Ministro da Defesa Nacional
P-7/94
Nº 14/B/99
1999.05.11
Área: A5

Assunto:MILITARES – DIREITO PENITENCIÁRIO MILITAR – ALTERAÇÃO LEGISLATIVA – LEI GERAL PENITENCIÁRIA MILITAR.

Sequência:Sem resposta.

1. No âmbito da instrução do processo acima identificado, solicitou a Provedoria de Justiça informação a esse Ministério acerca da eventual adopção, por parte do Governo, “de medidas tendentes a alterar o actual regime prisional militar e quais, em caso afirmativo” (cf. ofício n…º).
1.1. Teve-se então a preocupação de esclarecer que a questão se devia “ao facto de o Direito Penitenciário Militar ser regulado pelo Decreto de 30 de Dezembro de 1896, que se revela totalmente desadequado aos fundamentos do Estado de direito democrático” e aproveitou-se a ocasião para questionar o Ministério acerca da eventual existência de regulamentos internos ou quaisquer outras normas legais que disciplinassem o funcionamento dos presídios militares, para além do citado Decreto de 1896.
1.2. O Ministério da Defesa Nacional limitou-se a informar, em 28.05.1998, que se encontra em curso o processo de elaboração de medidas relacionadas com as matérias supra mencionadas, em cumprimento do estabelecido no Programa do Governo. Já depois de a Provedoria de Justiça ter confirmado, através do Gabinete do Chefe do Estado-Maior do Exército (CEME), que o Decreto Real de 24 de Dezembro de 1896, que aprovou o Regulamento Geral dos Estabelecimentos Penais Militares, se mantém “parcialmente em vigor por não ter sido expressamente revogado, mas na prática não se aplica por estar desajustado em relação à realidade jurídica e penal actual ” (cf. ofício n.º 2782 do Gabinete do CEME, em anexo).

2. Qualquer leitura, ainda que superficial, do Decreto de 30 de Dezembro de 1896 revela o seu profundo desfasamento face à actual realidade jurídico-social do País.
2.1. Sem pretender ser exaustivo, apontaria alguns aspectos que me parecem particularmente ilustrativos do que acabo de referir:
2.1.1. Prevê o artigo 20º do Decreto que, aquando do ingresso dos condenados no presídio, o respectivo comandante “exortará o preso à resignação, explicando-lhe as regras do estabelecimento e fazendo-lhe conhecer que, durante o trabalho, nos exercícios ao ar livre e na escola, juntamente com os outros presos, não pode falar com os seus companheiros de prisão, e que a infracção a este preceito constitui uma das faltas mais graves que se podem cometer no presídio”.
2.1.2. Quanto à instrução – obrigatória para todos os condenados, excepto para aqueles que possuam instrução superior – ela constará, para além de outros exercícios, de um ditado, no qual “os professores escolherão sempre máximas, preceitos de moral, conselhos de disciplina militar e reflexões salutares que, repetidas vezes escritas pelos presos, lhes fiquem bem gravadas no espírito” (artigo 48º).
2.1.3. No que diz respeito às visitas e correspondência, dispõe o Decreto em causa que ambas “somente serão permitidas aos presos depois de três meses de encarceramento no presídio” (artigo 53º) e que “nenhum preso poderá receber mais que duas visitas por mês, nem escrever mais de duas cartas em igual tempo, a não ser por motivo de recompensa” (artigo 54º); devendo as cartas, quer as escritas pelos presos, quer as que lhes forem dirigidas, ser submetidas à inspecção do comandante (artigo 59º).
2.1.4. Relativamente às penas disciplinares, as mesmas consistem, para além da repreensão e privação da leitura, das visitas ou da correspondência, na imposição de um jejum de pão e água até quinze dias e na reclusão numa cela escura pelo mesmo período de tempo. Sendo certo que, de acordo com o estipulado no artigo 64º do diploma “deve procurar manter-se na prisão a ordem material, a obediência, a regularidade dos hábitos de trabalho, por meios ascendentes de moderação, já empregados pelo comandante, já pelos seus imediatos; mas quando isso não baste e seja necessário empregar a repressão, nesse caso ela deve ser dura e exemplar.”
2.1.5. No que concerne à assistência moral e religiosa, encontra-se esta a cargo do capelão, que, para além de “dever ensinar aos presos as verdades essenciais da religião”, deverá “fazer-lhes conferências morais, reunindo-os na capela, e práticas espirituais na cela; escolher os livros que eles possam ler, e dirigir e encaminhar essa leitura” (artigo 84º). Prevendo-se, expressamente, que as conferências morais serão preparadas “pelo capelão com escrupuloso cuidado, de maneira que elas tendam a desenvolver os sentimentos do justo, o amor da pátria e da família, o respeito e a obediência à Lei e aos chefes, e apreciar as vantagens da disciplina” (artigo 85º).

3. Não é tanto o aspecto quase caricatural que se acaba de expor que constitui minha preocupação, tendo em conta que os preceitos acima citados não passarão, seguramente, de mera curiosidade histórica, mas sim o vazio legal que tal sorte de dispositivos acarreta, como inequivocamente resulta da resposta supra mencionada do CEME.

4. Na verdade, a execução das penas carece – como expressivamente decorre do extenso e pormenorizado articulado do Decreto-Lei n.º 265/79, de 1 de Agosto – de uma cuidada regulamentação. De resto, é hoje crescente a importância conferida pelos estudiosos do Direito Penal e das matérias com ele conexas às questões relacionadas com a execução das penas privativas de liberdade, que constituem, inegavelmente, um dos domínios preponderantes das actuais políticas criminais da generalidade dos Estados de direito. O próprio Código de Justiça Militar, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 141/77, de 9 de Abril, prevê a existência de um Regulamento Geral dos Estabelecimentos Penais Militares – consentâneo, naturalmente, com a ordem jurídico-constitucional do País -, ao referir no seu artigo 30º que “a pena de presídio militar consiste no encerramento em um estabelecimento prisional para esse fim designado, com sujeição ao regime fixado na Lei regulamentar”.

5. Em suma, a doutrina aconselha, a Lei prevê e o regime actualmente em vigor impõe a rápida aprovação de um Regulamento Penitenciário Militar. Nele deverão ser clarificados os princípios gerais condutores da execução das penas privativas de liberdade em meio militar e concretizadas as regras que se prendem com a execução propriamente dita das penas, em obediência ao princípio da legalidade.
5.1. Relativamente ao primeiro grupo de questões, importará considerar se as inegáveis especificidades da relação jurídico-penitenciária militar a devem ou não diferenciar da relação penitenciária comum, designadamente em matéria de finalidades da execução, concessão de medidas flexibilizadoras da prisão, disciplina e segurança; aspectos que, a meu ver, deverão merecer uma cuidada reflexão.
5.2. Destaco, a título exemplificativo, e apenas no que concerne à flexibilização da pena de prisão, o facto de os presos militares não poderem actualmente beneficiar de saídas dos estabelecimentos prisionais durante o cumprimento da pena, contrariamente ao que sucede com o regime prisional comum, dado não lhes ser aplicável o disposto nos artigos 49º a 62º do Decreto-Lei n.º 265/79, de 1 de Agosto.
5.3. De igual modo, a liberdade condicional – essa sim prevista no Código de Justiça Militar (CJM) – goza de um regime diferente daquele que vigora para os não militares, com importantes restrições, de entre as quais se destaca a que consta do artigo 228º, e), do CJM, segundo o qual “compete aos Chefes dos Estados-Maiores do Exército, da Armada e da Força Aérea, como autoridades superiores em cada um dos ramos das forças armadas autorizar as propostas de concessão e revogação da liberdade condicional, apresentadas pelos comandantes dos estabelecimentos penais, relativamente aos condenados em cumprimento de penas de presídio e prisão militares, determinando a sua remessa ao tribunal competente”.
5.4. Por outro lado, é sabido que a consagração, entre nós, dos Tribunais de Execução das Penas não abrangeu o Direito Penitenciário Militar, pelo que os militares não beneficiam da acção de uma magistratura especializada no cumprimento das penas privativas de liberdade e na reintegração social dos reclusos. No âmbito da Justiça Militar, é ao próprio tribunal da condenação que compete fiscalizar a execução da pena, “decidindo todos os incidentes surgidos durante a execução da mesma” (artigo 472º, n.º 1, do CJM).

6. A par de muitas outras questões de que não cabe aqui tratar, estou certo de que as que se acabam de enunciar não deixarão de ser equacionadas na preparação do diploma que deverá regular as condições de reclusão nos estabelecimentos prisionais militares. Do mesmo modo, e independentemente das soluções que ali vierem a ser consagradas, serão certamente considerados os princípios gerais que têm vindo a ser sucessivamente proclamados nos documentos internacionais aprovados sobre a matéria, de entre os quais se destaca o princípio da ressocialização dos reclusos, como objectivo último das penas privativas de liberdade, de que faz eco a regra n.º 58 das Regras Mínimas Para o Tratamento dos Reclusos adoptadas pelas Nações Unidas.

7. No que concerne à execução da pena propriamente dita, o Decreto-Lei n.º 265/79, de 1 de Agosto, constituirá certamente uma importante base de apoio (aliás em fase de profunda remodelação no âmbito do Ministério da Justiça), uma vez que ali se regula a generalidade dos aspectos que importa considerar num diploma desta natureza: alojamento, ocupação, segurança e disciplina, comunicações com o exterior, convívio, assistência moral e espiritual, administração penitenciária, alimentação e saúde.

8. Conforme lapidarmente se refere no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 142/77, de 9 de Abril, que revogou, como ali se recorda, o Regulamento de Disciplina Militar “cujas linhas fundamentais remontam ao de 1913, (…) não podia deixar a nova Lei fundamental do Estado de projectar os seus reflexos no âmbito das forças armadas e da legislação militar, sugerindo a consagração de soluções mais consentâneas com os tempos actuais, soluções essas que, como é evidente, jamais deveriam sacrificar as imprescindíveis e intemporais exigências de unidade, força moral e eficiência das forças armadas”.
Termos em que, fazendo uso dos poderes que me são conferidos pelo artigo 23º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa,RECOMENDO

a Vossa Excelência que, com urgência, sejam ultimados os estudos necessários à rápida publicação de uma Lei Geral Penitenciária Militar consentânea com a ordem jurídico-constitucional portuguesa.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel