Presidente da Câmara Municipal de Trancoso
Número: 18/A/99
Processo: 4960/96
Data: 03.03.1999
Área: A2

Assunto: EXPROPRIAÇÃO E REQUISIÇÃO DE BENS – DIREITO À PROPRIEDADE PRIVADA – OCUPAÇÃO DE TERRENOS RÚSTICOS PELO MUNICÍPIO – ACTO ILÍCITO – INDEMNIZAÇÃO – EXPROPRIAÇÃO

Sequência: Não Acatada

I – Dos Factos

1. Apresentou a Senhora… neste órgão do Estado queixa contra a Câmara Municipal de Trancoso, em virtude da ocupação pelo município de prédios rústicos pertencentes, em comunhão indivisa, à reclamante e herdeiros de seu falecido marido.

2. Tal ocupação ocorreu na sequência da realização de obras de construção da Barragem da Teja, em 1992, apesar de a reclamante ter comunicado expressamente ao município que não concedia qualquer direito de ocupação e/ou utilização dos referidos terrenos sem prévio acordo.

3. O processo de aquisição dos referidos prédios foi iniciado pela Câmara Municipal em 1991, mediante formulação de proposta de compra, e a sua complexidade terá advindo:

a) da existência de um inventário de partilhas que incidia sobre parte dos mesmos;

b) da insuficiente especificação pela Câmara dos terrenos e/ou parcelas de terreno que necessitava adquirir;

c) após a ocupação dos terrenos e realização das obras, da manifesta falta de iniciativa para a sua resolução, ou de resposta às sucessivas solicitações da reclamante.

4. Comunicada por esta Provedoria à Câmara Municipal a pretensão da Sra…, veio a mesma, reafirmando a posição anteriormente exposta à reclamante, alegar:

a) Pretender adquirir os terrenos em causa por via da negociação amigável, como terá feito com as restantes parcelas;

b) Encontrar-se de boa-fé “desde o início de construção da Barragem, ainda antes da inundação dos terrenos”, tendo sempre respondido e fornecido elementos quando questionada;

c) Que desde 12 de Maio de 1992 que se encontra concretizada uma proposta de aquisição, que ainda não se realizou por manifesta discordância entre os vários herdeiros.

5. Resulta assim que a matéria de facto alegada pela reclamante foi expressamente reconhecida pela Câmara Municipal, sendo certo que até à presente data inexiste qualquer diligência do município tendente à resolução da presente questão.

II – Do Direito

6. O direito de propriedade privada, nas suas vertentes positiva (nomeadamente uso e fruição) e negativa (direito de não ser privado de bens sem título legal e direito à justa indemnização em caso de desapropriação), encontra-se constitucionalmente consagrado (art. 62º, nº1, da Constituição da República Portuguesa – CRP), sendo, enquanto direito de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias, de aplicação directa e imediata, vinculando as entidades públicas e privadas no exercício das suas actividades (arts. 17º e 18º, nº1, CRP.

Sobre o conteúdo e natureza deste direito, e respectivo regime legal, J.J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional, 6ª ed., Coimbra, 1993, pp.578 ss.; VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição de 1976, Coimbra, 1987, pp.254 ss.; J. MIRANDA, Direito Constitucional, vol. IV, 2ª ed. Coimbra, 1993, pp. 229 e ss. e 275 e ss.).

7. A densificação legislativa do direito de propriedade, conferindo as supra citadas faculdades ou liberdades – vd arts. 1305º e segs. do Código Civil (CC)-, estabelece igualmente um regime garantístico, segundo o qual “ninguém pode ser privado, no todo ou em parte, do seu direito, senão nos casos fixados na Lei” (arts. 62º, nº2, CRP e 1308º CC),estatuindo meios extra-judiciais (acção directa) e judiciais (compensação, restituição e conservação da propriedade,e responsabilidade civil e criminal – art. 1310º-1311º CC, e 21º e 22º CRP) de defesa.

8. Vinculados embora pela prossecução do interesse público, os entes públicos encontram-se igualmente vinculados, para defesa dos interesses legalmente protegidos dos cidadãos, aos princípios da legalidade, da justiça e da igualdade (art. 266º, nºs 1 e 2, CRP. Sobre a actividade administrativa, MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, II vol., 9ª ed., Coimbra, 1980, pp.1013 e ss.).

9. Nestes termos, o sacrifício do direito de propriedade em prol de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos deverá obedecer a um procedimento legalmente previsto, que finde com o pagamento de uma justa compensação (arts. 18º, nº2, e 62º, nº 2, CRP).

10. Ora, o regime jurídico das expropriações (vd Decreto-Lei nº 438/91, de 9 de Novembro, que aprovou o Código das Expropriações – CE) prevê que, não se podendo efectuar a aquisição por via do direito privado (facto que, devidamente fundamentado, deverá ser comunicado ao Ministro competente para a declaração da utilidade pública, art. 12º, nº2, alínea g), CE), deva o processo seguir a tramitação prevista nos arts. 10º e segs., salvo nos casos de emergência (calamidades públicas, exigências de segurança interna ou de defesa nacional – art.39º, nº 2, CE), ou de urgência (art. 13º, nº2, CE).

11. No entanto, mesmo aí se estatui como princípio geral o da aquisição por via do direito privado, devendo a entidade expropriante diligenciar todos os seus esforços, antes de se recorrer à última ratio, a expropriação litigiosa (arts. 37º e segs. CE).

12. Nestes termos, a Câmara Municipal de Trancoso, ocupando desde 1992 os terrenos em causa, sem ter procedido à sua aquisição por via do direito privado (no caso, compra e venda celebrada mediante escritura pública – arts. 875º, 947º e 220º CC) e sem que se verifique utilidade pública dos imóveis, declarada por via do processo de expropriação legalmente exigido, não possui justo título para tal ocupação.

13. Apossando-se sem título de terrenos de particulares, violou a Câmara Municipal de Trancoso direitos e garantias legalmente protegidos, o que traduz facto ilícito susceptível de acarretar responsabilidade civil dos entes públicos (art. 22º CRP, arts. 1º a 6º do Decreto-Lei nº 48051, de 21 de Novembro de 1967, e art. 90º, nº1, do Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março – LAL), solidária com os titulares dos seus órgãos e respectivos funcionários e agentes (arts. 269º, nº1, e 271º, nºs 1 e 4, CRP, art. 3º, nº 2, do DL 48051, e art. 500º CC).

14. Conhecedores da Lei que rege os processos de expropriação, bem como o princípio da legalidade que norteia toda a actividade administrativa, bem sabiam os representantes do município que dos seus actos de gestão pública resultaria como causa adequada prejuízo para os proprietários dos terrenos ocupados, decorrente não só da privação do uso e fruição da propriedade, mas igualmente da sua disponibilidade e/ou do seu justo valor.

15. Dada como verificada a violação censurável de deveres legais funcionais pela Câmara Municipal de Trancoso, de que resultaram, como consequência adequada, os danos sofridos pela reclamante e outros interessados encontram-se preenchidos os requisitos da sua responsabilidade civil extracontratual (art. 90º, nº1, LAL, art. 2º do Decreto-Lei nº 48051, e arts. 483º e segs. CC).

III – Conclusões

Pelo exposto, Senhor Presidente da Câmara Municipal de Trancoso, e atendendo à manifestada abertura da Câmara Municipal para a rápida resolução da presente questão, ao abrigo do art. 20º, nº1, alínea a), da Lei nº 9/91, de 9 de Abril,

RECOMENDO

1. Seja por essa Câmara Municipal atribuída indemnização aos lesados, com vista a ressarci-los dos danos decorrentes da ocupação ilícita dos prédios em causa, nos termos do art. 2º, nº1, do Decreto-Lei nº 48051, de 21 de Novembro de 1967, e do art. 90º do Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março.

2 – Que, não sendo possível à Câmara Municipal adquirir, mediante acordo com todos os herdeiros, os terrenos ocupados, proceda o mais rapidamente possível à expropriação dos mesmos, nos termos que se encontram legalmente definidos no Código das Expropriações.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

JOSÉ MENÉRES PIMENTEL