Secretário de Estado da Administração Interna

Rec. nº 108A/94
Proc.:R-279/93
Data:1994-06-15
Área: A 1

Assunto: ESTRANGEIROS – DIREITO À NACIONALIDADE PORTUGUESA – NATURALIZAÇÃO.

Sequência: Acatada

I
EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS

(A)

– DOS FACTOS –

1. 0 Senhor …., cidadão Cabo-verdiano, casado com a Senhora … e pai de A, B, C, D e E , veio expor a situação que é descrita, a qual motivou a presente Recomendação:

A SUA EXCELÊNCIA, 0 SECRETÁRIO DE ESTADO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA,

( Formulada nos termos do art. 204, nº 1, alínea a), do Estatuto aprovado pela Lei nº 9/91, de 9 de Abril )

2. No ano de 1990, o Senhor … requereu a Sua Excelência o Ministro da Administração Interna a concessão da nacionalidade portuguesa por naturalização.

3. Nesse requerimento usou a qualificação “conservação” da nacionalidade portuguesa como objecto do seu pedido. De facto, o requerente nasceu em São Vicente – Cabo Verde no ano de 1940, sendo considerado cidadão português até 1977, momento em que, por ocasião da renovação do Bilhete de Identidade e por razões que lhe são alheias, lhe foi reconhecida a nova nacionalidade cabo- verdiana, tendo sido emitido o documento de identificação como cidadão estrangeiro.

4. O mencionado pedido foi indeferido por despacho de Vossa Excelência, datado de 28.01.1992, “por os rendimentos apresentados não serem suficientemente sólidos, por forma a garantir uma subsistência segura e efectiva, de acordo com o que estipula a alínea e), do nº 1, do artigo 6º, da Lei nº 37/81, de 3 de Outubro.” (cfr. documento 1 em anexo, ao processo da presente recomendação).

5. Nos termos da disposição invocada, o Governo pode conceder a nacionalidade portuguesa, por naturalização, aos estrangeiros que (…) possuírem capacidade para reger a sua pessoa e assegurar a sua subsistência”.

6. Mais lhe foi comunicado que, tratando-se do exercício de um poder discricionário, à Administração Pública é reconhecida a faculdade de conceder ou recusar a concessão da nacionalidade portuguesa por naturalização, mesmo se preenchidos todos os requisitos previstos na lei, o que, no caso do requerente, “nem sequer se verifica (…) pelo que a sua pretensão não pode ser deferida” (cfr. idem).

7. 0 requerente foi notificado do conteúdo do citado despacho em 11.02.1992.

8. Não conformado com o teor da decisão que mereceu o seu pedido, nem com o fundamento invocado como motivo do indeferimento, o Senhor …, em 17.06.1992, solicitar a reapreciação do processo (entenda-se procedimento) de naturalização, ao qual tinha sido atribuído o número …/90.

9. Ao supracitado pedido de reapreciação não foi dado provimento, por se entender que se mantinham os pressupostos que conduziram ao despacho de indeferimento, tendo sido arquivado o processo por despacho de Vossa
Excelência, de 20.07.1992, o que foi comunicado ao interessado em 08.08.1992 (cfr. documento 2 em anexo, ao processo da presente recomendação).

10. A manutenção dos pressupostos e a prática de um acto confirmativo, outra coisa não podem significar que a reiteração do juízo de insuficiência dos rendimentos do requerente, face ao requisito enunciado na já mencionada disposição legal que fundou, ao que parece, a decisão da Administração Pública.

11. Os rendimentos mensais auferidos pelo requerente ascendiam ao valor de Esc. 84.800$00 (oitenta e quatro mil e oitocentos escudos)- vencimento ilíquido, acrescido do montante de Esc. 1.689$00 (mil seiscentos e oitenta e nove escudos), conforme certidão comprovativa passada pela Câmara Municipal do Seixal, na qual desempenhava – e desempenha – as funções de canalizador, desde 01.09.1978 (cfr. documento 3 em anexo, ao processo da presente recomendação).

12. Em 16.11.1992, o Senhor … apresentou uma exposição de motivos dirigida a Sua Excelência o Ministro da Administração Interna, insistindo na revisão do
supramencionado juízo de insuficiência dos meios económicos de subsistência, porquanto a sua situação profissional se afigurava estável e compensadora, mas
foi oficiado no sentido de nada haver a acrescentar à resposta descrita no
ponto 9, não se desarquivando o procedimento em que interessado.

