Ministro da Saúde

Rec. nº 148/A/94
Proc.:R-860/94
Data: 1994-10-06
Área: A3

ASSUNTO: SAÚDE – SANGUE – PROCESSO DE RECOLHA E ADMINISTRAÇÃO DE SANGUE – REGRAS ESPECÍFICAS QUANTO AO ARQUIVO DOS PROCESSOS – CONSAGRAÇÃO LEGISLATIVA

Sequência:

1. De entre as diversas questões inerentes à recolha e administração de sangue, assume, actualmente, especial relevância a questão da conservação da informação relativa àquelas actividades.

2. Constitui nota dominante da legislação sobre arquivos a inexistência de normas de carácter genérico sobre a avaliação, selecção, prazos de conservação e forma de eliminação – que deverão ser fixadas caso a caso -, opção que certamente tem em vista a salvaguarda da especificidade dos serviços donde provém cada arquivo.

3. Na verdade, o Decreto-Lei nº 447/88, de 10.12 remete para Portaria conjunta do ministro que superintende nos serviços e entidades envolvidos e do membro do Governo responsável pela cultura, a aprovação das normas que regulam a denominada “pré-arquivagem”, ou seja, a avaliação, selecção e eliminação de documentos e a definição dos prazos de conservação (entre outros aspectos).

4. Ao abrigo deste diploma, apenas foram publicadas três portarias, as quais regulam os arquivos da Direcção-Geral dos Cuidados de Saúde Primários e das Administrações Regionais de Saúde (Portaria nº 835/91, de 16.8), da Maternidade Dr. Alfredo da Costa (Portaria nº 1125/91, de 30.10) e do Hospital Distrital de Castelo Branco (Portaria nº 102/94, de 10.2), esta já na vigência do Decreto-Lei nº 16/93, de 23 de Janeiro.

5. O Decreto-Lei nº 16/93, de 23 de Janeiro, pretendeu consagrar “o regime geral dos arquivos e património arquivístico”, definindo arquivo, no respectivo artigo 4º, como o “conjunto de documentos, qualquer que seja a sua data ou suporte material, reunidos no exercício da sua actividade por uma entidade, pública ou privada, e conservados, respeitando a organização original, tendo em vista objectivos de gestão administrativa, de prova ou de informação, ao serviço das entidades que os detêm, dos investigadores e dos cidadãos em geral”.

6. Saliente-se, aliás, que se a formulação de tal definição é clara quanto à amplitude do âmbito de aplicação do mencionado diploma, não deixam, contudo de se suscitar dúvidas quanto à actual configuração do regime jurídico dos arquivos.
Na verdade, o regime constante do mencionado Decreto-Lei nº 16/93 parece pouco apto para regular a arquivagem da documentação que resulta da actividade corrente da Administração – como é o caso, por exemplo, dos estabelecimentos hospitalares – afigurando-se, ao invés, especialmente vocacionado para os arquivos de interesse histórico e político. Atente-se, para tanto, nas competências atribuidas aos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo (artigos 8º, 14º e 15º).

E por essa razão não podem também deixar de subsistir na mente do intérprete dúvidas quanto à manutenção em vigor do Decreto-Lei nº 447/88, de 10.12.

7. De todo o modo, a opção do Decreto-Lei nº 16/93 não é diversa da aludida em 2. quanto à definição das normas reguladoras dos arquivos.

Impondo-se aos serviços de origem a “implantação de sistemas de gestão de documentos” (art. 14º), ou seja, de operações e procedimentos que visam a racionalização e eficácia na criação, organização, utilização, conservação, avaliação, selecção e eliminação de documentos, nas diversas fases do arquivo (art. 13º), e aos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo (art. 15º nº 1) a sua promoção e apoio, devolve-se para decreto regulamentar a definição dos critérios de avaliação e selecção, assim como dos prazos de conservação e da forma de eliminação de documentos (art. 15º nº 2).

8. Casos há, a meu ver, em que tal preocupação de respeito pela especificidade de cada arquivo deverá ceder perante a necessidade de estabelecimento de regras uniformes, em função da natureza da informação arquivada e não do serviço que em concreto o origina.

Em tais casos encontra-se, sem dúvida, o dos arquivos dos processos de sangue, entendendo-se, por estes, toda a informação relativa quer à recolha, quer à administração de sangue em unidades de cuidados de saúde.

Na verdade, o exercício do direito ao ressarcimento dos danos causados com contaminação resultante de transfusão de sangue e derivados exige o acesso do lesado a toda a informação relativa àquela acção, bem como à sua conservação e justifica a adopção de procedimentos uniformes, de modo a que tal direito não seja, consoante a unidade de cuidados de saúde em questão, efectivo nuns casos e de exercício impossível noutros.

9. A primeira necessidade de regulação uniforme, nesta matéria, diz respeito ao tempo de conservação dos processos de sangue.

A duração do período de manifestação de algumas patologias – bastante longo nalguns casos – impõe que a informação relativa ao sangue seja conservada pelo tempo suficiente para, manifesta da a doença, se apurar se a mesma teve ou não origem na transfusão, sob pena de inviabilização do exercício do direito ao ressarcimento dos respectivos danos.

10. Atendendo, por um lado, à inevitável evolução da medicina e, portanto, à possibilidade de virem a ser identificadas novas patologias com períodos de manifestação mais longos do que os conhecidos actualmente e, por outro lado, à existência de métodos simples e pouco dispendiosos de conservação dos documentos, sou forçado a concluir pela mais-valia da conservação ilimitada daquela informação.

11. Objecto de regulação uniforme deve ser, ainda, a questão do conteúdo da informação a conservar ilimitadamente.

Também neste ponto, o exercício efectivo do direito de ressarcimento no caso de contaminação proveniente de transfusão impõe que as unidades de recolha e administração de sangue reúnam toda a informação necessária ao estabelecimento do nexo de causalidade entre a lesão verificada no receptor de sangue e aquela transfusão.

12. Para tanto, os processos de sangue deverão permitir o acesso a toda a informação relevante no que toca quer ao sangue administrado – nomeadamente os resultados dos exames efectuados – quer ao respectivo dador, sem deixar, contudo, de garantir o sigilo quanto à identificação deste.

A determinação concreta dos elementos que deverão constar dos referidos processos, a efectuar à luz das respectivas legis artis, há-de ter como critério orientador o objectivo de permitir estabelecer o nexo de causalidade supra referido.

13. Por último, importará fixar sanções para o incumprimento das obrigações por parte das unidades de recolha e administração de sangue.

Não obstante ser possível a aplicação de sanções pecuniárias bem como de carácter disciplinar, o certo é que o desrespeito culposo da obrigação de recolha e conservação da informação relevante dos processos de sangue deverá, ainda, determinar a inversão do ónus da prova, quando esteja em causa o estabelecimento do nexo de causalidade entre uma transfusão e o aparecimento de uma patologia, transmissível por essa via.

Desse modo se acolherá a doutrina constante do nº. 2 do art. 344º do Código Civil, nos termos do qual “há também inversão do ónus da prova quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado (…)”.

Não se prevendo tal cominação para a violação culposa da obrigação descrita, inviabilizar-se-la a qualquer cidadão o exercício do aludido direito de ressarcimento, uma vez que a este se tornaria impossível a prova de que a lesão proveio de transfusão, impossibilidade a cuja origem o mesmo seria totalmente alheio. Afigura-se, pois, de evidente justiça fazer recair sobre o orgão público faltoso o ónus de refutar o facto cuja prova impossibilitou.

14. Em face do exposto, tenho por bem formular a Vossa Excelência a presente

Recomendação,

no sentido de serem consagradas legislativamente regras específicas quanto ao arquivo dos processos de recolha e administração de sangue, as quais deverão conter, nomeadamente:

a) a obrigatoriedade de conservação ilimitada de toda a informação relevante no que respeita à recolha e administração de sangue;

b) a definição da informação que, no decorrer das actividades de recolha e administração de sangue, deve ser obtida e conservada ilimitadamente, definição a efectuar em obediência às legis artis da medicina e à luz do critério orientador que tem por objectivo permitir estabelecer o nexo de causalidade entre uma transfusão e a manifestação de uma patologia;

c) a cominação da violação culposa da obrigação de recolha e conservação ilimitada da informação relevante com sanções, nas quais se contará, para além de sanções disciplinares e pecuniárias, a inversão do ónus da prova.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel