Secretário de Estado do Ensino Superior

Rec. n.º 16/B/00
Proc.:R-71/99
Data:2000.05.23
Área: A 3

Assunto: EDUCAÇÃO. ENSINO SUPERIOR PARTICULAR E COOPERATIVO. PROPINAS.

Sequência: Não acatada

No âmbito do presente processo tem vindo a ser apreciada a questão relativa ao preçário aplicado pelos estabelecimentos de ensino superior particulares e cooperativos, aos alunos que ali se inscrevam pela primeira vez.

A esse respeito, os serviços da Provedoria de Justiça enviaram em Março do corrente ano um ofício ao Senhor Director-Geral do Ensino Superior, no qual se enunciavam algumas reservas ao comportamento adoptado por um número significativo dos estabelecimentos em causa, não só por os valores exigidos serem recorrentemente excessivos como também por o regime aplicável em caso de anulação de matrícula ser por vezes demasiado penalizador para o aluno.

Atendia-se designadamente a situações em que ocorria a anulação de matrícula antes do início das aulas, sem que fossem restituídas quaisquer verbas por parte dos estabelecimentos de ensino, designadamente nos casos em que as mesmas representavam quantias muito significativas, reportadas a serviços já prestados ou ainda por prestar.

O assunto foi encaminhado por aquela Direcção-Geral para a Comissão Nacional de Acesso ao Ensino Superior que, além de enviar cópia do ofício da Provedoria de Justiça à Associação Portuguesa do Ensino Superior Particular, elaborou um parecer sobre a matéria, adoptando uma posição bastante crítica relativamente às reservas anteriormente expostas pela Provedoria de Justiça.

O teor do referido parecer merece-me, aliás, uma breve referência preliminar.
Embora contenha algumas asserções passíveis de contribuir para a melhor discussão do problema, considero estar o mesmo viciado por um incorrecto entendimento sobre alguns aspectos fundamentais em que se baseou a posição avançada pela Provedoria de Justiça, circunstância que obviou, naturalmente, à melhor apreciação da situação no seu todo e designadamente dos pontos especificamente em discussão. Acresce que, na sequência dos juízos errados contidos no parecer, o seu Autor se permite classificar a posição da Provedoria de Justiça em termos que não posso deixar de considerar excessivos, facto que estranho e lamento.

A este respeito, apenas esclarecerei que em nenhum ponto do ofício enviado pela Provedoria de Justiça se defendeu ou sugeriu ser o subsistema de ensino particular e cooperativo subsidiário relativamente ao ensino superior público, não se tendo de igual modo lançado qualquer suspeição de carácter genérico sobre os diversos estabelecimentos de ensino particulares e cooperativos, mas tão só alertado para um problema efectivamente existente, decorrente da prática de alguns estabelecimentos, que propositadamente não se pretendeu nominar, exactamente para se poder perspectivar o problema em abstracto.
Importa, no entanto, retomar a apreciação da questão aqui em apreço.

A Provedoria de Justiça solicitou a diversos estabelecimentos de ensino particular informações relativas ao preçário praticados com os novos alunos e procedimentos adoptados face a eventuais desistências.

Em resultado, possível pela colaboração prestada por mais de quarenta estabelecimentos, confirmou-se, no essencial, o quadro descrito no já referido ofício enviado à Direcção-Geral do Ensino Superior (cfr. quadro anexo, com indicação dos montantes pagos pelos alunos em momento anterior à primeira inscrição nos respectivos estabelecimentos).

Assim, embora existam naturais discrepâncias entre a prática seguida nos diversos estabelecimentos, é possível configurar um padrão geral de actuação com os seguintes contornos:

1. Antes da inscrição, o interessado passará por uma fase de candidatura, tendo de pagar uma verba normalmente situada entre os vinte e os vinte e cinco mil escudos.

2. Se a candidatura for aceite e existir interesse no ingresso, o candidato procederá à sua inscrição. Aí pagará a título de inscrição e/ou matrícula uma quantia que oscila, na generalidade dos casos, entre os trinta e cinco e os cinquenta mil escudos.

3. Em alguns casos, porém, as quantias envolvidas nestas operações superam largamente os valores indicados. Não é raro, com efeito, que no final do acto de inscrição, e independentemente do pagamento de propinas que possa ocorrer nesse acto, o aluno tenha desembolsado valores na ordem dos noventa a cem mil escudos e, em alguns casos, mesmo mais.

4. No acto de inscrição, é ainda frequente ser exigido ao candidato o pagamento antecipado de propinas de frequência, normalmente, mas não sempre, apenas uma acompanhada de uma parte do mês de Julho.
5. Em caso de anulação de matrícula, os estabelecimentos retêm, na quase totalidade dos casos observados, o valor integral das verbas recebidas, ocorrendo situações em que o aluno que rescinda será ainda obrigado ao pagamento de uma quantia correspondente a propinas não vencidas.

Face ao contexto acima descrito, considero existirem motivos que justifiquem uma actuação correctiva por parte do Estado neste âmbito, nos termos que a seguir passo a enunciar.

A Constituição da República Portuguesa consagrou o direito à educação como um direito fundamental, inserindo a sua previsão no capítulo dedicado aos Direitos e deveres culturais (cfr. artigo 73.º).
Nesse contexto, o funcionamento de estabelecimentos de ensino, deverá sempre ser enquadrado como uma actividade de carácter eminentemente público, independentemente da natureza jurídica das entidades responsáveis em cada caso concreto, cabendo ao Estado uma acrescida responsabilidade tutelar, em ordem a poder garantir a correcta prossecução dos objectivos fixados pelo legislador constitucional nesta área.

Estes princípios têm plena aplicação no âmbito do ensino superior, em especial no ensino superior particular e cooperativo, ainda que de forma e intensidade diferente da que poderá verificar-se com os outros níveis de ensino.

Assim, na regulação do ensino superior particular e cooperativo, contida no Decreto-Lei n.º 16/94, de 22 de Janeiro, a par da concessão de uma ampla liberdade conferida aos particulares para a criação e definição de estabelecimentos de ensino superior, ficou devidamente contemplada a responsabilidade de fiscalização estatal em relação ao ensino particular e cooperativo.
Se essa fiscalização visa essencialmente assegurar a efectiva qualidade do ensino ministrado, não pode deixar de se repercutir também nas questões acessórias à frequência escolar propriamente dita, designadamente no que respeita ao financiamento dos estabelecimentos.

Impunham-se estas considerações preliminares para que, antes de mais, a questão ora em apreço pudesse ficar devidamente contextualizada, prevenindo-se possíveis tentações de enquadrar a relação que se estabelece entre alunos e estabelecimentos de ensino particular – e no caso concreto a política de preços praticada por estes últimos – no âmbito de uma normal relação económica entre privados, não essencialmente diferenciada das demais.

O ordenamento jurídico português consagra como princípio básico da disciplina contratual a liberdade contratual, por meio da qual é reconhecida aos sujeitos a liberdade de contratar e de fixarem o conteúdo dos compromissos que entendam assumir, atribuindo-se aos contratos assim celebrados carácter vinculativo entre as partes.

A autonomia privada detém, portanto, a faculdade de livremente, dentro dos limites da lei, estabelecer a regulamentação que em cada caso se entenda ser a mais adequada para a regência das relações jurídicas estabelecidas, reportando-se aos seus termos a vinculação a que as partes aderem.

Nesse contexto, estabelece o artigo 405.º do Código Civil que dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos.

Este princípio, que teve a sua expressão mais plena no contexto político e filosófico do liberalismo, tem vindo a conhecer desde há muito interpretações crescentemente limitativas, tendentes a corrigir alguns excessos e efeitos perversos decorrentes do primado atribuído à vontade na celebração de contratos.

Desse modo, a vontade das partes poderá ser afastada, designadamente se coexistirem em termos contrários ou incompatíveis aos estipulados pelas partes, valores fundamentais de natureza ética, social e económica pelos quais se rege o ordenamento jurídico.

É a essa circunstância que o já referido artigo 405.º do Código Civil se reporta quando circunscreve aos limites da lei, a liberdade contratual das partes.
Avulta, a este respeito, a obrigação de as partes actuarem em conformidade com o princípio geral da boa fé, o qual será, nesses termos, susceptível de ser ponderado como critério substancial de aferição da validade das condutas adoptadas pelos contraentes, obrigando à sua conformidade com os corolários típicos daquele princípio, quer no período que antecede a celebração do contrato, quer no que respeita ao teor das disposições acordadas quer, por fim, na execução ulterior do contrato.

É exactamente nessa óptica que se defende a necessidade de a estipulação das obrigações resultantes dos contratos ser proporcional e adequada, associada à necessidade de se salvaguardar a posição das partes mais fracas, as quais, ainda que em posição formal idêntica, se podem ver, em função das relações de poder registadas, prejudicadas pelas condições contratuais assumidas, tantas vezes expressão apenas dos interesses da outra parte, negocialmente mais forte, consubstanciando situações desviadas relativamente à natureza comutativa do contrato. Conforme acentua Menezes Cordeiro, “como concretização da boa fé, coloca-se a bitola de um certo equilíbrio material entre as vantagens auferidas, graças ao contrato, pelas partes: não se admitem prejuízos desproporcionados. Esta ideia é, por seu turno, precisada, seja através da regulação legal supletiva…seja mediante o cotejo com o tipo contratual corrente, considerando o confronto em termos teleológicos.” (Da Boa fé no Direito Civil, volume I, página 658).

No mesmo sentido refere Oliveira Ascensão, constituir a necessidade da correspondência substancial das prestações um corolário necessário do princípio geral da boa fé (Teoria Geral do Direito Civil, volume IV, 1993, pag. 198).

Se a necessidade de correspondência substancial das prestações se coloca ao nível dos contratos em geral, ela reveste especial incidência nos casos em que o objecto dos negócios se reporte a áreas que consubstanciem o acesso a bens constitucionalmente protegidos, relativamente aos quais o interesse público subjacente justifica uma necessidade de conformação mais estrita da vontade das partes aos princípios contratuais aplicáveis.

As considerações enunciadas revestem especial pertinência no campo de uma recente modalidade contratual, que se tem vindo a impor com crescente frequência, a que se tem designado de contratos de adesão.
Diz-se contrato de adesão aquele em que um dos contraentes, não tendo a menor participação na preparação e redacção das respectivas cláusulas, se limita a aceitar o texto que o outro contraente oferece, em massa, ao público interessado (cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, volume I, 6.ª edição, pag. 258).

Apesar de serem evidentes as vantagens que esta metodologia contratual permite, ao nível da racionalização da actuação das empresas, isto é, dos usuais proponentes, importa reconhecer os perigos que a mesma implica, não tanto do ponto de vista formal, por a prática em causa não suscitar, por si só, reservas insuperáveis, mas ao nível da protecção da parte económica, social ou intelectualmente mais fraca.

Tal posição de fraqueza advirá não apenas de não ser possível aos interessados negociarem as condições que lhe são propostas, mas também do facto de as demais entidades do ramo disponibilizarem condições basicamente idênticas, não permitindo uma efectiva possibilidade de opção e induzindo a uma diminuição da justiça real dos contratos.

Foi nesse contexto que foi publicado o Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 220/95, de 31 de Agosto, definindo o regime especialmente aplicável aos contratos de adesão e onde se pretende conferir protecção acrescida aos contraentes aderentes, à luz de todos os princípios gerais já contidos na regulamentação geral dos contratos, maxime o princípio da boa fé (cfr. artigo 15.º).

Reconduzindo a questão para os pagamentos exigidos aos alunos que se inscrevam em estabelecimentos – em particular os cursos de formação
inicial(1) -, entendo que quaisquer pagamentos exigidos aos alunos por ocasião do ingresso no estabelecimento não poderão exceder de forma significativa os custos do serviço a que se reportam, por força da especial natureza jurídica do direito ao ensino, já atrás enunciada e da acrescida necessidade de, nesse contexto, se observarem os princípios fundamentais da disciplina contratual vigente.

No caso vertente, é manifesto que, em muitas situações, essa situação não se verifica.
Com efeito, não me parece justificável que, antes do início das aulas, os alunos, para pagamento de serviços essencialmente administrativos (não incluindo, portanto, o pagamento antecipado de propinas), desembolsem quantias da ordem dos setenta ou oitenta mil escudos e, nalguns casos, bastante mais.

Será, porventura, ao nível dos preçários utilizados para a matrícula e inscrição que esta prática assume contornos mais duvidosos, por serem os valores mais elevados e por corresponderem a meros actos dos serviços, ao contrário do que sucede com os procedimentos de candidatura, que de todo em todo não justificarão os pagamentos exigidos.

Caso diferente é o que se refere à antecipação de pagamentos de serviços a prestar no futuro.

É certo que os estabelecimentos terão todo o interesse, legítimo diga-se, em consolidar o compromisso assumido pelo aluno, por meio da elevação do investimento realizado.

Com efeito, não se deve ignorar o esforço e o investimento necessários em vista à criação de condições para receber os alunos que se tenham inscrito.
Mas, para esse fim, será suficiente o estabelecimento de uma penalização, mas a que deverá ser atribuído carácter essencialmente indemnizatório, precavendo eventuais prejuízos decorrentes para o estabelecimento do abandono precoce do aluno, sem que se ultrapasse de forma significativa este quadro, diminuindo-se, designadamente, qualquer natureza sancionatória em sentido estrito da penalização em questão.

Nas várias situações observadas, foram encontrados casos em que o prejuízo sofrido pelo aluno é manifestamente excessivo, designadamente se a desistência ocorrer numa fase inicial do ano lectivo. Com efeito, não apenas não é invariavelmente restituída qualquer verba paga a título de inscrição ou matrícula – que , como se viu, apresentam muitas vezes valores já de si muito elevados – mas ainda se exige, em alguns casos, o pagamento de propinas ainda não vencidas. Num determinado caso, é exigido o pagamento das propinas relativas a todo o ano lectivo!

Este quadro adquire contornos mais delicados se se tiver presente o fenómeno conhecido de inscrição de alunos em estabelecimentos de ensino superior particular numa fase que antecede o conhecimento dos resultados do concurso nacional de acesso ao ensino superior público, precavendo uma eventual não colocação neste último, assistindo-se frequentemente à opção pelo ensino público em prejuízo do ensino particular, com a consequente anulação de matrículas.

Não se trata aqui de qualquer concepção de subsidariedade do ensino particular relativamente ao público, mas tão só de uma constatação de um facto, facilmente comprovável, provavelmente ligado à circunstância de, para o grosso dos alunos, ser preferível frequentar um curso de qualidade pelo menos idêntica a um custo inferior(2).

Neste contexto, e embora se admita não caber aos estabelecimentos de ensino arcar com o risco que os candidatos livremente entenderam assumir, nem por isso se pode admitir um aproveitamento indevido deste fenómeno, tornando acrescidamente pertinente a necessidade de moderação e proporcionalidade, nos termos atrás expostos.

É, portanto, imprescindível que, ao nível da política de preços praticados pelos estabelecimentos de ensino superior particular na admissão de novos alunos, se implementem critérios minimamente objectivos, tendentes a corrigir exageros que se verifiquem nesta matéria por parte de alguns estabelecimentos, só possíveis pela situação de necessidade e inferioridade em que os alunos se encontram.
Só dessa forma se dará plena observância às implicações que o estatuto constitucional do direito ao ensino implica, bem como à demais moldura jurídica aqui aplicável, nos termos que acima expus.

É ao Estado, considerando a incumbência tutelar que lhe é assinalada pela Constituição, que cabe a promoção das medidas rectificativas de excessos cometidos neste âmbito.
Se os mecanismos de auto-regulamentação do sistema não operarem satisfatoriamente, o Estado deverá então lançar mão dos instrumentos que possui, inclusivamente normativos, para impor a regularização da situação.

Atento o exposto, RECOMENDO

que se promova a adopção de medidas tendentes a corrigir alguns excessos pontuais que se verificam em determinados estabelecimentos por ocasião do processo de candidatura e inscrição em estabelecimentos de ensino superior particular e cooperativo, podendo eventualmente inserir-se este procedimento nas atribuições levadas a cabo pelo grupo de missão criado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 139/97, de 21 de Agosto.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

JOSÉ MENÉRES PIMENTEL

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(1) Sendo os cursos de formação inicial o núcleo, por assim dizer, básico e essencial do ensino de nível superior, far-se-ão aí sentir acrescidamente as implicações decorrentes da natureza constitucional do direito ao ensino.
(2) Devo aliás dizer que, em outras ocasiões defendi não poder o ensino superior particular ser secundarizado face ao ensino público, devendo a equiparação legal ser respeitada por parte das entidades responsáveis (cfr. vg. Recomendação n.º 8/B/98, dirigida ao Reitor da Universidade de Coimbra)
(3) Inclui todas as despesas realizadas após a admissão do aluno, designadamente as relativas a matrículas, inscrição, seguros e outras disponibilidades concedidas a título oneroso.
(4) O asterisco indica que a verba em questão será restituída ao aluno em caso de anulação.
(5) Em caso de anulação de matrícula, será paga a verba correspondente ao mês de anulação e dos dois subsequentes.
(6) Sempre que a anulação ocorrer em data posterior ao início do ano lectivo, o aluno fica obrigado ao pagamento integral das propinas de frequência.
(7) Não há lugar ao pagamento de qualquer mensalidade mas, se ocorrer posterior anulação da matrícula, será paga a verba correspondente ao mês da anulação e dos dois subsequentes.