13. Em reclamação que me foi presente em 01.02.1993, o requerente descreveu a situação de que dou conta nos pontos anteriores. Na sequência dessa reclamação, foram solicitados esclarecimentos, através do ofício de 29.03.1993, dirigido ao Exmo. Senhor Secretário-Geral do Ministério da Administração Interna, cuja resposta passo a transcrever:

“0 processo nº ../90 (…) foi indeferido (…) por não reunir o requisito exigido pela alínea e) do nº 1 do art. 6º, da Lei nº 37/81, de 3 de Outubro, dado não ter feito prova de ser detentor de rendimentos considerados suficientes de modo a garantir a sua subsistência de forma efectiva e segura ” ( sublinhado
nosso ).

14. O facto evidenciado no ponto anterior foi contraditado pelo interessado que informou ter instruído o seu pedido com a declaração dos rendimentos auferidos.

15. Face a tal informação, mais solicitámos esclarecimentos sobre os critérios que são utilizados para aferir da suficiência dos rendimentos dos requerentes em processos de concessão da nacionalidade portuguesa por naturalização (cfr. ponto 2 do nosso ofício, de 14.10.1993).

16. Conforme solicitado no ofício supra referenciado, respondeu o Exmo. Senhor Director do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras que “as orientações estabelecidas sobre a matéria dos rendimentos apresentados são de natureza subjectiva e de aplicação casuística” (sublinhado nosso – cfr. documento 4 em anexo, do processo da presente recomendação).

17. Acontece que, no caso ora em questão, o interessado aufere os rendimentos mensais acima mencionados, está integrado no quadro de pessoal da Câmara Municipal do Seixal e é proprietário da casa onde reside com a família, sita em
Cruz de Pau – Seixal, na Quinta da Princesa, Lote 7, nº 8, 14 andar – direito.

18. Relativamente ainda à situação do interessado, é igualmente do conhecimento de Vossa Excelência que reside no nosso país desde Novembro de 1974, estando integrado – com a sua família – na comunidade em que se insere; fala, naturalmente, português e foi alheia à sua vontade a perda da nacionalidade portuguesa, não obstante se desconhecer – pelos dados a que tivemos acesso – se estes e, porventura, outros factos relevantes foram ou não objecto da ponderação
conducente à decisão que recaiu sobre o seu pedido de naturalização, porquanto não foram prestadas a este órgão do Estado quaisquer outras informações adicionais.

(B)
– DO DIREITO –

A) DA DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA

19. A norma sempre invocada como fundamento legal da denegação do pedido do requerente caracteriza-se, juridicamente, por dois aspectos que, embora concorrentes, cumpre distinguir:

a) o facto de consubstanciar o exercício de um poder discricionário;
b) o facto de conter, em sede de previsão, conceitos vagos e indeterminados que serão preenchidos aquando da sua interpretação.

20. A discricionariedade na concessão da nacionalidade portuguesa por naturalização é traduzida na faculdade de deferir ou indeferir os pedidos nesse sentido, apresentando-se como um exemplo de discricionariedade de escolha, na terminologia usada pelo Professor Sérvulo Correia (cfr. do Autor, LEGALIDADE E AUTONOMIA CONTRATUAL NOS CONTRATOS ADMINISTRATIVOS, Coimbra, 1987, pp. 109-110).

21. A norma que confere o poder discricionário revela uma abertura de previsão que passa (também) pela interpretação e aplicação de conceitos jurídicos indeterminados, como é o caso do requisito da “capacidade para assegurar a sua
subsistência”, previsto na sempre invocada alínea e), do nº 1, do artigo 6º, da Lei da Nacionalidade (Lei nº 37/81, de 3 de Outubro).

22. A norma em causa – sobre cuja constitucionalidade tenho as maiores dúvidas, porque atentatória do princípio da não discriminação em função da situação económica ou condição social, consagrado no nº 2, do artigo 13º, da Lei Fundamental – apela a critérios de ordem económica, tendo por objectivo , nas palavras do Dr. Garcia Pereira, “evitar que o naturalizado venha constituir um encargo para o Estado” (cfr. LEI DA NACIONALIDADE ANOTADA, Lisboa, 1984, p. 14, anotação ao art. 6º). A interpretação de conceitos deste tipo entende-se revisível judicialmente, pois, em bom rigor, será apenas um o seu sentido e não tantos quantos a Administração entenda dar-lhe. Corroborante, o Professor Sérvulo Correia considera que “a interpretação abstracta do conceito constitui uma tarefa que envolve meros juízos objectivos formulados com base numa técnica
jurídica, não devendo pressupor qualquer liberdade de preenchimento “

23. Quanto à aplicação do conceito ao caso concreto do requerente, a margem de apreciação da Administração é mais ampla, pois envolve um juízo de prognose análise. A pergunta é:

– Assegurará o Senhor … a sua subsistência ou a sua naturalização acarretará um encargo excessivo para o Estado Português?

24. Contudo, quer pela resposta que mereceu o pedido do interessado, quer pelos esclarecimentos prestados à Provedoria de Justiça, não parece que o problema tenha sido equacionado nos termos descritos no ponto anterior. Com efeito, não é dado a conhecer qualquer juízo formulado, quer de interpretação, quer de aplicação do preceito legal invocado.

25. Concretizando – sobretudo no que concerne a aplicação da disposição legal – várias e, quanto a mim, legítimas questões podem ser suscitadas. Desde logo, notou-se uma contradição entre a resposta dada ao interessado (cfr. ponto 4) e a resposta ao nosso pedido de esclarecimentos (cfr. ponto 13), pois não ficou claro se o indeferimento se baseou na falta de elementos demonstrativos da situação económico-profissional do requerente ou num verdadeiro juízo subsuntivo da mesma situação na previsão normativa invocada.

26. Contraditada a falta probatória, passo a analisar a segunda hipótese da questão. Considero que, de certa forma, e não obstante serem autonomizáveis as noções de discricionariedade e de conceitos jurídicos indeterminados, o acto discricionário de indeferimento do pedido de naturalização foi marcadamente condicionado pela interpretação e aplicação do conceito contido na norma que
funda o exercício de poderes discricionários.

27. Nesses termos, a aplicação do conceito afigura-se como questão prévia – mas essencial – na resolução do caso exposto, ou seja, embora não se propugne a auto-vinculação do órgão decisório, algum critério há-de ser seguido na avaliação da situação. A margem de livre apreciação encontra, obviamente, limites e deles nos dá conta a passagem do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo que passo a transcrever:

“Nada obsta que, ao decidir, a Administração se socorra de um ou de alguns esses critérios ou os afaste e se apoie em outros que tenha por mais relevantes. Mas o que se impõe é que os factos nos quais se baseia para decidir sejam verdadeiros, isto é, que a percepção que deles tem corresponda à realidade. O conhecimento preciso do caso concreto é condição necessária da discricionariedade, que se não estende à própria existência material da situação de facto. A definição da situação concreta está fora da discricionariedade e no caso de desconformidade com o real o acto pode ser atacado com fundamento em erro nos pressupostos, integrador do vício de violação de lei” (Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, 1ª Secção, de 8 de Abril de 1986, in ACÓRDÃOS
DOUTRINAIS DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO, ano XXVI, nº 304, p. 489).

28. Pelo exposto se conclui pela sindicabilidade do juízo da Administração, o que, aliás, é ilustrado nas linhas de outro acórdão, onde se lê que:

” O Tribunal, sem qualquer invasão no uso desse poder de ponderação, sem invasão do uso desse poder discricionário de escolher a solução, pode controlar a existência dos pressupostos que a própria Administração elegeu. (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, Tribunal Pleno, de 21 de Janeiro de 1988, in ACÓRDÃOS DOUTRINAIS DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO, ano XXVIII, nº 327, p. 347).

29. Com os dados facultados pela Administração, permito-me duvidar da real constatação dos factos a ter em conta, nomeadamente quanto à situação económico-profissional do requerente, o que passa não apenas pelos rendimentos por si auferidos, mas também pelo facto de a casa onde reside com a família ser propriedade sua.

30. Não obstante a consideração do vício referido – que atenta nos pressupostos de facto -, acresce que a subsunção dos próprios factos na previsão legal se revela errónea. Com isto quero dizer que houve um erro manifesto na qualificação desses mesmos factos, ou seja, o requisito legal da ” capacidade para assegurar a sua subsistência ” é juridicamente respeitado por quem apresenta uma situação
económico-profissional estável e sólida, como é o caso do requerente.

