Ministro da Justiça

R-2439/86
Rec. nº 9/B/95
Data:02.03.95
Área: A1

Assunto:HABITAÇÃO – INSTITUIÇÃO PARTICULAR DE SOLIDARIEDADE SOCIAL – PRÉDIO URBANO – CONTRATO DE ARRENDAMENTO – REGIME JURÍDICO DIFERENCIADO – VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE – INDEMNIZAÇÃO.

Sequência:

1.O nº 1 do artigo 22º do Estatuto das Instituições Privadas de Solidariedade Social, aprovado pelo Decreto-Lei nº 519-G2/79, de 29 de Dezembro, dispõe o seguinte:

“1-Os arrendamentos de imóveis, feitos pelas instituições para o exercício das suas actividades, estão sujeitos ao regime jurídico dos arrendamentos destinados a habitação, independentemente do fim dos contratos.

2-O direito ao arrendamento transmite-se entre instituições ou entre estas e serviços oficiais de segurança social, sem dependência do consentimento do senhorio.

3-Nos casos de extinção de instituições, o contrato de arrendamento não caduca quando o património da pessoa colectiva extinta se transmita para outra instituição ou para serviços oficiais de segurança social.

4-Não é aplicável a estes arrendamentos o disposto no artigo 1096º do Código Civil”.

2.O Decreto-Lei nº 119/83, de 25 de Fevereiro, veio estabelecer o novo estatuto daquelas instituições, conferindo-lhes a designação de “Instituições Particulares de Solidariedade Social” (IPSS). O seu artigo 98º determina a revogação do Decreto-Lei nº 519-G2/79, de 29 de Dezembro, mas exceptuando, entre outros, aquele artigo 22º.

3.Nos termos do artigo 3º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, que revogou o disposto no artigo 1084º do Código Civil, os arrendamentos urbanos podem ter como fim a habitação, o comércio, a indústria, o exercício de profissão liberal ou outra aplicação lícita do prédio. Os contratos celebrados com instituições particulares de solidariedade social constituem arrendamentos de fim não especificado ou arrendamentos para outros fins.

A-CONDIÇÕES DE ACTUALIZAÇÃO DAS RENDAS

4.A equiparação de tais arrendamentos aos arrendamentos de fim habitacional implica a sua sujeição a um regime substancialmente diferente daquele que rege os arrendamentos para outros fins, designadamente no que concerne ao sistema de actualização das rendas.
Com efeito:

4.1.Os artigos 1104º e 1105º, ambos do Código Civil, consagraram o direito de o senhorio, qualquer que fosse o fim do contrato, exigir do arrendatário, decorridos 5 anos e não obstante cláusula em contrário, uma renda mensal correspondente ao duodécimo do rendimento ilíquido inscrito na matriz, podendo requerer a avaliação fiscal do locado, decorridos cinco anos sobre a avaliação anterior ou sobre a fixação ou a alteração contratual de renda, para efeitos de correcção do rendimento ilíquido inscrito na matriz. A Lei nº 2030, de 22 de Junho de 1948, suspendeu a aplicação daquele regime no que concerne aos arrendamentos habitacionais relativos a prédios sitos em Lisboa e no Porto. Mais tarde, por virtude do Decreto-Lei nº 445/74, de 12 de Setembro, a suspensão passou a abranger todos os arrendamentos habitacionais, estendendo-se a todo o país.

4.2.Com o objectivo de incentivar o investimento imobiliário, o Decreto-Lei nº 330/81, de 4 de Dezembro, gizou um esquema de actualização anual das rendas, quanto aos arrendamentos para comércio, indústria e exercício de profissões liberais, com base na aplicação de índices fixados por portaria. Simultaneamente, facultou o recurso a avaliações fiscais extraordinárias, visando a ” correcção de eventuais desajustamentos entre os valores obtidos através das actualizações e os julgados mais justos e razoáveis ” (cfr. preâmbulo do diploma).
O artigo 1º do citado diploma respeita aos contratos novos, celebrados na sua vigência, permitindo a actualização anual da renda após o decurso de um ano sobre a sua fixação ou a última alteração. No que concerne aos arrendamentos celebrados em data anterior ao início da vigência do Decreto-Lei 330/81, por força do artigo 4º, nº 1, aquele regime de actualização anual só é aplicável uma vez decorridos 5 anos sobre a sua última avaliação, fixação ou alteração. Ao permitir que se requeresse uma avaliação fiscal extraordinária para ajustamento das rendas praticadas, o nº 2 do artigo 4º pretendeu fazer face ao facto de as rendas de arrendamentos anteriores se encontrarem manifestamente desajustadas à data em que o contrato ingressasse no regime de actualização anual.

4.3.O Decreto-Lei nº 189/82, de 17 de Maio, estendeu a aplicação do regime previsto no Decreto-Lei nº 330/81, de 4 de Dezembro, aos arrendamentos para fins não habitacionais.

4.4.Logo após, o Decreto-Lei nº 392/82, de 18 de Setembro, estabeleceu critérios de apuramento do valor locatício dos imóveis.

4.5.Por sua vez, o Decreto-Lei nº 436/83, de 19 de Fevereiro, revogou o Decreto-Lei nº 330/81 e o Decreto-Lei nº 189/82, de 17 de Maio. Este diploma firmou princípios idênticos aos fixados no Decreto-Lei nº 330/81 e redefiniu os critérios da avaliação extraordinária, estabelecendo um limite para o respectivo resultado (artigo 5º, nºs 2 e 3). Fixou, por outro lado, um novo critério para a determinação dos coeficientes anuais de actualização das rendas (artigo 2º, nº2). O artigo 5º, nº 4, estabelece a preclusão do direito de requerer a avaliação extraordinária, caso o senhorio faça imediata aplicação do coeficiente de actualização anual, ou em caso de anterior alteração de renda, seja por acordo entre o senhorio e o inquilino, seja ao abrigo dos Decretos-Lei nºs 330/81 e 392/82.

A avaliação fiscal extraordinária que os referidos diplomas prevêem e regulamentam visa a determinação do valor locatício dos prédios arrendados para fins não habitacionais, diferindo pois do regime contido nos artigos 1104º e 1105º do Código Civil, que tem por objecto a correcção do rendimento ilíquido inscrito na matriz. Os aumentos de renda passaram a ter como base o valor locatício apurado.

4.6.Quanto aos arrendamentos para fins habitacionais, o direito à actualização anual da renda e o direito à sua correcção extraordinária, no que concerne à renda fixada anteriormente a 01.01.80, foram consagrados pela Lei nº 46/85, de 20 de Setembro. Nos termos do seu artigo 6º, nº 4, os coeficientes fixados pelo Governo, para efeitos de actualização anual das rendas, passaram a constituir os limites máximos do crescimento anual das rendas. E quanto à correcção extraordinária da renda, o artigo 12º determina que a mesma se efectue “… anual e sucessivamente até que os factores anuais referidos nos nºs 3 e 4 acumulados atinjam os valores indicados na tabela mencionada no artigo anterior, actualizados pela aplicação dos coeficientes previstos no nº 2 do artigo 6º” (ou seja, pelos coeficientes de actualização anual das rendas).

4.7.O Tribunal Constitucional, através do seu Acórdão nº 77/88 (Proc. nº 24/84), declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade das normas do Decreto-Lei nº 436/83, com excepção dos artigos 6º e 7º, nºs 1 e 2, relativos à competência, constituição, composição e funcionamento das comissões de avaliação constituídas para efectuar avaliações fiscais extraordinárias. Por razões de segurança jurídica, o Tribunal Constitucional, porém, limitou os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, em termos de salvaguardar a eficácia das portarias entretanto emitidas ao abrigo do artigo 2º do diploma, inclusive da Portaria nº 347/87, de 31 de Outubro, e de salvaguardar, bem assim, o resultado das avaliações fiscais extraordinárias realizadas até à data de publicação do acórdão, salvo se a avaliação ainda fosse susceptível de recurso ou se encontrasse dele pendente. Atendendo a que o artigo 12º do citado Decreto-Lei, no seu nº 1, revogava os Decretos-Lei nºs 330/81, de 4 de Dezembro, 189/82, de 17 de Maio, e 392/82, de 18 de Setembro, a mencionada declaração de inconstitucionalidade implicou a repristinação destes três diplomas legais.

