Ministro da Saúde

C/C:
Ministro da Justiça
Ministro do Ambiente

Rec. nº 42/A/94
Proc.:IP.13/93
Data:1994-02-11
Área: A3

Assunto: SAÚDE – HEMODIÁLISE – UNIDADE DISTRITAL DE ÉVORA DE HEMODIÁLISE – DEFICIÊNCIAS DE FUNCIONAMENTO – RESPONSABILIDADE CIVIL SOLIDÁRIA DO ESTADO POR LESÕES E MORTES – CRIAÇÃO DE FUNDO PARA INDEMNIZAR PROVISORIAMENTE DOENTES INFECTADOS – ASSISTÊNCIA SOCIAL.

Sequência: Não acatada

I – ANTECEDENTES

1. Em 01.04.93, numa conferência de imprensa do Sindicato dos Médicos da Zona Sul foi referida a existência de graves deficiências de funcionamento da Unidade de Hemodiálise (UH) do Hospital Distrital de Évora (HDE) a qual provocara, no decurso do mês anterior, a morte de insuficientes renais crónicos (IRC) que ali recebiam assistência regular.

2. Face ao impacto que aquela informação teve na comunicação social e às intervenções públicas de diversos responsáveis desse Ministério, foram por mim solicitadas em 16.04.93, ao Inspector-Geral de Saúde (IGS) diversas
informações, incluindo uma cópia do processo de inquérito preliminar então em curso.
Paralelamente, solicitei e recolhi junto de outras fontes variada documentação relativa ao mesmo assunto.

3. Por ofício de 03.06.93 o IGS remeteu-me “para conhecimento e devidos efeitos”, fotocópias certificadas do Relatório Final do processo de inquérito n°- 403/93-IGS.

4. Do Relatório extrai-se que no dia 01.04.93 foi pelo IGS determinada a deslocação de um inspector assessor ao HDE para uma primeira abordagem da situação.
Na mesma data de 01 .04.93 recebeu o IGS ofício do Conselho de Administração (C.A.) do HDE solicitando “a instauração de um processo de averiguações”, “visando o esclarecimento e resolução do problema”.

5. o Relatório Final, com as propostas nele feitas, sustenta o despacho de 25.05.93 do Ministro da Saúde, que instaurou procedimento disciplinar a funcionários e agentes do HDE, cuja conclusão ainda desconheço.

6. Depois de analisada a documentação reunida nesta Provedoria passo a destacar o contexto e os factos que suportam a análise que posteriormente desenvolvo.

II – CONTEXTO

7. Verificava-se em princípios de 1993 uma situação generalizada de seca em todo o território nacional, com particular incidência no Alentejo.
A seca decorria desde o Inverno de 1991 e, além de notória, era referida frequente e dramaticamente nos órgãos de comunicação social.

8. Entrara em vigor o Dec-Lei nº 74/90, de 7 de Março, fixando características mínimas de qualidade da água e regras objectivas para actuação da Administração Pública (directa, indirecta e autónoma).

9. Estavam em vigor o Dec-Lei nº 19/88 e o Dec-Reg. nº 3/88, respectivamente de 21 e 22 de Janeiro, que regem a natureza, orgânica e funcionamento dos hospitais públicos, e regulam os órgãos de gestão hospitalar, sua composição, competência e funcionamento, e responsabilidade dos respectivos titulares.

10. Fora aprovada a Lei de Bases da Saúde (Lei nº 48/90, de 24 de Agosto) regulamentada em 15 de Janeiro pelos Dec-Leis nºs 1 0 e 11/93-o primeiro extinguiu a Direcção-Geral dos Cuidados de Saúde Primários (DGCSP) e criou a Direcção-Geral da Saúde (DGS), mantendo em funcionamento os serviços daquela até à entrada em vigor do Dec-Lei nº 345/93, de 1 de Outubro.

III – FACTOS

11. No processo de inquérito reconhecem-se as deficiências de funcionamento da Central de Tratamento de Águas da UH do HDE.

12. Apura-se que essas deficiências foram verificadas inicialmente em Set/90, mas que se tornaram frequentes a partir de Jan/92.
Essas deficiências traduziram-se na perda de rendimento do sistema de filtragem da água utilizada no tratamento dos IRC, repetidamente descendo o débito da água filtrada abaixo dos 3801/h referidos como indispensáveis para a correcção e segurança do tratamento.

As sucessivas lavagens das membranas,substituição de filtros, membranas e módulos de osmose inversa asseguravam a permanência do consequente aumento daquele débito de água, e apurou-se que a insuficiência sistemática da água resultava da colmatagem das membranas e dos filtros com matéria orgânica e sais minerais transportados pela água da rede de abastecimento público.

Tal situação conduziu a empresa especializada que instalou e prestava assistência ao equipamento (ENKROTT) a propor em Fev/Março de 1992 a construção de um novo depósito para recolha de água pré-tratada.

A construção, não prevista no plano de actividades, nem no orçamento do HDE, importando cerca de 3.000 contos de encargos, foi considerada prioritária e autorizada pelo Administrador-Delegado, Dr. …… .
Não obstante, iniciou-se apenas em Outubro/92.
Na mesma altura o Administrador-Delegado autorizou também a remodelação do sistema de filtração.

13. Durante o mês de Março/93, faleceram 9 IRC que recebiam assistência no HDE, sendo, até esta data, de 22 o total de mortes conhecidas.

14. Já em 1992, os resultados das análises ao sangue dos IRC assistidos no HDE acusaram níveis muito elevados de alumínio sérico, situação que se repetiu em inícios de 1993, sem que tal, associado às deficiências assinaladas, tenha constituido um alerta, quer para os médicos da UH, quer para o Director Clínico.

15. Os IRC assistidos na UH, quando necessário, eram internados em Medicina II.
Em 1992, verificaram-se 179 internamentos de IRC.
Em Março de 1993, o Dr. ….. solicitou a intervenção do médico neurologista para examinar diversos IRC que apresentavam sintomatologia do foro neurológico (compatível com a encefalopatia metabólica/tóxica).

A UH, o Serviço de Medicina II e o Serviço de Neurologia funcionam sob a coordenação técnica do Director-Clínico.

16. Foram detectadas deficiências no tratamento e conteúdo analítico das águas das Estações de Tratamento de Águas, no equipamento de dosagem do sulfato de alumínio, nas condutas da água de abastecimento público.

17. As deficiências da água da rede suscitaram diversas reuniões de técnicos da Câmara Municipal de Évora (C. M. E.), da Administração Regional de Saúde de Évora (A. R. S.), do H.D.E. e ENKROTT que foram sucessivamente sugerindo e adoptando diversas medidas correctoras.

Em Fev/Março-92, a ENKROTT aconselhou a C.M.E. a usar polielectrólitos.

Mas a maioria das sugestões e/ou correcções, foram ineficazes até 1.4.93, quer quanto à água da rede de abastecimento público, quer quanto à água utilizada na UH do HDE.

Todavia nunca as autoridades ou serviços de saúde afirmaram à população a não potabilidade da água de consumo.

18. Não resulta claro da documentação analisada que o pessoal afecto à UH tivesse sido devidamente formado e, periodicamente, reciclado quanto às diligências inerentes ao bom funcionamento da Central de Tratamento de Água.

19. As medidas que se revelaram eficazes na melhoria da qualidade da água para os dois fins acima referidos começaram a ser tomadas, atenta, persistente e eficazmente pelas entidades competentes dependentes do Ministério da Saúde a partir da denúncia pública das deficiências e mortes já aqui mencionadas.

20. Evidenciam-se as conclusões dos peritos ouvidos no inquérito, segundo os quais “na instalação de um centro de hemodiálise é pressuposto que a água a ser utilizada provém da rede de abastecimento público. As características qualitativas especiais para tal utilização exigem tratamento específico que é da inteira responsabilidade desse Centro” (fls. 1057 dos autos).

21. 0 inquérito promovido pela IGS, assim como o ofício de 21.09.93 do IGS, repetidamente referem a inexistência de provas do envolvimento ou do simples conhecimento pelos membros do C.A. das práticas incorrectas e do funcionamento sem garantias de qualidade e segurança da UH.

22. 0 C.A. do HDE terá tido conhecimento, através de uma primeira informação oral do Nefrologista Dr. ….., em 23.03.93, da “situação que se estava a passar com os doentes ( … ).

E a primeira informação escrita dirigida ao C.A. pelo mesmo médico data de 28.03.93.

23. Não obstante, em 01.04.93, o C.A. insistia em declarar e escrever que “o funcionamento da UH dava garantia de qualidade e segurança” o que também foi admitido pelo Director-Geral da Saúde em comunicado de 03.04.93.

24. Nos dias 4 e 5.04.93 foram transferidos para outras UH de Lisboa doentes assistidos em Évora.

25. Não estava aprovado,até 01.04.93,o Regulamento Interno do HDE.
Apenas vigoravam algumas normas de procedimentos de sectores pontuais, nas quais se não incluiam as referentes à UH que entrou em funcionamento em 1986.
Estas foram aprovadas sete anos depois em reunião do C.A. de 12.05.93.

26. A Autoridade de Saúde, antes de 01.04.93, não desempenhou as suas funções de órgão do Estado responsável pela vigilância da actuação e decisões dos serviços públicos com reflexos na saúde pública nem tomou medidas coercivas sobre a matéria.

27. Também a divulgação em 01.04.93 das ocorrências na UH não determinou a Autoridade de Saúde a proceder à oportuna e discricionária tomada de medidas, inclusivé a do encerramento,daquela Unidade.

28. Os serviços de saúde e a Câmara não comunicavam regular e atempadamente à DGQA os resultados das análises cujos valores excediam os limites fixados, o mesmo sucedendo com a Autoridade de Saúde.

29. Não resulta da documentação analisada que, quer a Direcção-Geral da Qualidade do Ambiente (DGQA), quer a Direcção-Geral dos Recursos Naturais (DGRN), quer a Comissão Coordenadora Regional do Alentejo (C. C. R.) tenham tomado quaisquer iniciativas tendentes a zelar pela existência e reforço das condições de abastecimento de água com qualidade, face ao prolongamento da situação de seca.
A DGQA limitou-se a pedir, rotineiramente, em Julho de 92 e Abril de 93, os mapas com os registos das análises efectuadas, nos anos imediatamente anteriores.

E a Autoridade de Saúde só em 22.04.93, apesar de quase diariamente a comunicação social fazer referência ao sucedido na UH do HDE e ao excesso de alumínio na água da rede pública, solicitou a intervenção dos serviços da DGQA por recomendação do Ministro da Saúde.

30. Os IRC que estiveram internados em unidades de Lisboa e, por isso, afastados do seu agregado familiar, deram origem a significativas despesas de transportes e alimentação de familiares que os visitaram, visitas que contribuiam para o bem estar dos doentes muito afectados pelo desenraizamento e pelo dramatismo da situação.

31. os familiares dos IRC entretanto falecidos perderam na maioria, se não na totalidade dos casos, uma fonte de receita (as pensões de reforma ou de sobrevivência) essencial para a subsistência do agregado familiar cuja situação social se encontra significativamente agravada.

32. As despesas com os funerais dos IRC excedem os valores do subsídio de funeral, havendo famílias endividadas e com graves carências.

33. Cumprido o período de suspensão preventiva, o nefrologista responsável pela UH, Dr. …., regressou ao seu posto de trabalho o que, dados os acontecimentos conhecidos, afecta profundamente a relação de confiança médico-doente em que assenta a prestação de cuidados de saúde, relação agravada face à demora na conclusão do processo disciplinar que lhe foi instaurado.

IV – 0 DIREITO REGULADOR DA SITUAÇÃO EM ANÁLISE.
APLICAÇÕES

34. 0 Dec-Lei 74/90, de 7 de Março.

34.1 Define as categorias da água em função dos seus usos principais, destacando-se aqui a água para consumo humano (artº 22, nº 1 a).
34.2 Caracteriza o tipo de acções que integram o “sistema de controlo de qualidade da água”.

0 “controlo” cabe à entidade responsável pela exploração dos recursos hídricos, no caso em apreço, à CME (v. arte 4º, nº 13 a).
A “fiscalização” é da competência das entidades gestoras de recursos hídricos, para defender a saúde pública. No caso em estudo, a DGRN (v. artº 4º, nº 2 f) e h).
A “vigilância sanitária” é realizada “pelos serviços de saúde, nomeadamente no âmbito da exploração técnica dos sistemas de abastecimento de água para consumo humano”.
Os serviços de saúde referidos no artº 4º são a DGCSP (hoje DGS) e as ARS (então regidas pelo Dec-Lei nº 254/82, de 29 de ,Junho), a quem compete “planear e assegurar a vigilância sanitária da qualidade da água para consumo humano” (artº 4º, nº 3 e) ) e elaborar relatórios anuais sobre a qualidade da água (artº 4º nº 3 f).
A “inspecção” é da competência da DGQA (nº 1 b) do artº 4º e no artº 18º, nºs 1 e 2) e das C.C.R. (artº 4º nº 4 a).

As inspecções podem ser de iniciativa oficiosa (v. Código do Procedimento Administrativo, artº 54º), mas as câmaras e os serviços de saúde estão vinculados ao dever de comunicar à DGQA, no prazo de 3 dias, sempre que os valores apurados nos seus controlos ultrapassam os limites fixados no Anexo IX da Lei (v. artº 18º, nº 2).

Também, nos termos do nº 1 do artº 56º, “qualquer das entidades competentes dará conhecimento à DGQA das ocorrências detectadas”.
Estes deveres de informar não parece terem sido cumpridos, antes de 1.04.93, por qualquer das entidades competentes.

34.3 Mas “salvaguardados os imperativos de protecção da saúde pública”, não são aplicáveis os parâmetros referidos nos anexos à Lei, por exemplo, em situação de seca (artº 6º nº 1 a).
Esta diminuição de exigências “é obrigatoriamente confirmada pela entidade com competência para a fiscalização na área correspondente (artº 6º, nº 2), que, no caso em análise, julgo ser a DGRN, e comunicada à DGQA nos 15 dias subsequentes (artº 6º, nº 3).

A iniciativa nesta matéria não parece depender de um pedido da entidade responsável pela qualidade da água de abastecimento para consumo humano (a CME), antes cabe às câmaras fornecer à DGQA e às ARS as informações que estas lhes solicitem (artº 4º, nº 13 c).

A iniciativa de confirmação da situação de excepção pode ser oficiosa, considerando-se que teria sido indispensável sobretudo nos anos de 1992 e 1993 devido à prolongada situação de seca.
Por sua vez, a CME apenas requereu a declaração da situação de seca em 27.04.93, não obstante dispôr há muito de análises com resultados elevados em alguns parâmetros (matéria orgânica).

0 pedido não mereceu provimento.

34.4 As águas que “requeiram uma maior exigência de qualidade” não são consideradas de abastecimento para consumo humano (artº 15º, nºs 1 e 2). É o caso da utilizada nas UH, à qual não se aplicam os normativos que vêm sendo citados.

34.5 Entre as características de qualidade da água de abastecimento para consumo humano destaca-se: “não pôr em risco a saúde (pública), ser agradável ao paladar e à vista dos consumidores (…) – (cfr. artº 16º, nº 1).
0 sulfato de alumínio é referido nos autos como tendo uma função “estética”, fazendo precipitar substâncias que dão à água um aspecto turvo desagradável.
Mas a CME não dispunha de equipamento adequado para fazer o doseamento do sulfato de alumínio necessário, e isso poderá ter contribuido para exceder continuamente as exigências de potabilidade definidas no Anexo IX que são, quanto ao alumínio, o VMR de 0,05 e o VMA de 0,2).

35. 0 Dec-Lei nº 19/88 e o Dec. Reg. nº 3/88, de 21 e 22 de Janeiro, respectivamente (o Regime da Gestão Hospitalar)

35.1 Nos termos do Dec-Reg. nº 3/88, os hospitais têm um Conselho de Administração que deve acompanhar e avaliar periodicamente a execução dos princípios fundamentais de organização e funcionamento do hospital (artº 4º, nº 1) e aprovar as directrizes necessárias ao melhor funcionamento dos serviços (artº 42 nº 2 c).
Não está determinado que o faça apenas através da leitura de relatórios dos diversos responsáveis ou que, passivamente, aguarde a chegada de informações (globais ou sectoriais); nem tal prática revelaria uma boa, atenta e diligente actuação.

0 Dec-Lei nº 19/88 refere nos artºs 6º e 7º os princípios que presidem à actuação dos órgãos dos hospitais.
Saliento o nº 1 a) e f) do artº 6º: o respeito pelos direitos dos doentes e o acatamento das normas de ética profissional por parte de todos os que trabalham no hospital.

E o nº 2 do mesmo artigo no qual julgo caber a competência para tomar a decisão de encerrar a UH e de transferir para outras unidades, a expensas do HDE, os doentes em diálise regular.

35.2 0 administrador-delegado elabora relatórios mensais, trimestrais e anuais do hospital e submete-os à aprovação do C.A. (artº 10º, nº 2).
E autoriza as despesas de simples conservação e reparação e beneficiações das instalações e do equipamento (artº 11º, nº 1 d).

35.3 0 director clínico (que é também um órgão de técnica) coordena toda a assistência prestada aos assegura o funcionamento harmónico dos serviços de assistência, garante a correcção e prontidão dos cuidados de saúde prestados pelo hospital, e, em especial, dirige a acção médica (artº 13º, nº 1).
Cabe-lhe ainda “detectar permanentemente no rendimento assistencial global do hospital os eventuais pontos de estrangulamento (…)” (artº 13º, nº 2 b).

É coadjuvado por adjuntos por si livremente escolhidos.

36. A Lei nº 48/90, de 24 de Agosto (os Serviços de Saúde e as Autoridades de Saúde)

36.1 0 Dec-Lei 74/90 só refere a competência dos serviços de saúde e não menciona as autoridades de saúde que, nos termos da Lei de Bases da Saúde, são órgãos do Estado situados a nível nacional (o Ministro e o Director-Geral da Saúde), regional (na época ainda não regulamentado, e,ainda que sem suporte legal, assegurado pela chamada “autoridade distrital”) e concelhio (sediada nos centros de saúde).

Segundo o nº 1 da Base XIX, as autoridades de saúde garantem a intervenção oportuna e discricionária do Estado em situações de grave risco para a saúde pública e exercem funções de vigilância das decisões dos órgãos e serviços executivos do Estado em matéria de saúde pública,podendo suspendê-las quando as considerem prejudiciais (nº 2 da mesma Base).

36.2 Não são confundíveis os papéis da DGS ou da ARS e dos serviços de engenharia sanitária (que fazem parte da sua estrutura orgânica) com os do órgão do próprio Estado “autoridade de saúde”, apesar de os titulares deste órgão serem em regra médicos da carreira médica de saúde pública providos em lugares das A.R.S. correspondentes ao grau e categoria que, por norma, obtêm mediante concurso.

36.3 A figura “autoridade de saúde distrital” não existia “de jure”. Era uma realidade de facto, designada por despacho ministerial, mas nenhum diploma consagrava então as respectivas competências (e a competência não se presume), o modo da sua articulação com as autoridades concelhias e nacionais, a sua área de influência.
Informalmente, constituia um apoio especializado do órgão máximo de gestão da então designada ARS, dialogando com as autoridades concelhias implantadas no seu distrito.

37. A C.R.P., o Código Penal, o Estatuto Disciplinar, o Estatuto Hospitalar, o Dec.Regulamentar nº 3/88, de 22 de Janeiro (A Responsabilidade Disciplinar)

37.1 Os artºs 22º e 271º da Constituição (C.R.P.) fazem decorrer a responsabilidade, e a subsequente solidariedade do Estado ou de outras entidades públicas, de actos ou omissões dos titulares dos órgãos, funcionários e agentes.

Da mesma forma, o artº 10º do Código Penal, para os crimes de resultado, equipara a comissão por acção à comissão por omissão.
0 nº 1 do artº 56 do Estatuto Hospitalar aprovado pelo Dec.Lei 48357, de 27 Abril de 1968, estabelece que “o pessoal dos hospitais e dos serviços de organização hospitalar (…) ficam sujeitos ao regime disciplinar dos servidores civis do Estado”.
A responsabilidade disciplinar decorre da mera culpa do autor do acto ou omissão (artº 3º, nº 1 do Estatuto Disciplinar) do qual resulte violação de algum dos deveres gerais ou especiais decorrentes da função que exerce.
Deveres, para fins disciplinares, são todos os que visam assegurar o regular funcionamento dos serviços, destacando-se aqui os deveres gerais de zelo e de lealdade, definidos, respectivamente, nos nºs 6 e 8 do artº 3º do Estatuto Disciplinar.

0 primeiro “consiste em conhecer as normas legais e regulamentares e as instruções dos seus superiores hierárquicos, bem como possuir e aperfeiçoar os seus conhecimentos técnicos e métodos de trabalho de modo a exercer as suas funções com eficiência e correcção”.

Desdobra-se em diligência e competência.

0 segundo “consiste em desempenhar as suas funções em subordinação aos objectivos do serviço e na perspectiva da prossecução do interesse público”.
Embora o artº 33 do Dec. Reg. nº 3/88, de 22 de Janeiro, refira que os membros dos órgãos da administração e direcção técnica são responsáveis disciplinar, civil e criminalmente, nos termos da lei, pelos actos que pratiquem no exercício das suas funções, não podem considerar-se excluídas da mesma responsabilidade as omissões dos citados titulares.

37.2. Dos elementos constitutivos da infracção destaco a culpa e a ilicitude.
A culpa é apreciada “pela diligência de um bom pai de família” (cfr. C. Civil, artº 487º, nº 1).

Segundo Pires de Lima e Antunes Varela, “o julgamento (da culpa) não está vinculado às práticas de desleixo, de desmazelo ou de incúria que porventura se tenham generalizado, se outra for a conduta exigível dos homens de boa formação e de são procedimento” (in Código Civil Anotado, vol. I, pág. 462, 3ª ed.).
Por isso, a “referência expressiva ao bom pai de família acentua mais a nota ética ou deontológica do bom cidadão (…) do que o critério puramente estatístico do homem médio” (idem).

A ilicitude disciplinarmente traduz-se na violação de valores superiormente protegidos (v.g., os direitos à vida, à integridade pessoal, à protecção da saúde) que devam ser prosseguidos pela Administração.

38. APLICAÇÕES DO REGIME DE RESPONSABILIDADE

38.1 Quando o relator do processo de inquérito que decorreu na IGS ou o próprio Inspector-Geral afirmam a não existência de provas de que o C.A. tenha praticado actos susceptíveis de o fazerem incorrer em responsabilidade, está claramente a excluir as omissões que se traduzem na violação dos deveres de zelo e de lealdade.
Ora, como atrás se disse (cfr. pontos 11 e 12) ao autorizar em inícios de 1992 a construção de um novo depósito para reserva de água a utilizar na UH, o Administrador tomou conhecimento claro da existência de problemas sérios que justificaram a atribuição de prioridade a uma obra não prevista no plano de actividades nem no orçamento do HDE e cujos encargos não podem ter-se por insignificantes.

Através do Engº … e da ENKROTT, o Administrador…. tomou conhecimento das repetidas deficiências de funcionamento e autorizou despesas subsequentes, factos que não podem deixar de ser valorizados e incluídos na previsão do nº 1 do arte 13º do Dec-Reg. 3/88.

Tal facto, bem como a frequência com que foi necessário adquirir, trocar e lavar membranas, módulos e filtros, deveriam ter sido comunicados para aprovação ao C.A., se não de outra forma, num dos seus relatórios mensais, trimestrais ou anuais.
Não ter levado o assunto a reunião do C.A. constitui omissão culposa e ilícita.

Se as relações entre o Director-Clínico e o Dr. …. eram efectivamente de confiança, dificilmente se compreende que, sobre acontecimentos tão perturbadores como a morte de 8 ou 9 IRC desde o início até ao fim do mês de Março de 1993 (antes de o assunto se tornar do domínio público) e face à colaboração pedida ao neurologista perante a sintomatologia apresentada pelos hemodialisados, não tenha havido curiosidade científica,
solicitação de informações ou qualquer manisfestação de preocupação por parte do Director Clínico.

A inércia traduz-se numa omissão culposa e ilícita do C.A., com destaque quer para o Administrador-Delegado, quer para o Director-Clínico, este responsável, e por isso com o dever de iniciativa para assegurar e verificar o funcionamento dos serviços de assistência e garantir a correcção dos cuidados prestados.

38.2 Assim como também as DGQA, DGRN e OCRA parecem não ter cumprido o dever de zelo ou diligência a que, no âmbito das suas competências, estão obrigadas.
Atente-se na forma rotineira e extemporânea com que em Junho/92 e Abril/93, a DGQA solicitou à CME os resultados das análises à água respeitantes aos anos de 1991 e 1992, dois anos seguidos de seca excepcional.
Verifica-se por isso também (e face às informações disponíveis no processo) omissão culposa e ilícita.

38.3 0 mesmo pode ser afirmado em relação à Câmara que não diligenciou atempadamente no sentido de efectuar uma dosagem correcta do alumínio a introduzir na água de abastecimento público, nem deu conhecimento dos resultados das análises à DGQA.

38.4 Relativamente aos serviços de saúde e à qualidade da água de abastecimento, torna-se difícil separar os papéis desempenhados e as responsabilidades inerentes, dado que vem de há muito a confusão entre as A.R.S. e as “suas” autoridades de saúde. 0 próprio legislador, não poucas vezes, usa cada uma das expressões incorrectamente…
Tal incorrecção não está excluida quando o Dec-lei 74/90 comete expressamente a vigilância sanitária às ARS e à DGCSP, e não ao órgão do Estado (autoridade de saúde) que é apoiado em termos normativos, técnicos, humanos e logísticos por aqueles serviços.

Retira-se da documentação disponível que houve empenhamento da DGCSP no sentido de obter financiamento (Programa LIFE) para apetrechar os laboratórios das ARS com os meios necessários ao cumprimento da parte das exigências que lhe faz a Lei. Mas, de facto, tais exigências não foram integral e regularmente satisfeitas no período de seca em que a necessidade de vigilância era mais óbvia e premente.

A DGCSP não logrou fazer aprovar tempestivamente (ainda que o possa ter tentado no cumprimento do disposto no artº 4º c) , 13º, nº 1 e 19º a) do Dec-Lei nº 74-C/84, de 2 de Março) as medidas legislativas agora concretizadas no Dec-Lei nº 392/93, de 23 de Novembro, e regulamentadas na Portª 60/94, de 25 de Janeiro.

A prova da sua urgente necessidade foi a aprovação, como norma interna do HDE, em Maio de 93, depois da morte de muitos IRC, do regulamento para a UH.

Fizeram-se reuniões, espaçadas no tempo, com participação da engenharia sanitária (ARS e DGCSP) para discutir os problemas e aconselharam-se algumas medidas correctoras, quer à Câmara, quer ao Hospital.
Mas não se conhece, antes dos acontecimentos serem divulgados na comunicação social, qualquer comunicado alertando a população para o perigo decorrente do consumo da água da rede para a saúde pública, não obstante a matéria orgânica e os teores de alumínio serem frequentemente superiores aos recomendados.

38.5 Todavia, as responsabilidades relativamente à qualidade e potabilidade da água de abastecimento público são distintas das referentes às águas cuja utilização requer uma maior exigência de qualidade.

38.6 Estão neste caso, e a coberto da excepção do nº 2 do artº 15º do Dec-Lei nº 74/90, as águas utilizadas em hemodiálise, num hospital em que as particulares e rigorosas exigências de pureza devem ser asseguradas pelo serviço utilizador da água, em termos adequados às circunstâncias, conclusão a que também chegaram os peritos que depuseram no inquérito da I.G.S. .
No HDE repetidamente se verificou a inexistência de condições para proceder, com garantia de qualidade e segurança, ao tratamento adequado dos IRC ao seu cuidado.

Consequentemente o C.A. do HDE deveria ter-se informado pormenorizadamente do funcionamento da UH, pelo menos no dia 1.04.93, antes de emitir um comunicado onde assegurou que a UH continuava a pautar-se por todos os parâmetros de garantia de qualidade e segurança exigidos.

Muito antes dessa data deveria ter providenciado, a expensas suas, a redução do número de doentes assistidos (eram 72) dada a diminuição do débito da água e diligenciar a transferência dos doentes para outras unidades, enquanto procedesse à determinação inequívoca das causas das anomalias e promovesse as correcções indispensáveis para garantir a qualidade da prestação dos cuidados aos IRC.
Esta medida acabou por ser tomada a 4 e 5 de Abril.

38.7 Face ao acervo de informação reunido, parece poder concluir-se que também a Autoridade de Saúde Concelhia não actuou de acordo com os seus poderes de determinar a substituição integral das fontes de abastecimento de água até à reposição dos valores do alumínio dentro dos teores aconselhados.

39. A Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado

39.1 0 artº 22º da C.R.P. declara o “Estado e as demais entidades públicas (…) responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por actos ou omissões praticados no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem”.
Consagra assim uma formulação lata do princípio da responsabilidade civil extracontratual do Estado, não exigindo culpa desses titulares, funcionários ou agentes, desde que, por força do exercício das suas funções sejam violados direitos, liberdades e garantias ou causados prejuízos a outrem.

Sobre este entendimento, confronte-se Jorge Miranda in “Direitos, Liberdades e Garantias – Estudos Sobre a Constituição” – III vol.-1979, pag. 65; Marcelo Rebelo de Sousa in “Princípio da Legalidade Administrativa na Constituição – Revista de Liberdade e Democracia”, nº 13, pag. 15; Vital Moreira e Gomes Canotilho in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 1978. Deste último extrai-se a seguinte passagem:
“0 texto constitucional, ao falar de acções e omissões praticadas no exercício das funções, sem qualquer restrição, pode ser interpretado no sentido da aceitação da responsabilidade estadual para além dos actos ilícitos e culposos”.

Este entendimento lato de responsabilidade civil extracontratual do Estado é o adequado à existência de um Estado de Direito (cfr. Jorge Miranda, obra citada).

39.2 Esta tese da responsabilidade imediata do Estado por actos praticados pelos titulares dos seus órgãos, ou pelos seus funcionários e agentes, no exercício das suas funções e independentemente da culpa destes, tem sido geralmente admitida pela doutrina e jurisprudência que tem qualificado como “faute du service” factos danosos que resultem de ausência, do irregular ou do não oportuno funcionamento de um serviço público que não podem, ou
enquanto não podem, ser atribuídos a um comportamento concreto de um qualquer órgão ou agente.

Como refere Jean Rivero (in Direito Administrativo – Almedina – 1981 pag. 319), trata-se de “deficiências no funcionamento normal do serviço atribuível a um ou a vários agentes da Administração, mas que não lhes é imputável a título pessoal, ligando-se directamente à pessoa pública a que pertence aquele agente”.

Com o mesmo entendimento, refiro Freitas do Amaral (in “Direito Administrativo” – III vol. – 1989, pag. 502) e Dimas de Lacerda (in “Contencioso Administrativo – Responsabilidade Extracontratual do Estado”, Associação jurídica de Braga, pag. 252).

Também a jurisprudência tem feito aplicações deste entendimento. Vejam-se os Acórdãos do STA (in AD nº 51/321, e 240/1450) e o de 18.03.78 no Proc. 11129, bem como o Acórdão do Tribunal de Conflitos, in Apêndice ao Diário da República de 4.11.71.

E o Dec.Lei 48051, de 2_7.11.67 (que, segundo Vital Moreira e Gomes Canotilho “na parte em que não for incompatível com a Constituição deverá considerar-se como continuando em vigor” – obra citada) prevê no artº 8º a responsabilidade pelos prejuízos especiais e anormais resultante do funcionamento de serviços administrativos excepcionalmente perigosos ou de coisas e actividades da mesma natureza” independentemente do apuramento de culpa de
quaisquer titulares de órgãos ou de agentes.

A responsabilidade funda-se objectivamente no risco da actividade exercida por serviços do Estado.

39.3 A responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas, por actos de gestão pública, rege-se ainda pelo Dec-Lei nº 48051 de 21 .11 .67.

Esta responsabilidade decorre de um facto (acto ou omissão) culposo, praticado por órgão ou Administração no exercício das suas funções e que, por causa desse exercício (nexo de causalidade) ofende (dano) direitos de terceiros ou desrespeita normas legais que visam protegê-los (ilicitude).

A culpa é apreciada nos termos do C. Civil e os titulares dos direitos devem ser indemnizados pelos danos sofridos e provados.

Posto isto, e não obstante não ter agido a Administração segundo critérios de diligência e cuidado pressupostos pela actividade de risco em questão, não deixo de ponderar a questão da determinação de um nexo de causalidade.

Desconhecendo ainda os resultados das autópsias mas considerando provável que entre as causas das mortes figure a intoxicação alumínica crónica ou aguda, é possível desde já estabelecer a alta probabilidade daquele nexo entre problemas da água deficientemente tratada na UH com todas algumas das mortes dos IRC assistidos no HDE.

Todavia, se não viesse a ser possível a demonstração de um nexo de causalidade entre as apontadas condutas da Administração e as mortes já verificadas de 22 IRC bem como as lesões provocadas nos sobrevivos, ficariam estes e os familiares daqueles numa posição de manifesta fragilidade.

Neste tipo de casos, vem a doutrina reconhecendo a necessidade de vulnerabilizar o ónus da prova. Como afirma o SINDE MONTEIRO (“Aspectos Particulares da Responsabilidade Médica” in Direito da Saúde e Bioética, Ed. Lex, 1991, Lisboa, pp. 147), “pode entender-se que a “criação de um risco injustificado” ou o “agravamento dos riscos” culposamente provocados pelo acto médico são um fundamento válido para aligeirar a prova do nexo causal, podendo
conduzir à inversão do ónus”.

Todavia, a prova do nexo causal por quem invoca o direito a uma indemnização por actos de gestão pública ilícitos, tornar-se-ia na situação vertente, lenta e demasiado onerosa.

E contudo, face às circunstâncias deve sublinhar-se o posicionamento, em desfavor do Estado, dos seguintes aspectos:

a) A posição débil, de quase sujeição, dos doentes que fazem regularmente hemodiálise, a qual lhes restringe intensamente qualquer domínio de facto sobre os citados actos médicos e sobre os demais actos de gestão pública conexos – impondo, assim, uma necessária cedência da regra geral sobre o ónus da prova, em termos equitativos;

b) 0 não cumprimento de deveres de cuidado quanto aos riscos inerentes, designadamente a utilização de água da rede não tratada indiciando negligência.

Não pode por isso ficar dependente do apuramento de eventuais culpas dos agentes do Estado a imediata assunção por este, como pessoa de bem que é, da sua responsabilidade pela indemnização das vítimas.

Nem tal assunção prejudica as simultâneas ou posteriores diligências tendentes ao apuramento da existência de actos ou omissões culposas dos indivíduos ao serviço do Estado.

Apurando-se a culpa, haverá então lugar à aplicação do regime do artº 2º do Dec-Lei 48051, e eventualmente ao direito de regresso previsto no nº 2.

Não se apurando culpas individuais, aplicar-se-á integralmente o princípio da existência de “faute du service” ficando o Estado como único responsável perante as vítimas.

39.4 A tudo isto ainda poderá acrescer a responsabilidade por omissão quanto à não publicação de normas regulamentares ou legislativas que determinassem a aplicação de conhecimentos científicos, técnicos e de apoio logístico adequados à correcta e segura prestação de assistência médica.

A ideia de responsabilidade do Estado por omissões legislativas ou regulamentares, mesmo fora do âmbito da inconstitucionalidade por omissão, encontra suporte no artº 22º da Constituição. Neste sentido, pode afirmar-se, com RUI MEDEIROS (in Ensaio Sobre a Responsabilidade Civil do Estado por Actos Legislativos, Liv. Almedina, Coimbra, 1992, pp. 353) que:

“Os danos devem ser imputados à Administração quando o órgão ou agente administrativo goza de liberdade na fixação do conteúdo do acto ou regulamento ou pode, inclusivamente, não o emitir. Assim, havendo discricionariedade da escolha ou da decisão, o lesado pode fundamentar o seu pedido de indemnização não só na Constituição, mas também nos preceitos legais que regem a responsabilidade objectiva da Administração.”

39.5 0 meio processual adequado ao estabelecimento do direito e do valor da indemnização decorrente da responsabilidade do Estado seria a acção cível interposta no Tribunal Administrativo competente.
Mas a onerosidade e delonga habitual nessas acções não se compadece com a situação anímica e social fragilizada dos doentes sobrevivos e dos familiares dos falecidos.

0 Estado, enquanto pessoa de bem, deve providenciar um outro meio mais expedito e isento para determinar e fazer pagar os valores das indemnizações que venham a ser devidas bem como prestar o indispensável e imediato apoio social.

É assim juridicamente indispensável e eticamente aconselhável a procura urgente pelo Estado de uma solução adequada ao ressarcimento célere e justo das vítimas da negligência da Administração (directa, indirecta e autónoma).

Tal como para os seropositivos infectados na sequência de tratamentos com sangue ou seus derivados, também no presente caso se justifica a previsão da celebração de convenções de arbitragem, posteriores à frustração dos resultados da intervenção da comissão adiante preconizada, julgando os árbitros sem prejuízo do direito ao recurso constitucionalmente consagrado.

V – CONCLUSÕES

40. De acordo com o que ficou exposto e em nome da atribuição constitucional que lhe é conferida de conduzir à prevenção e reparação de injustiças (artº 23º, nº 1, CRP), entende o Provedor de Justiça fazer uso dos poderes que lhe são confiados pelo seu Estatuto (Lei nº 9/91, de 9 de Abril), no artº 20º, nº 1, alíneas a) e b) e, como tal, RECOMENDAR:

40.1 Independentemente do apuramento da responsabilidade de cada titular de órgãos, funcionário ou agente, autores de actos ou omissões ilicitos e culposos, a assunção formal pelo Estado da sua responsabilidade civil solidária pelas lesões e mortes dos insuficientes renais crónicos assistidos na Unidade de Hemodiálise do Hospital Distrital de Évora.

40.2 A criação célere de um instrumento legal que possibilite aos hemodializados assistidos no Hospital Distrital de Évora,já sobrevivos mas afectados, e aos familiares dos já falecidos o ressarcimento adequado (por exemplo através da constituição de uma comissão perante a qual seriam apresentados os pedidos de indemnização).

40.3 No caso de não aceitação pelos interessados da indemnização proposta pela comissão, e após mediação, eventualmente, do Provedor de Justiça, constituição de um tribunal arbitral com pressupostos a definir por convenção de arbitragem a negociar pelas partes e não imposta pelo Estado.

40.4 No respeito dos valores de solidariedade social e da dignidade humana, a criação imediata de um fundo destinado a:

40.4.1 – indemnizar provisoriamente os doentes afectados clinicamente e os familiares dos já falecidos, uns e outros na sequência dos acontecimentos verificados no Hospital Distrital de Évora, enquanto não estiver em funcionamento a comissão atrás proposta;

40.4.2 – prestar assistência social (financeira, clínica e outra que se mostre necessária e adequada) aos doentes sobrevivos e aos agregados familiares dos já falecidos.

40.5 A determinação da realização de novos inquéritos visando o apuramento de outros actos e omissões com incidência disciplinar, para além dos já apurados, no âmbito dos órgãos, funcionários e agentes dos serviços integrantes ou dependentes do Ministério da Saúde e do Ambiente.

Estes inquéritos devem ter lugar independentemente do conhecimento dos relatórios das autópsias dos IRC já falecidos, e quaisquer que sejam as suas conclusões.

Admito a existência de outros actos e omissões insuficientemente apurados no inquérito realizado pela Inspecção-Geral de Saúde, por não aprofundamento da instrução, ou porque parte dos factos estão fora de jurisdição do Ministério da Saúde.

Recordo a Vossa Excelência ser a presente Recomendação formulada ao abrigo do disposto no artº 20º, nº 1 , alíneas a) e b) , do Estatuto aprovado pela Lei nº 9/91 , de 9 de Abril.

Como tal, vincula o seu destinatário ao cumprimento dos deveres contidos no artº 38º, nºs 2 e 3, do citado diploma, sem prejuízo da informação a este órgão do Estado sobre todas as medidas eventualmente tomadas quanto aos fins visados, nos termos do artº 29º, nº 4 (idem), para cujo cumprimento é fixado o prazo máximo de vinte dias.

0 PROVEDOR DE JUSTIÇA

JOSÉ MENÉRES PIMENTEL