31. Este entendimento é demonstrável com o recurso a um critério comparativo tendo por parâmetro o valor do salário mínimo nacional (garantia consagrada no artigo 1º do Decreto-Lei nº 69-A/87, de 9 de Fevereiro) e que, no ano em curso, ascende aos montantes de Esc. 49.300$00 e de Esc. 43.000$00, conforme estipulado no artigo 1º, do Decreto-Lei nº 79/94, de 9 de Março. Parece-me notório o facto de os rendimentos mensais do Senhor … largamente ultrapassarem os valores que o legislador considera idóneos para assegurar a subsistência dos portugueses.

32. Não foi este critério, de natureza objectiva, seguido pela Administração na decisão do caso em análise. Outro poderia ser, desde que explicitado, mas nem isso se verificou no caso em apreço.

33. Num Estado de Direito – como o nosso – não pode a Administração escudar-se em orientações “subjectivas” e “casuísticas” quando sobre ela impende o dever de decidir.

34. A aplicação casuística do Direito não é mais do que a forma normal de aplicação das regras jurídicas. Isso só pode significar que a Administração, fixados os pressupostos na lei, todos deve ponderar relativamente ao caso sobre o qual decide e tendo em vista a prossecução do interesse público. Significativo é o ensinamento da jurisprudência quando refere que tal “implicaria a ponderação da situação concreta, face a cada um dos pressupostos tidos por relevantes, tendo em vista demonstrar os verificados e os não verificados e, além disso, o valor atribuído a uns em confronto com os outros” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, 1ª Secção, de 15 de Novembro de 1984, in ACÓRDÃOS DOUTRINAIS DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO, ano XXIV, nº 280, p. 420).

35. Face ao descrito no ponto anterior, forçoso é concluir por uma falha na ponderação que se impunha para a decisão do caso concreto, para mais desfavorável ao interessado.

36. Nem se invoque, a esse título, que mesmo verificados todos os pressupostos, pode a Administração denegar o pedido do interessado, pois, ainda assim, teria necessariamente de fundamentar a sua decisão, de modo a explicitar o íter volitivo que a funda. 0 exercício de um poder discricionário não isenta a Administração de tal dever; pelo contrário, antes o “exige especialmente”, como escreve o Professor Vieira de Andrade (cfr. do Autor, 0 DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO
EXPRESSA DE ACTOS ADMINISTRATIVOS, Coimbra, 1991, p. 136).

37. Mesmo sendo a aplicação casuística a forma normal de aplicação do Direito, convém não perder de vista que, no âmbito da actuação administrativa, o Bem Comum é a pauta, a justificação e o quadro de qualquer intervenção da Administração Pública. 0 administrador quando actua, e nas palavras sempre actuais do Professor Afonso Queiró, “deve ter em mente que está servindo o Direito como vontade abstracta e não o direito “decisionista” e individualizado,
o direito de cada caso concreto” (Cfr. 0 PODER DISCRICIONÁRIO DA ADMINISTRAÇÃO, 1944, p. 261).

38. Maior reparo merece, todavia, a invocação de um critério subjectivo na decisão do caso concreto ou, em termos mais rigorosos, na aplicação do conceito jurídico indeterminado da capacidade de subsistência. Os dois aspectos estão relacionados na medida em que a fundamentação do acto discricionário de indeferimento circunscreve-se à consideração do não preenchimento do requisito legal previsto na alínea e) do nº 1 do artigo 6º da Lei da Nacionalidade. Assim sendo,

B) DA FUNDAMENTAÇÃO E DA MOTIVAÇÃO DO ACTO

39. É absolutamente intolerável o recurso a um critério subjectivo na fundamentação do acto administrativo. A obscuridade de tal critério equivale à não fundamentação do acto, o que, só por si, atenta contra a garantia consagrada
ao nível constitucional – formulada no nº 3, do artigo 268º, da Lei Fundamental -, como ao nível legal – nos termos das disposições contidas nos artigos 124º e 125º do Código do Procedimento Administrativo. Desrespeitada esta garantia,
não é possível “assegurar a racionalidade e a controlabilidade dos momentos característicos da função administrativa, daqueles em que os órgãos da Administração tomam decisões de autoridade que produzem modificações jurídicas no mundo exterior” (cfr. Vieira de Andrade, ob. cit., p. 215).

40. Invoca-se aqui a conclusão a que chegou o Supremo Tribunal Administrativo, decidindo sobre caso não dissemelhante do exposto:
“O indeferimento justificado apenas por determinadas situações concretas se não enquadrarem em critérios, que se não revelam, ( … ), não pode considerar-se suficientemente fundamentado por impedir que se ajuíze adequadamente da legalidade do acto” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, 1a Secção, de 4 de Julho de 1985, in ACÓRDÃOS DOUTRINAIS DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO, ano XXV, nº 291, p. 273).

41. A fundamentação não se entende estranha e absolutamente estanque da motivação do acto, pois revela a justificação do mesmo, devendo ser balizada por todos os pressupostos legais. Se já tive oportunidade para pôr em causa a justificação do acto, passo ao derradeiro – e, talvez, fundamental – aspecto da questão:

42. Uma motivação adequada e suficiente deverá “revelar critérios ou pontos de vista idóneos a determinar aquele tipo de conteúdo e (…) não ignorar interesses necessariamente implicados” (cfr. Professor Vieira de Andrade, ob. cit., p. 255), não se compadecendo com critérios de teor casuístico e subjectivo, a meu ver inidóneos e iníquos, por permitirem toda a espécie de arbitrariedades e, logo, de injustiças.

43. Uma motivação como a referida indicia um vício de desvio de poder, já que a ponderação feita em nada deve ao fim da norma que atribuiu o poder discricionário de decisão, invalidando o acto praticado.

44. 0 fim da norma em causa há-de necessariamente coincidir com a prossecução do interesse público, fundamento e limite de toda a actuação administrativa. Ainda que o legislador tenha optado – como é o caso – por conceder ao agente a faculdade de escolha dos bens e meios vocacionados para a satisfação de necessidades públicas, essa “escolha não é deixada ao arbítrio do administrador, é uma eleição essencialmente teleológica, toda compenetrada da ideia de interesse público”, como ensina o Professor Rogério Soares (cfr. INTERESSE PÚBLICO, LEGALIDADE E MÉRITO, Coimbra, 1955, p. 149).

45. Nesse sentido, o dever de não agir arbitrariamente é instrumental em relação ao princípio da prossecução do interesse público. 0 arbítrio revela-se, não tanto na escolha indiferenciada dos meios, mas antes na possibilidade de o agente “escolher livremente os fins e adequar-lhes, por isso mesmo, os bens segundo critérios incontroláveis”, nas palavras ainda do Professor Rogério Soares (cfr. ob. cit., p. 226); conclui-se que “agir não arbitrariamente, para a
Administração, significa não lhe ficar a possibilidade de sobrepor o fim subjectivo ao fim legal” (cfr. ibidem). Não será demais aqui constatar a incontrolabilidade dos critérios invocados como fundamento da decisão que recaiu
sobre o pedido de naturalização do Senhor … .

46.Insiste-se, por isso, no vício de desvio de poder, entendido este, tão somente, como “a violação da regra que impõe à Administração não agir arbitrariamente” (na esteira de Rovelli, citado pelo Professor Rogério Soares, ob. cit., loc. cit.).

C) DO DIREITO Á NACIONALIDADE

47. Parece-me particularmente grave que uma conduta como a descrita e analisada nos pontos anteriores tenha ocorrido num domínio tão importante como o do Direito da Nacionalidade.

48. Com efeito, o direito à cidadania mereceu consagração constitucional, contendo-se no artigo 26º, nº 1 e 3, da nossa Lei Fundamental. Este direito consiste, segundo o Professor Gomes Canotilho e o Dr. Vital Moreira, “no direito
a adquirir (ou a readquirir) a qualidade de cidadão português, se preenchidos os respectivos requisitos, e bem assim no direito de não ser privado dela por acto dos poderes públicos, a não ser nos casos previstos na lei” (cfr. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA ANOTADA, 3ª edição revista, Coimbra, 1993, p. 180).

49. Acresce que deve este preceito ser interpretado e integrado de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, a qual estatui, no nº 2 do seu artigo 15º, que:

“Ninguém pode ser arbitrariamente privado (…) do direito de mudar de nacionalidade.”

50. Concluir pela violação do fundamental direito à nacionalidade não é mais que o corolário lógico de tudo o que foi anteriormente exposto.

D) DA LEGALIDADE E DO MÉRITO

51. Apontados os vícios que ferem a decisão de indeferimento do pedido de concessão da nacionalidade portuguesa, por naturalização, feito pelo Senhor … – ilegalidades (infelizmente) não corrigidas, quer em sede graciosa, quer em sede contenciosa -, permito-me ainda equacionar o mérito da mesma decisão.

52. Nesses termos – e mesmo que se considerem sanados os vícios detectados (excepção feita ao vício de violação do conteúdo essencial de um direito fundamental, que gera a nulidade do acto administrativo, nos termos da alínea d) do nº 2 do artigo 133º do Código de Procedimento Administrativo) – impõe-se não ignorar a injustiça cometida, que subsiste, afectando o interessado e a sua família, cujos fortes laços a Portugal apenas se enfraquecem na denegação da respectiva nacionalidade, sem qualquer proveito correspondente para a Comunidade Política Nacional.

53. 0 mérito ou demérito de um acto administrativo é apreciado com o recurso a padrões de boa conduta, importando o confronto com regras não jurídicas – as regras de boa administração, relativamente às quais não pode o Provedor de Justiça, especialmente, ser alheio. Não se procura aqui a conformidade formal do acto à lei (ou ao interesse público abstracto nela plasmado), pois isso respeita à legalidade do acto, mas antes a sua adequação substancial ao interesse público concreto a prosseguir, descobrindo-se este na ponderação dos vários interesses em concorrência. As falhas na ponderação e hierarquização destes podem ainda ser
controladas em sede de mérito, o que, pelo que ficou dito, se impõe no presente caso.

54. Neste campo afigura-se particularmente adequada a presente intervenção, pois, em relação ao Provedor de Justiça, “é sobretudo na zona do mérito da acção
administrativa que a sua actividade se revela mais útil” (cfr. Professor Freitas do Amaral, DIREITO ADMINISTRATIVO, volume IV, Lisboa, 1988, p. 67).

55. Saindo do âmbito da legalidade do acto e perspectivando o seu mérito, a revogação do acto administrativo de indeferimento do pedido de naturalização é regulada pelo artigo 140º do Código de Procedimento Administrativo, que começa por consagrar a regra da livre revogabilidade dos actos válidos.

56. Com efeito, sanados os vícios que originariamente atingiam o acto – a seu tempo apontados -, já não é possível fundar a revogação na ilegalidade desse acto, sob pena de invalidar o próprio acto revogatório. É legítima, todavia, a defesa da revogação do acto por motivos de oportunidade e conveniência. Indo mais longe, insistiria na necessidade dessa revogação, aceitando como boas as palavras dos Drs. José Luís Araújo e João Abreu da Costa quando, em anotação ao citado artigo 140º, escrevem que “( …) detectada a oportunidade e a conveniência da revogação e, assim, a inconveniência e a inoportunidade na conservação do acto a revogar, deve a Administração praticar o acto revogatório,
em consequência do dever de boa administração” (cfr. CÓDIGO DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO ANOTADO, Aveiro, 1993, p.663).

57. Note-se, no entanto, que, aceitando-se a argumentação expendida nos pontos 47 a 50 da presente Recomendação, isto é, admitindo-se que ocorreu a violação do conteúdo essencial do direito à nacionalidade, a revogação do acto não é possível ( nos termos, aliás, da alínea a), do nº 1, do artigo 139º, do Código do Procedimento Administrativo), mas a nulidade invocada a propósito pode – e deve – ser declarada a todo o tempo.

CONCLUSÕES

58. De acordo com o que ficou exposto, e em nome da atribuição constitucional que me é conferida no sentido da prevenção e reparação de injustiças (art. 23º, nº 1, da Constituição), entendo fazer uso dos poderes que me são confiados pela Lei nº 9/91, de 9 de Abril, no art. 20º, nº 1, alínea a) e, como tal,

RECOMENDAR:

– A declaração de nulidade do acto de indeferimento do pedido de concessão da nacionalidade portuguesa, por naturalização – pedido formulado pelo Senhor … e apreciado no processo que mereceu o número …/90 -, nos termos expostos nos pontos 47 a 50, bem como no ponto 57, da presente Recomendação.

– Ainda que assim não se entenda, e em alternativa, a revogação do mencionado acto de indeferimento do pedido de concessão da nacionalidade portuguesa, por naturalização, apelando-se a razões de mérito e tendo em conta a regra consagrada no já citado nº 1, do artigo 140º do Código de Procedimento Administrativo.

– A reapreciação do pedido acima mencionado, à luz dos fundamentais princípios da legalidade, igualdade, imparcialidade e proporcionalidade, bem como dos deveres de boa administração e da prossecução do interesse público, que regem toda a actuação administrativa, mesmo se no exercício de poderes discricionários conferidos pela lei, com a produção de um acto de sentido contrário ao formulado, isto é, deferindo-se o pedido do Senhor … .

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

JOSE MENÉRES PIMENTEL