4.8.Os artigos 30º e segs. do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, permitem a actualização das rendas em função dos coeficientes fixados anualmente por portaria conjunta dos Ministros das Finanças, da Indústria e Energia, das Obras Públicas, Transportes e Comunicações e do Comércio e Turismo. Os coeficientes aprovados podem ser iguais ou diferentes, para cada tipo de arrendamento ou regime de renda. A este propósito, faz-se relevar que, desde o ano de 1985, os sucessivos coeficientes fixados com vista à actualização anual das rendas assumem expressão diferente, consoante se trate de arrendamentos para fim habitacional ou de arrendamentos para fins não habitacionais, conduzindo, no segundo caso, a variações mais sensíveis sobre o valor das rendas e propícias aos interesses dos senhorios.

4.9.O Decreto-Lei nº 321-B/90 revogou a Lei nº 46/85, de 20 de Setembro. Por força do nº 2 do seu artigo 3º, a revogação assinalada não prejudica a manutenção transitória dos preceitos ressalvados no mesmo diploma, nos termos em que isso suceda. O legislador ressalvou expressamente a aplicação do regime relativo a correcções extraordinárias e a avaliações extraordinárias, designadamente o artigo 4º do Decreto-Lei nº 330/81, com a redacção dada pelo Decreto-Lei nº 392/82, os artigos 5º a 11º do Decreto-Lei nº 436/83, com o alcance resultante do nº 17, alínea c), do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 77/88, e os artigos 11º a 15º da Lei nº 46/85, bem como a legislação para que eles remetem, dispondo que os mesmos se mantêm em vigor, enquanto tiverem aplicação.

B-CONSEQUÊNCIAS DA EQUIPARAÇÃO LEGAL

5.Resulta, pois, do enunciado que a sujeição dos arrendamentos feitos pelas IPSS para o exercício das suas actividades às normas que regem os arrendamentos para fins habitacionais veio determinar:

1-Numa primeira fase, o congelamento das rendas em questão, atenta a suspensão, quanto aos arrendamentos habitacionais, do regime de avaliações fiscais instituído pela Lei nº 2030, de 22 de Junho de 1948, relativo à actualização quinquenal da renda;

2-A impossibilidade de os respectivos senhorios requererem a avaliação fiscal extraordinária e de actualizarem a renda anualmente, a partir do valor locatício apurado, nos termos dos Decretos-Lei nºs 330/81, de 4 de Dezembro, 189/82, de 17 de Maio, 392/82, de 18 de Setembro, e 436/83, de 19 de Fevereiro;

3-A actualização anual das rendas segundo coeficientes sensivelmente inferiores aos vigentes relativamente aos arrendamentos para outros fins.

5.1.Do confronto do regime previsto na Lei nº 46/85, de 20 de Setembro (a qual consagrou o direito de os senhorios de arrendamentos habitacionais actualizarem anualmente a renda e, em caso de arrendamentos celebrados anteriormente a 1980, o direito de proceder à sua correcção extraordinária) com o regime previsto nos Decretos-Lei nºs 330/81, de 4 de Dezembro, 189/82, de 17 de Maio, 392/82, de 18 de Setembro, e 436/83, de 19 de Fevereiro, aplicáveis aos arrendamentos não habitacionais, resulta que no período da vigência da referida Lei subsiste uma maior onerosidade que impende sobre os senhorios de prédios urbanos afectos à habitação e, por força do artigo 22º do Decreto-Lei nº 519-G2/79, sobre os proprietários que arrendam os seus prédios urbanos a IPSS.

5.2.O arrendamento para habitação é um arrendamento vinculístico por excelência. Nas palavras de Pereira Coelho, neste domínio «se insere, caracteristicamente, um corpo muito extenso de normas imperativas, de que resulta uma forte limitação ao princípio da liberdade contratual (…), quer no sentido de que está muito limitada, relativamente ao senhorio, a liberdade de celebrar o contrato e de o manter, em circunstâncias em que o senhorio teria, segundo as regras gerais, possibilidade de continuar a relação locativa ou de lhe pôr termo, quer no sentido de que está igualmente limitada a liberdade das partes decidirem, conforme lhes aprouver, sobre os termos e condições do contrato» («Arrendamento», 1988, págs. 54 e 55).

5.3.O melhor tratamento concedido ao arrendatário, em confronto com o senhorio, revela-se também no domínio da fixação da renda.
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 24.04.73 (BMJ, 277, p.247), considerou que a cláusula de um contrato de arrendamento para habitação, pela qual se fixa renda diferente da inicial para vigorar a partir de certa data, é nula porquanto defrauda o princípio legal de interesse e ordem pública da estabilidade da renda ou da proibição da sua alteração, sendo tal proibição absoluta em Lisboa e no Porto e relativa no resto do país. Sustenta o Supremo Tribunal de Justiça, nesse acórdão, que o princípio mencionado foi estabelecido pelo artigo 115º do Decreto nº 5411, revogado pelo artigo 10º da Lei nº 1662, reposto em vigor pelos artigos 27º e segs. do Decreto nº 15289 e finalmente mantido, em novos moldes, pelos artigos 47º e segs. da Lei nº 2030 e pelo artigo 10º da Lei preambular do novo Código Civil.( )O artigo 1º do Decreto-Lei nº 445/74, de 12 de Setembro, que alargou a todo o país a suspensão das avaliações fiscais, qualificou como infracção criminal a estipulação de renda superior à praticada. O carácter imperativo das disposições tabeladoras sempre determinou a ilicitude do acordo pelo qual senhorio e inquilino alterassem o montante da renda, para além dos limites decorrentes das disposições tabeladoras.

5.4.A Lei nº 46/85, de 20 de Setembro, veio permitir a actualização das rendas dos arrendamentos habitacionais, com observância dos limites fixados, contendo normas de natureza acentuadamente restritiva. Quanto aos arrendamentos pré-existentes à data da sua entrada em vigor, dispunha-se que as respectivas rendas só poderiam ser actualizadas «a partir do dia 1 de Janeiro do sétimo ano seguinte, contado a partir do fim do ano de celebração do contrato existente» (artigo 8º, nº 3). Quanto à permissão de correcção extraordinária das rendas relativas a contratos celebrados em data anterior a 1 de Janeiro de 1980, determina o artigo 12º que aquela se faça anual e sucessivamente até que se atinja a correcção global.

5.5.Todavia, conforme se afirma no preâmbulo do Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, «embora percentualmente elevadas, as correcções extraordinárias de rendas incidiram sobre bases tão baixas que não tiveram reflexos nos rendimentos dos arrendatários mesmo quando diminutos».

5.6.A Lei nº 46/85, de 20 de Setembro, pretendeu garantir ao arrendatário habitacional a estabilidade da renda por um período mínimo, estabelecendo expressamente a invalidade da cláusula pela qual a actualização da renda se efectue a um ritmo mais acelerado que o previsto nos artigos 6º a 12º da mesma Lei. O artigo 47º sancionou penalmente, como crime de especulação, o recebimento de rendas superiores às legalmente fixadas.
Quanto aos arrendamentos para outros fins, até à publicação do Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, entendia a doutrina nada impedir que, havendo acordo entre o senhorio e o inquilino, o montante correspondente à actualização ultrapassasse o coeficiente legal de actualização anual. Nunca existiu qualquer norma que restringisse a liberdade contratual de o senhorio e o inquilino pactuarem alteração de renda naquele sentido, como é actualmente o caso do artigo 30º do RAU e do artigo 14º do citado Decreto-Lei, cuja aplicação a todos os tipos de arrendamento, independentemente do respectivo fim, não oferece dúvidas.

5.7.Por outro lado, no caso de o pedido de avaliação extraordinária obter provimento, a correcção da renda, com base no valor apurado, efectua-se de uma só vez e não de modo progressivo, pelo que o senhorio passa a poder reclamar do seu inquilino, quanto às rendas que se vençam após a fixação do valor de mercado do locado, o pagamento da totalidade daquele valor ( ) ( ).

5.8.Ao exposto acresce a já mencionada variação dos coeficientes de actualização anual das rendas em função do fim do arrendamento.

5.9.Esta especial onerosidade é agravada, quanto aos senhorios de prédio afecto a IPSS, pelo disposto nos números 2 e 4 do artigo 22º do Decreto-Lei nº 519-G2/79.
Nos termos do nº 2 do preceito referido, o arrendamento transmite-se entre IPSS ou entre estas e serviços oficiais de segurança social, independentemente do consentimento do senhorio.

Por seu turno, o nº 4 exclui a aplicação do artigo 1096º do Código Civil, revogado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90.O artigo 1096º do Código Civil veio consagrar o direito de o senhorio denunciar o contrato, designadamente em caso de necessitar do prédio para habitação ou para nele construir a sua residência, ou quando se proponha ampliar o prédio ou construir novos edifícios, de forma a aumentar o número de locais arrendáveis. A referência ao artigo 1096º deve actualmente entender-se como relativa ao artigo 69º do RAU, que estabelece os casos em que o senhorio pode denunciar o contrato.

Se o legislador não tivesse consagrado a transmissão a que se reporta o nº 2, o senhorio poderia resolver o contrato em caso de cessão da posição contratual não consentida, sendo o cessionário IPSS ou serviço oficial de segurança social (artigo 1093º, nº 1, alínea f), do Código Civil e artigo 64º, nº 1, alínea f), do RAU). Os nºs 2 e 4 do artigo 22º privam o senhorio de meios de cessação do contrato de arrendamento, consubstanciando limitações ao direito de resolução e ao direito de denúncia do contrato.
Estas restrições são específicas, porque concernem apenas a contratos de arrendamento celebrados com as IPSS para o exercício das actividades destas, não sendo aplicáveis a qualquer outro tipo de arrendamento, e designadamente a arrendamentos para fins habitacionais.

II-FUNDAMENTO DA EQUIPARAÇÃO ESTABELECIDA

6.É certo existirem razões objectivas, alicerçadas em princípios e valores constitucionais, que justificam o tratamento de favor que o legislador confere às IPSS. Tais instituições prosseguem fins de interesse público, de modo desinteressado. O preâmbulo do Decreto-Lei nº 119/83 realça o papel fundamental que as mesmas desempenham, designadamente pelo apoio que prestam às famílias e comunidades, na resolução de diversas formas de carências. De acordo com o disposto no artigo 8º do respectivo Estatuto, aprovado por aquele Decreto-Lei, as IPSS adquirem automaticamente a natureza de pessoas colectivas de utilidade pública. O regime do artigo 22º do Decreto-Lei nº 519-G2/79 só é aplicável aos arrendamentos de imóveis celebrados por aquelas instituições para o exercício das sua actividades, decerto porque o legislador entendeu não ser legítima a invocação de considerações que se prendem com o interesse social quando as IPSS afectem o imóvel locado a fim não conexo com o exercício da sua actividade – designadamente, aplicando-o a determinada indústria, lojas de comércio, jogos de bingo, casas de chá, etc.

6.1.Como sustenta o Conselheiro Messias Bento, em voto de vencido ao Acórdão do Tribunal Constitucional nº50/88 (2ª secção, processo nº 265/86), “se, por esse lado, a instituição do apontado regime de favor não é susceptível de levantar dúvidas de constitucionalidade, outro tanto já não sucede quando se considere que um tal regime foi instituído à custa da imposição de um encargo especial aos senhorios.(…) Ao menos como regra, o legislador só deve impor um encargo especial a um determinado grupo de cidadãos para beneficiar especialmente um outro grupo, se esse for o único meio de que dispõe para poder dispensar a este grupo o tratamento de favor que pretende instituir. Esta é uma exigência do princípio da exigibilidade, que é uma das dimensões do princípio da proporcionalidade (em sentido amplo). Ora, este objectivo (o objectivo de evitar aumentos de rendas elevados, ou, vistas as coisas de outro ângulo, o objectivo de poupar as instituições privadas de solidariedade social a aumentos sensíveis das despesas de renda das suas instalações) é coisa que o legislador bem podia conseguir mediante a instituição de um esquema de subsídios, à semelhança, de resto, do que veio a fazer em matéria de arrendamento para habitação quanto aos inquilinos mais pobres (cf. artigos 22º, e 24º a 27º da Lei nº 46/85, de 20 de Setembro, e Decreto-Lei nº 68/86, de 27 de Março, alterado pela Lei nº 21/86, de 31 de Julho)”.

6.2.A questão ganha particular acuidade à luz da interpretação que sustenta a aplicação do artigo 22º aos arrendamentos de pretérito.
Se, quanto aos arrendamentos de futuro – celebrados após a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 519-G2/79 -, o senhorio celebrou o contrato consciente da aplicabilidade do regime nele previsto, o mesmo não é verdadeiro quanto aos arrendamentos de pretérito – ou seja, celebrados antes de 1 de Janeiro de 1980. Com efeito, no que toca a estes contratos, o legislador fez tábua rasa do sentido com que os contraentes se vincularam, sujeitando tais contratos a um estatuto diferente do previsto e introduzindo uma modificação substancial quanto ao sistema de actualização das rendas, o que constitui um aspecto fulcral daquele estatuto (no sentido de que a renda contratual e as condições da sua actualização constituem elementos substantivos e essenciais do regime do arrendamento, integrando o regime geral do contrato de arrendamento, vejam-se os Acórdãos do Tribunal Constitucional nº 246/90, de 11.07.90, BMJ, 399, 87, e nº 77/88, de 12.04.88, B.M.J. 376, 203).

Por força da intervenção legislativa, os contratos em questão ficaram submetidos a um regime diferente do convencionado – e mais gravoso – e, bem assim, diferente daquele que lhes seria aplicável na sequência das alterações legislativas que posteriormente tiveram lugar quanto aos contratos de arrendamento de fim não especificado.

6.3.Aquela medida legislativa, atenta a sua imprevisibilidade, violou de forma manifesta os princípios da confiança e da segurança jurídica, ínsitos no princípio do Estado de direito democrático (artigo 2º da Constituição). Repare-se que o artigo 22º do Decreto-Lei nº 519-G2/79 não se limitou a alterar o regime dos arrendamentos nele previstos. O que foi alterado foi o próprio enquadramento legal desses arrendamentos e, consequentemente, as próprias perspectivas de evolução previsível do seu regime. Ou seja, passando esses arrendamentos de não habitacionais a habitacionais, são as próprias linhas de força da evolução do seu regime legal que se alteram, os interesses e as forças em conflito que passam a ser outros, pelo que desaparecem totalmente as já de si escassas possibilidades de prever e influenciar minimamente a evolução desse regime legal. Não pode haver dúvidas de que se está aqui perante a violação mais radical possível dos princípios da confiança e da segurança jurídica.

6.4.Em matéria de revisão de rendas de imóveis para fins não habitacionais não é admissível recurso da decisão judicial proferida pelo juiz da comarca, em recurso da decisão da comissão de avaliação fiscal (cfr. artigos 14º e 15º do Decreto-Lei nº 37021, de 21 de Agosto de 1948, e acórdãos da Relação de Lisboa de 28.08.83, – R 15.549, B.M.J. 333, 511 -, de 5.09.84 -, R 11.659, B.M.J. 346, 297 -, e de 4.07.87 – R17.604, Colectânea de Jurisprudência, 1985, 3, 158), pelo que, sendo a aplicação do regime de actualização contestado com fundamento na aplicação retroactiva do artigo 22º do Decreto-Lei nº 519-G2/79, o senhorio não pode recorrer para a Relação.

6.5.Esta constitui uma hipótese já verificada, em face da inexistência de interpretação vinculativa que aponte para a não aplicação retroactiva do artigo 22º. Aliás, foi na sequência de recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, de uma decisão de um Tribunal de Comarca, a qual concedera provimento ao recurso interposto pela arrendatária do resultado de uma avaliação fiscal extraordinária, alegando a inadmissibilidade da referida avaliação fiscal com fundamento na aplicabilidade do referido artigo 22º aos arrendamentos de pretérito, que veio a ser proferido o Acórdão nº 50/88.

7.Acresce que, como sustenta o Conselheiro Messias Bento no citado voto de vencido, “ainda quando deva entender-se que o artigo 22º do Decreto-Lei nº.519-G2/79, na sua dimensão retroactiva, não viola o princípio da confiança que vai implicado na ideia de Estado de Direito, ainda então sempre haverá de concluir-se que, tendo tal norma atingido apenas certa categoria de senhorios de entre os que haviam celebrado contratos de arrendamento para fins não habitacionais (…), veio ela tratar esses senhorios de forma discriminatória. Efectivamente, a situação de desfavor em que a norma colocou esses senhorios assenta numa categoria meramente subjectiva – a qualidade de senhorio daquelas instituições. (…) A diferenciação de tratamento estabelecida pelo artigo 22º citado, vista do lado dos senhorios, apresenta-se, por isso, sem fundamento material bastante. É uma diferenciação irrazoável, arbitrária, que afronta o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição.”

