conta.

10. Cumpre,por outro lado, atentar na circunstância de que, para cumprir algumas das obrigações expressamente prescritas na lei, pode o cabeça-de-casal necessitar de proceder à movimentação de depósitos bancários da herança e, nomeadamente, ao levantamento do dinheiro depositado.

Assim sucederá, por exemplo, se algum herdeiro ou o cônjuge meeiro exigir ao cabeça-de-casal a repartição de metade dos rendimentos a que têm direito, ao abrigo do disposto no art. 2092º do Código Civil, ou na distribuição a que houver lugar após a prestação de contas (art. 2093º nº 3 daquele diploma). Em tais hipóteses terá o administrador da herança de poder movimentar os juros dos depósitos bancários que integram aquele património.

De igual modo, o cabeça-de-casal poderá dispõr dos juros (enquanto frutos civis, nos termos do disposto no art. 212º nº 2 do Código Civil) para, na medida do que for necessário, custear as despesas de funeral e sufrágios e satisfazer os encargos da administração (art. 2090º nº 2 do Código Civil).

11. A qualificação do acto em análise como de mera administração merece, ainda, a concordância de importante doutrina, como é o caso de Lopes Cardoso (loc. cít., p. 328), Rabindranath Capelo de Sousa (Lições de Direito das Sucessões, II, Coimbra, 1990, pag. 79) e Pinto Coelho (Operações de Banco, I, Lisboa, 1962, p. 87).

12. Ao Banco apenas será de exigir que verifique o cumprimento das obrigações de natureza fiscal, em obediência ao disposto no art. 136º do Código da Sisa e Imposto Sobre Sucessões e Doações.

13. Realce-se, por último, que a lei civil não descurou a questão do controlo da administração da herança por parte do cabeça-de-casal, ao consagrar o dever de prestação anual de contas perante os herdeiros (art. 2093º) e ao prever sanções para a sonegação de bens (art. 2096º).

14. Atentas as razões expostas, tenho por bem formular a presente

RECOMENDAÇÃO

no sentido de a Caixa Geral de Depósitos permitir que M. …, na qualidade de cabeça-de casal da herança deixada por óbito de M. …, movimente a conta de depósitos nº … (Agência de Pombal) mediante prova daquela qualidade e do cumprimento das obrigações fiscais.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel