Ministro da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas

Rec. n.º 24/B/00
Proc.:R – 3253/98
Data: 29-12-00
Área: A6

Assunto: DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS. EXPROPRIAÇÕES. REFORMA AGRÁRIA. INDEMNIZAÇÃO.

Sequência: Sem resposta conclusiva

1. A matéria que enquadra a indemnização devida, no âmbito da reforma agrária, aos proprietários de prédios arrendados à data da sua expropriação, nacionalização ou ocupação, pela privação temporária do uso e fruição dos mesmos até à respectiva devolução – questão central da recomendação que nesta data dirijo a Vossa Excelência -, foi já objecto de ponderação por parte desse Ministério da Agricultura, precisamente a propósito das dúvidas então surgidas quanto à interpretação das normas aplicáveis. Dessa análise resultou o Despacho orientador de Sua Excelência o Secretário de Estado da Agricultura, datado de 24 de Outubro de 1996, cujo teor foi comunicado a este órgão do Estado pelo ofício da Direcção Regional de Agricultura do Alentejo de 26 de Setembro de 2000, em resposta a um pedido de esclarecimentos feito no âmbito do processo de indemnização definitiva de que é titular o Senhor … , no qual a questão tem relevância.

Permita-me, Vossa Excelência, discordar da orientação subjacente ao mencionado despacho, já que a mesma, ao multiplicar apenas, para o cálculo da indemnização, o valor da renda à data da ocupação pelo número de anos desde aquela data até ao momento em que os bens passam a estar de novo na posse dos seus proprietários, sem proceder a qualquer actualização desse mesmo valor até à data da devolução, inviabilizará, em prejuízo dos respectivos destinatários, aquilo que a própria lei não veda.

2. Estabelece o art.º 14.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 199/88, de 31 de Maio, na redacção que lhe foi introduzida pelo art.º 1.º do Decreto-Lei n.º 38/95, de 14 de Fevereiro, que “os proprietários ou titulares de outros direitos reais de gozo sobre bens nacionalizados ou expropriados a quem tenham sido devolvidos esses bens em data posterior à da ocupação, nacionalização ou expropriação terão direito a uma indemnização pela privação temporária de uso e fruição dos bens devolvidos”, sendo que, no caso de prédio arrendado, caberá “ao titular de direito real que dispunha de uso e fruição do prédio uma indemnização pelo não recebimento das rendas devidas pelo arrendamento” (cf. n.º 4, 2.ª parte, do mesmo dispositivo legal). Concretizando este princípio, estabelece a Portaria n.º 197-A/95, de 17 de Março, no seu art.º 2.º, n.º 4, que “nos casos de prédios ou partes de prédios não explorados directamente pelos respectivos proprietários ou usufrutuários e em que os direitos de exploração não foram restabelecidos, a indemnização a que se refere o n.º 1 (pela privação temporária do uso e fruição do património fundiário expropriado, nacionalizado ou meramente ocupado e posteriormente devolvido) corresponde ao valor das rendas não recebidas desde a data da ocupação até ao regresso daqueles bens à posse dos seus titulares”.

Importa pois apurar que valor é aquele, procedendo não só à interpretação do teor dos preceitos acima referidos, como à que resultará do enquadramento dos mesmos no regime global das indemnizações do tipo da que aqui nos ocupa.

3. Conforme se pode ler no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 17 de Novembro de 1998, que se debruçou sobre a questão em análise, “mesmo numa interpretação literal do conceito de “rendas não recebidas” pelo senhorio, pode considerar-se por “rendas não recebidas” todas aquelas que o senhorio, tendo o direito de receber, acabou por não receber. Rendas não recebidas não seriam assim as rendas em vigor à data da ocupação até à posterior devolução do prédio, mas as rendas que o senhorio, a quem o Estado devolveu a propriedade, poderia e teria o direito de receber, durante o período em que o próprio Estado veio a reconhecer, mais tarde, ter-se apoderado indevidamente da propriedade privada”. Acrescenta o Tribunal que “o Governo, através de diversas Portarias, fixou os valores máximos do arrendamento rural a vigorar em cada ano, permitindo, assim, que os senhorios pudessem actualizar as rendas até esses limites máximos (…). E reportando-se ao caso concreto, adianta “que a não se ter verificado a nacionalização e a posterior ocupação do prédio em causa, a renda (…) poderia ter sido actualizada pelos senhorios de forma a estes obterem um rendimento que o próprio Estado considerou adequado ao fixar valores máximos de arrendamento rural. Designadamente, nada impedia que o próprio Estado, de acordo com os critérios que ele ponderou como correctos para as rendas a pagar, fizesse a actualização das rendas em causa”.

Conclui o mesmo aresto no sentido de que resulta da “análise da legislação específica aplicável ao caso que o Estado procurou indemnizar o proprietário pela privação do uso e fruição do prédio nacionalizado, sendo certo que no âmbito desse conceito de uso e fruição estão abrangidos os poderes do proprietário para “tirar” da coisa todos os rendimentos, todos os proveitos, todas as vantagens de que ela é susceptível (cita-se C. Gonçalves, in “Da propriedade e da posse”) e que, entre essas vantagens, se enquadra claramente o poder do proprietário de actualizar as rendas do prédio arrendado”. Aliás, o acórdão acaba por dar provimento ao recurso e anular os despachos dos membros do Governo em causa, “por violação, por erro de interpretação, do disposto no art.º 14.º, n.º 4 do D.L. 199/88 de 31 de Maio na redacção do D.L. 38/95 de 14/02 e o art.º 2.º n.º 4 da Portaria 197-A/75 de 17 de Março”.

4. A interpretação dos preceitos em apreço na presente análise permite só por si, nos termos referidos, a solução preconizada na orientação jurisprudencial referida. De qualquer forma, a mesma é ainda reforçada pelo espírito subjacente à legislação considerada no seu todo, quando a mesma prescreve, no art.º 7.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 199/88 que “as indemnizações definitivas pela expropriação ou nacionalização ao abrigo da legislação sobre reforma agrária serão fixadas com base no valor real e corrente desses bens e direitos (…), de modo a assegurar uma justa compensação pela privação dos mesmos bens e direitos” (sublinhado meu). Ou quando estabelece o cálculo do valor definitivo da indemnização pela privação temporária do uso e fruição do património fundiário expropriado, nacionalizado ou meramente ocupado e posteriormente devolvido “com base nos rendimentos líquidos médios, já actualizados” (art.º 2.º, n.º 1, da Portaria n.º 197-A/95), ou ainda quando adopta preços actuais para o cálculo do valor da indemnização, como faz no art.º 3.º desta Portaria n.º 197-A/95.

5. À mesma conclusão se chega se se atentar no conceito de justa indemnização a que alude o art.º 62.º da Constituição da República Portuguesa. Numa anotação ao mencionado preceito constitucional, que precisamente garante a todos os cidadãos o direito à propriedade privada, adiantando que “a requisição e a expropriação por utilidade pública só podem ser efectuadas com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização” (n.º 2), esclarecem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira que esta ideia de justa indemnização comporta “duas dimensões importantes: (a) uma ideia tendencial de contemporaneidade, pois, embora não sendo exigível o pagamento prévio, também não existe discricionariedade quanto ao adiamento do pagamento da indemnização; (b) justiça de indemnização quanto ao ressarcimento dos prejuízos suportados pelo expropriado, o que pressupõe a fixação do valor dos bens ou direitos expropriados que tenha em conta, por exemplo, a natureza dos solos (aptos para construção ou para outro fim), o rendimento, as culturas, os acesso, a localização, os encargos, etc., isto é, as circunstâncias e condições de facto” (in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 3.ª edição revista, 1993, pg. 336).

Acrescentam ainda os mesmos autores o seguinte: “É certo que, determinando a Constituição que a indemnização há-de ser “justa”, ela não estabelece, porém, qualquer critério indemnizatório (“valor venal”, “valor de mercado”, “valor real”, etc.); mas é evidente que os critérios definidos por lei têm de respeitar os princípios materiais da Constituição (igualdade, proporcionalidade), não podendo conduzir a indemnizações irrisórias ou manifestamente desproporcionadas à perda do bem requisitado ou expropriado” (ob. cit., pg. cit.). Se se atentar, por exemplo, na lei civil, verifica-se que o art.º 564.º precisamente do Código Civil explicita que ” o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão”. De qualquer forma, e conforme já referido, a legislação que aqui nos interessa estabelece o critério do valor real e corrente dos bens para o cálculo da indemnização em apreço.

6. Apreciando em abstracto a questão da indemnização devida por expropriação ou nacionalização (e considerando, já que a legislação sobre reforma agrária equipara as situações, que a Constituição é menos exigente no que respeita à indemnização por nacionalização do que à indemnização por expropriação), explicita o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão n.º 452/95 (publicado no Diário da República, II Série, de 21 de Novembro de 1995, pp. 13 897 e ss.), que “por “justa indemnização”, para efeitos de expropriação, deve entender-se, de acordo com a doutrina, uma indemnização total ou integral do sacrifício patrimonial infligido ao expropriado ou uma compensação plena da perda patrimonial suportada, que respeite o princípio da igualdade, na sua manifestação de igualdade dos cidadãos perante os encargos públicos, não apenas dos expropriados entre si, mas destes com os não expropriados”. E acrescenta-se naquele aresto: “Uma indemnização justa (na perspectiva do expropriado) será aquela que, repondo a observância do princípio da igualdade violado com a expropriação, compense plenamente o sacrifício especial suportado pelo expropriado, de tal modo que a perda patrimonial que lhe foi imposta seja equitativamente repartida por todos os cidadãos” (p. 13 905).

Ora, a interpretação que esse Ministério consagra da lei põe em manifesta desigualdade aqueles que se viram impossibilitados de aumentar as rendas dos prédios que tinham arrendados à data da respectiva ocupação, face aos que o puderam fazer, de acordo, é claro, com os preços máximos estabelecidos pelo Governo.

Note-se que a invocação da doutrina do Acórdão 452/95, em seguimento do disposto no art.º 83.º da Constituição não colhe para impor o entendimento seguido por esse Ministério, como aliás foi tentado pelo Ministério Público no acórdão supra citado do Supremo Tribunal Administrativo. Na verdade, se a Constituição mostra abertura suficiente para que no caso de nacionalização a indemnização possa ser calculada segundo critérios distintos dos impostos em sede de expropriação, nada permite concluir que essa seja uma imposição ou sequer um critério interpretativo na aplicação da legislação pertinente. Se uma norma hipotética acolhesse o entendimento desse Ministério, nenhuma censura do ponto de vista da sua constitucionalidade seria viável. Contudo, não tendo o órgão legislativo aproveitado essa autorização constitucional para restringir o valor da indemnização, não é lícito à Administração substituir-se ao legislador, ao tentar integrar essa omissão, desrespeitando a intenção legislativa, ao restringir injustificadamente os critérios indemnizatórios estabelecidos. O art.º 83.º da Constituição permite actuações à lei que veda à intervenção normativa que lhe seja inferior.

Na verdade, nada dispondo a lei em termos de especialidade de regime, muito pelo contrário mandando aplicar supletivamente o regime legal das expropriações, não é viável o entendimento agora defendido por esse Ministério, mais a mais tratando-se de matéria de direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias. Aqui, como refere a doutrina, se dúvidas existissem, sempre seria de se aplicar o princípio de in dubio pro libertate, alcançando o entendimento legal menos lesivo dos direitos dos cidadãos (cfr. Miranda, Jorge, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, pg. 308).

Acrescenta-se que a lei, para os efeitos aqui em consideração – e apesar de excepcionar, do seu campo de aplicação, as situações em que à data da expropriação, nacionalização ou ocupação o proprietário restabeleceu os seus direitos de exploração até então na titularidade de um arrendatário (cf. art.º 2.º, n.º 4, da portaria) -, não fala nunca em fim do arrendamento, apenas diz que a indemnização em causa corresponderá ao valor das rendas não recebidas desde a data da ocupação até ao regresso dos bens à posse dos seus titulares. A lei, na impossibilidade de poder apurar que tipo de aproveitamento os proprietários fariam dos bens aqui em discussão durante a respectiva ocupação, acabou por fixar, para efeitos de cálculo da indemnização, o tipo de aproveitamento do bem à data da respectiva ocupação, mas não apenas o valor obtido, naquela mesma data, pelo proprietário na decorrência desse aproveitamento. Assim sendo, e na ausência de outro critério para o apuramento dos prejuízos que resultaram para o proprietário da ocupação, acabou a lei por presumir que, durante o período da ocupação, o aproveitamento dado ao prédio arrendado seria o mesmo que até então lhe era concedido, ou seja, o arrendamento. Pelo que o valor da indemnização pela privação temporária do uso e fruição desses bens mais não será do que a restituição hipotética da situação nos termos enunciados, baseada, é certo, no tipo de aproveitamento que o prédio tinha à data da ocupação, mas não apenas no valor resultante desse aproveitamento nessa mesma data. Em momento algum a legislação aplicável veda a actualização do valor resultante de tal aproveitamento, não afastando, para o cálculo da indemnização, a circunstância de que o proprietário, se isso lhe tivesse sido permitido, teria provavelmente rentabilizado tal aproveitamento, no caso actualizando o valor das rendas de acordo com as tabelas acima mencionadas.

7. Permita-me, Senhor Ministro, apenas acrescentar que Vossa Excelência não deixará de considerar a relevância da questão aqui colocada, já que em 2 de Julho de 1996, enquanto Secretário de Estado, terá subscrito um despacho orientador que precisamente interpretava a lei no sentido da indemnização em causa englobar a actualização proporcional dos valores das rendas, de acordo com as tabelas de rendas máximas que entretanto foram sendo fixadas por portaria. Tal orientação acabou por não vingar, atendendo ao teor do despacho posterior de interpretação dos preceitos em apreço, já acima mencionado.

8. Perante tudo o que fica exposto, e ao abrigo do disposto no art.º 20.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 9/91, de 09 de Abril, RECOMENDO a Vossa Excelência:

a) Que os art.ºs 14.º, n.º 4, 2.ª parte, do Decreto-Lei n.º 199/88, de 31 de Maio, na redacção que lhe foi introduzida pelo art.º 1.º do Decreto-Lei n.º 38/95, de 14 de Fevereiro, e 2.º, n.º 4, da Portaria n.º 197-A/95, de 17 de Março, sejam interpretados no sentido de se considerar, no cálculo das indemnizações que caem no respectivo âmbito, os valores respeitantes à actualização das rendas em apreço, desde a data da expropriação, nacionalização ou ocupação dos prédios até à data da respectiva devolução, com base nos valores constantes das tabelas que fixaram, durante o período em causa, os valores máximos para o arrendamento rural a praticar pelos destinatários desta legislação.

b) Que a interpretação acima recomendada quanto à legislação em análise passe a orientar todos os eventuais processos pendentes nesse Ministério aos quais a questão aproveite, designadamente ao caso concreto objecto da queixa que motivou a formulação da presente recomendação, e que se reporta ao processo de indemnização definitiva n.º …, de que é titular o Senhor … , processo este que, em finais de Setembro do corrente ano, se encontrava ainda na Direcção Regional de Agricultura do Alentejo.

9. Na expectativa de que o que acima fica exposto venha a merecer o acolhimento desejável, e aguardando a comunicação relativa à posição que o Ministério assumirá perante o acima recomendado, envio a Vossa Excelência os melhores cumprimentos.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

H. NASCIMENTO RODRIGUES