7.1.O legislador disciplina o contrato de arrendamento à luz de opções políticas, fundamentais e conjunturais, susceptíveis de determinar a limitação dos direitos de algumas categorias de senhorios. É evidente, no entanto, que a lei não pode ser remetida exclusivamente para o domínio da decisão política, incontrolável normativo-juridicamente. Como ensina o Prof. Castanheira Neves, a intenção material do direito constitui um fundamento que permite concluir pela invalidade jurídico-normativa da lei que, prosseguindo imediatos objectivos político-finalísticos, viola a justiça material por não cumprir o princípio da igualdade na lei.
Uma norma pode ser considerada como não arbitrária, por assentar em considerações razoáveis e oferecer fundamentos materiais bastantes, por os seus fins conferirem concludente razão de ser às prescrições nela contidas, e no entanto não ser justa. Para além da suficiência do fundamento, importa considerar o ponto de vista da justiça e dos padrões normativos da ordem jurídica, pressupostos ou instituídos pela Constituição. O sentido axiológico-jurídico do princípio da igualdade será aquele que constitua expressão da justiça material, que corresponda, como sustenta Castanheira Neves, ao sentimento de direito. Neste sentido, “não será tanto a igualdade a fornecer-nos o critério da justiça, como a justiça a dar-nos o critério da igualdade, jurídico-materialmente entendida e fundada.”

7.2.Existe no referido artigo 22º violação do princípio da igualdade porque a lei estabelece um tratamento diferenciado injustificado, enquanto viola os princípios da proporcionalidade e da justiça. Se a diferenciação estabelecida a favor das IPSS se baseia em valores que enformam a ordem jurídica constitucional, prosseguindo um fim legítimo e meritório, já a imposição, para esse fim, de especial encargo aos senhorios, com manifesto prejuízo destes, constitui uma medida não aceitável, porquanto os fins visados pelo legislador poderiam ser prosseguidos por outros meios menos onerosos, que não implicassem a imposição de especial encargo a uma categoria de senhorios.

7.3.Com efeito, no caso vertente, de um justificado e razoável tratamento diferenciado dos inquilinos não decorre necessariamente, e como consequência inevitável, um tratamento diferenciado dos respectivos senhorios (neste sentido, ver também o já citado voto de vencido do Conselheiro Messias Bento).

8.Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira (in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 3ª edição, anotação ao artigo 13º, nº 2), “A Constituição indica ela mesma um conjunto de factores de discriminação ilegítimos (nº 2). Aí se contam os mais frequentes e historicamente os mais significativos dos elementos fundadores de diferenças de tratamento jurídico. Mas esse elenco não tem obviamente carácter exaustivo, sendo puramente enunciativo. São igualmente ilícitas as diferenciações de tratamento jurídico fundadas em outros motivos, sempre que eles se apresentem contrários à dignidade humana, incompatíveis com o princípio do Estado de direito democrático, ou simplesmente arbitrários ou impertinentes. O que se exige é que as medidas de diferenciação sejam materialmente fundadas sob o ponto de vista da segurança jurídica, da proporcionalidade, da justiça e da solidariedade …”.

9.O princípio da igualdade perante os encargos públicos constitui uma particular manifestação do princípio da igualdade.

9.1.Este princípio postula uma proporcionada repartição dos encargos públicos entre os cidadãos, sendo seu corolário o reconhecimento de uma indemnização ou compensação ao indivíduo ou grupo de indivíduos a quem seja imposto um sacrifício especial justificado por razões de interesse público. No caso vertente, está em causa, não a repartição de encargos públicos em sentido próprio, mas antes a concessão de um tratamento de favor a instituições que prosseguem as suas atribuições em benefício da comunidade, e de reconhecida utilidade pública, e consequente imposição de um encargo especial a um determinado grupo de cidadãos.

9.2.Sou de opinião que existem razões de analogia que apontam para a formulação neste caso de conclusões idênticas às que decorrem da aplicação daqueles princípios, uma vez que existe em ambos os casos uma situação de onerosidade forçada.

9.3.A desigualdade deve, no caso, ser superada pela eliminação dos deveres ou encargos de quem com eles foi discriminatoriamente onerado.

9.4.Por outro lado, a responsabilidade do Estado por facto das leis é, no entender da doutrina, admissível sempre que haja violação de direitos, liberdades e garantias ou prejuízos para o cidadão derivados directamente das leis (cfr. artigo 22º da Constituição).

10.Quanto à restrição do direito de denúncia do contrato, no que concerne ao senhorio de prédio arrendado a IPSS, a privação desse direito constitui meio adequado, necessário e proporcional à satisfação do fim que prossegue – a estabilidade contratual que se revela indispensável à regular prossecução das atribuições das IPSS.
O legislador não tem outro meio para garantir a permanência do inquilino no locado.

10.1.Revela-se, porém, excessivo e injusto que o particular que, carecendo de habitação própria, não pode denunciar o contrato e habitar o locado, não seja, sempre que a renda que aufere se mostre inferior ao valor de mercado, devidamente compensado por esse facto, mediante adequado ressarcimento pelo Estado, através de pagamento de importância correspondente ao diferencial entre o valor da renda e o valor de mercado do locado, com vista à ocupação de outro espaço que satisfaça as necessidades habitacionais, seja do próprio, seja dos seus descendentes em primeiro grau.

III-CONCLUSÕES

11.De acordo com o que ficou exposto, e na prossecução das suas atribuições constitucionais (artigo 23º, nº 1, da Constituição), entende o Provedor de Justiça fazer uso dos poderes que lhe são conferidos pelo seu Estatuto (Lei nº 9/91, de 9 de Abril), no artigo 20º, nº 1, alíneas a) e b), e, como tal,

RECOMENDO:
1º-Que o Estado indemnize os senhorios de prédios arrendados a IPSS em data anterior à da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 519-G2/79, de 29 de Dezembro, ressarcindo os prejuízos que os mesmos comprovem ter sofrido, porquanto:

a) lhes foi negado, nos anos de 1980 e 1981, o exercício do direito de requerer a avaliação fiscal do locado, ao abrigo da Lei nº 2030, de 22 de Julho de 1948, para efeitos de actualização quinquenal da renda;

b) lhes foi negado o exercício do direito de requerer a actualização anual da renda, ao abrigo do disposto nos Decretos-Lei nºs 330/81, de 4 de Dezembro, 189/82, de 17 de Maio, 392/82, de 18 de Setembro, e 436/83, de 19 de Fevereiro;

c) foram impedidos de requerer a avaliação extraordinária do locado e de proceder ao aumento da renda com base no valor de mercado apurado, no período que mediou entre 1982 e 1985;

d) efectuaram as actualizações anuais das rendas, a partir de 1985, com base nos coeficientes fixados para arrendamentos habitacionais, de valor sensivelmente inferior aos coeficientes fixados para arrendamentos para outros fins.

2º-Que o Estado indemnize os senhorios de prédios arrendados a IPSS na vigência do Decreto-Lei nº 519G2/79, de 29 de Dezembro, no que concerne aos prejuízos por eles sofridos por o legislador não lhes ter atribuído os direitos referidos nas alíneas a) , b) e c) do nº 1º, nem o direito de efectuar a actualização anual das rendas com base nos coeficientes fixados para arrendamentos de fim não habitacional.

3º-Que seja revogado o artigo 22º, nº 1, do Estatuto das Instituições Privadas de Solidariedade Social, aprovado pelo Decreto-Lei nº.519-G2/79, de 29 de Dezembro, que sujeita os arrendamentos feitos pelas IPSS para o exercício das suas actividades ao regime dos arrendamentos de fim habitacional.

4º-Que seja criado, em articulação e concomitantemente com o recomendado no nº 3, um subsídio de renda a favor das IPSS, a suportar pelo Estado, destinado a cobrir os aumentos de renda que se reportem a arrendamentos anteriores a 1981, resultantes de avaliações extraordinárias efectuadas ao abrigo do disposto nos Decretos-Lei nºs 330/81, 189/82 e 392/82, nos casos em que os mesmos sejam susceptíveis de aplicação, e os demais aumentos de renda efectuados ao abrigo da legislação que rege os arrendamentos de fim não habitacional.

5º-Que seja aprovada legislação no sentido de ser atribuído aos senhorios de IPSS, sempre que os mesmos comprovem necessitar do prédio para sua habitação ou dos seus descendentes em 1º grau ou para nele construir a sua residência, e desde que se verifiquem os requisitos a que o artigo 71º do RAU subordina o exercício do direito de denúncia, um subsídio, a suportar pelo Estado, correspondente à diferença entre o valor da renda praticada e o valor de mercado do locado, sempre que aquela seja inferior a este.

6º-Que seja criada uma comissão administrativa com competência para, celeremente, constatar a verificação dos factos que constituem pressuposto das indemnizações recomendadas nos pontos 1º e 2º, apreciando os elementos probatórios que lhe sejam apresentados pelos interessados, e fixar os valores das indemnizações.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel