Presidente do Governo Regional dos Açores
R-3427/98
Nº 21/B/99
1999.06.17
Área :Açores

Assunto:AMBIENTE – PAISAGEM PROTEGIDA DE INTERESSE REGIONAL – DISCIPLINA URBANÍSTICA – REGULAMENTAÇÃO.

Sequência: Sem resposta.

I-
As áreas de altura igual ou inferior a 100m da freguesia dos Biscoitos – no concelho da Praia da Vitória, na ilha Terceira – constituem um património paisagístico, arquitectónico e histórico com características muito particulares. De um ponto de vista agrícola, a actividade vitivinícola – com a produção do vinho licoroso designado verdelho – converteu-se em referência local e regional, bem como – em especial após a publicação do Decreto-Lei nº 17/94, de 25 de Janeiro – em denominação de carácter nacional. Numa perspectiva ambiental, e para além dos aspectos já referidos, o micro-clima proporcionado pela construção de muros de protecção (currais) e pela arrumação da pedra constitui um elemento singular da caracterização ecológica da freguesia dos Biscoitos.

A localização da Zona Vitivinícola dos Biscoitos na faixa litoral da freguesia, bem como as especiais características climatéricas, contribuem, igualmente, para constituir a sua área numa zona de forte pressão urbanística.

A questão da construção não devidamente licenciada na freguesia dos Biscoitos foi trazida à apreciação do Provedor de Justiça através de uma reclamação na qual eram sugeridas determinadas medidas instrutórias, nos seguintes termos:
“(…) a indagação necessária no sentido de se apurar da dimensão da agressão, em termos de construção urbana, na zona dos Biscoitos – nomeada e principalmente quanto à zona de produção de vinho;
Indagando junto da Câmara Municipal de Praia da Vitória, sobre as medidas efectivas tomadas ou em vias de serem tomadas quanto a esta matéria;
Indagando junto das entidades Legislativas Competentes sobre os instrumentos legais em vigor e a publicar que previnam futuras lesões ao património referido e remedeiem lesões já perpetradas (…)”.

Vejam-se quais as principais questões que a presente análise suscita.
Num primeiro momento, importa conhecer o conjunto dos instrumentos de carácter legislativo, bem como outras medidas que hajam sido asseguradas, visando a preservação da área da freguesia dos Biscoitos integrada na Zona Vitivinícola dos Biscoitos (v.g. de altitude igual ou inferir a 100m).
Uma segunda matéria prende-se com a análise da problemática da compatibilização do exercício de uma política de ordenamento do território e de reconversão agrária com o direito dos particulares de desencadearem procedimentos destinados à obtenção de licenças de construção, nos limites das normas legais e regulamentares vigentes.
A síntese resultará, então, num conjunto de medidas susceptíveis de garantir a salvaguarda das características próprias da zona de produção de vinho dos Biscoitos, e que se compatibilizem com a concessão de determinadas licenças, maxime, as licenças de construção.

II-
Constituindo o Governo Regional dos Açores o “órgão superior da administração regional” a quem cabe “a condução da política da Região” , cuidou-se de apurar quais as medidas por este desencadeadas ou promovidas em ordem à preservação da Zona Vitivinícola dos Biscoitos; e situando-se esta na área concelhia de Praia da Vitória importava, igualmente, saber junto da respectiva câmara municipal:
-O número de processos de licenciamento de obras particulares para construção de edificações, e de informação prévia, organizados na Câmara Municipal da Praia da Vitória, desde 1990 até ao presente;
-As utilizações das edificações indicadas nos pedidos;
-O número de alvarás de licença de utilização emitidos;
-O número de autos lavrados pelos serviços de fiscalização municipal, relativos a construções não licenciadas e a utilizações desconformes com o respectivo alvará de licença de utilização;
-As medidas, de natureza essencialmente urbanística ou outra, desencadeadas pela Câmara Municipal da Praia da Vitória, por forma a preservar a área em causa.
O dever de audição prévia (vide artigo 34º da Lei nº 9/91, de 9 de Abril) foi cumprido através dos ofícios nºs…, dirigidos ao Gabinete de Vossa Excelência e ao senhor Presidente da Câmara Municipal de Praia da Vitória, respectivamente.

III-
O senhor Presidente da Câmara Municipal de Praia da Vitória, a coberto do ofício nº …, remeteu à Provedoria de Justiça os elementos informáticos relativos aos processos de obras organizados nos respectivos serviços administrativos.
Em 03/11/98 (ofício nº …), o Gabinete de Vossa Excelência prestou esclarecimentos nos seguintes termos:
“1.Através da Resolução nº 147/98, de 25 de Junho, foram ratificadas as medidas preventivas para a zona litoral da freguesia dos Biscoitos, aprovadas pela Assembleia Municipal da Praia da Vitória, antecedendo a elaboração do plano de pormenor para aquela zona.
2.Pela Resolução nº 150/98, de 25 de Junho, foi criado um grupo de trabalho multidisciplinar encarregado de promover e supervisionar a realização do estudo de salvaguarda do património natural e edificado característico da cultura da vinha dos Biscoitos, propondo a delimitação geográfica da respectiva área, com vista à sua eventual classificação como “paisagem protegida de interesse regional”.
3.O referido grupo de trabalho já reuniu três vezes, tendo sido a 2ª reunião precedida de uma visita à zona sujeita a estudo.
4.No passado dia 26 de Outubro do corrente, realizou-se a 3ª reunião do grupo de trabalho, tendo resultado a elaboração do caderno de encargos com vista à caracterização do património natural e edificado característico da cultura da vinha dos Biscoitos”.
A delimitação da matéria objecto de análise impõe, do mesmo passo, a consideração dos instrumentos normativos que disciplinam a actividade urbanística na área do concelho de Praia da Vitória compreendida na altitude igual ou inferir a 100m da freguesia dos Biscoitos.
Em 28/02/97, a Assembleia Municipal da Praia da Vitória aprovou o estabelecimento de um conjunto de medidas preventivas com o objectivo de preservar as condições naturais existentes na zona litoral dos Biscoitos até à data da entrada em vigor do Plano de Pormenor daquela área. Foi obtido, em 02/12/97, o parecer favorável condicionado (ao cumprimento das disposições legais em vigor) da Secretaria Regional da Presidência para as Finanças e Planeamento.

Transcrevem-se, na íntegra, as medidas preventivas aprovadas para a zona litoral da freguesia dos Biscoitos:

Artigo 1º-Área abrangida
As medidas preventivas têm por objecto a zona indicada nas plantas à escala 1/10.000 e 1/2.000, em anexo, e delimitadas a nascente, pela Rua Longa, a sul, pela Estrada Regional nº 1 de 1ª, a poente, pela Ribeira do Pamplona, e a norte, pela orla marítima. Exclui-se a faixa de terrenos delimitada a nascente, pela Canada do Porto, a sul, pela Estrada Regional nº 1 de 1ª, a poente, pela Canada da Salga e a norte, pela via de ligação das Canadas do Porto com a da Salga.

Artigo 2º-Tipo de limitações
São proibidas, na zona referida no número anterior , todas as obras de construção civil, designadamente, novos edifícios e reconstrução, ampliação, alteração ou demolição de edificações, e ainda trabalhos que, não possuindo natureza exclusivamente agrícola, impliquem alteração da topologia local.

Artigo 3º-Fiscalização
A observância das presentes medidas será objecto da fiscalização dos serviços competentes da Câmara Municipal da Praia da Vitória.

Artigo 4º-Sanções
As violações das medidas preventivas serão sujeitas às sanções previstas na Lei.

Artigo 5º-Vigência
1.As medidas caducam com a entrada em vigor do Plano de pormenor da Zona Litoral dos Biscoitos.
2.Sem prejuízo do disposto no número anterior, as medidas têm um prazo de vigência de dois anos, podendo ser prorrogado por mais um.

Artigo 6º-Entrada em vigor
As presentes medidas entram em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.
Mediante a aprovação da Resolução nº 147/98, de 25 de Junho, o Governo Regional dos Açores ratificou as medidas preventivas – tendo excluído de ratificação o disposto no artigo 5º, nº 1, e no artigo 6º.

Através da Resolução nº 150/98, de 25 de Junho (aprovada no mesma reunião do Conselho do Governo, de 05/06/98, que ratificou as medidas preventivas propostas pela Assembleia Municipal da Praia da Vitória), foi criado um grupo de trabalho “encarregado de promover e supervisionar a realização do estudo de salvaguarda do património natural e edificado característico da cultura da vinha dos Biscoitos, na ilha Terceira, propondo a delimitação geográfica da respectiva área, com vista à sua eventual classificação como “Paisagem Protegida de Interesse Regional” (…)”.

Em face dos elementos computados na presente instrução, e acima expostos, cumpre tomar posição sobre o pedido constante do texto da queixa, atendendo, igualmente, ao quadro factual e normativo de que deram conta as entidades regionais ouvidas.

IV-
A protecção e a valorização do património cultural, a defesa da natureza e do ambiente, a preservação dos recursos naturais e a obtenção de um correcto ordenamento do território constituem tarefas fundamentais do Estado [artigo 9º, alínea e), da Constituição da República Portuguesa]. Não se trata, porém, de uma obrigação unilateral do Estado mas converte-se em “verdadeiros direitos e deveres dos cidadãos: direito ao ambiente e dever de o defender (artigo 66º), direito à fruição do património e dever de o defender (artigo 78º)” .
A disposição contida no artigo 9º da Lei Fundamental vai encontrar concretização em diversos preceitos da Constituição. E com incontornável importância para o presente estudo, o artigo 66º dispõe que “para assegurar o direito ao ambiente, no quadro de um desenvolvimento sustentável, incumbe ao Estado, por meio de organismos próprios e com o envolvimento e a participação dos cidadãos” (nº 2) “ordenar e promover o ordenamento do território, tendo em vista uma correcta localização das actividades, um equilibrado desenvolvimento sócio-económico e a valorização da paisagem” [alínea b)].
O imperativo constitucional de ordenamento do território – instrumento indispensável do exercício do direito ao ambiente – moldou, igualmente, os princípios e normas da Lei de Bases do Ambiente. No que concerne, em especial, ao solo, o artigo 13º da Lei nº 11/87, de 7 de Abril, preconiza a defesa e a valorização deste recurso natural mediante “a adopção de medidas conducentes à sua racional utilização, a evitar a sua degradação e a promover a melhoria da sua fertilidade e regeneração (…)” (nº 1). Para ser alcançado este objectivo “será condicionada a utilização de solos agrícolas de elevada fertilidade para fins não agrícolas (…)” (1ª parte do nº 2).

Este princípio de gestão racional do solo vai conduzir à possibilidade de serem impostas restrições, não só à ocupação, mas também à utilização dos solos agrícolas de elevada fertilidade. Assim:
a)”Aos proprietários de terrenos ou seus utilizadores podem ser impostas medidas de defesa e valorização dos mesmos (…)” (nº 3);
b)Pode ser proibido, ou condicionado, o uso de biocidas, pesticidas, herbicidas, adubos, correctivos ou quaisquer outras substâncias similares (nº 4);
c)A ocupação para fins urbanos e industriais, bem como a instalação de equipamentos e infra-estruturas não agrícolas, ficará condicionada à natureza, topografia e fertilidade do solo (nº 5).

A par destas limitações especialmente determinadas por preocupações ambientais (daí a sua inserção na Lei de Bases do Ambiente), registe-se que um mais amplo conjunto de normas jurídicas e regulamentares disciplina esta matéria. Desde logo, o Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU), aprovado pelo Decreto-Lei nº 38.382, de 7 de Agosto de 1951, que estabelece regras quanto à construção, alteração, recuperação ou demolição de edifícios, bem como outros trabalhos que impliquem alterações da topografia local. Também o Decreto-Lei nº 445/91, de 20 de Novembro (alterado pela Lei nº 29/92, de 5 de Setembro, e pelo Decreto-Lei nº 250/94, de 15 de Outubro), que aprovou o regime jurídico do licenciamento municipal de obras particulares. E o Decreto-Lei nº 139/89, de 28 de Abril, que impõe a necessidade de prévio licenciamento municipal das acções de destruição do revestimento vegetal que não tenham fins agrícolas, bem como das actividades de aterro ou escavação que conduzam à alteração do relevo natural e das camadas de solo arável.

Acrescente-se, por fim, a recentíssima criminalização de certas condutas lesivas do ambiente alcançada na revisão do Código Penal de 1982 operada pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março (na sequência da autorização legislativa conferida pela Assembleia da República através da Lei nº 35/94, de 15 de Setembro). Não cabendo aqui a análise da problemática da adequação da repressão penal às necessidades de tutela do ambiente , registe-se, sem mais, a disposição contida no artigo 278º, do Código Penal.

Artigo 278º-Danos contra a natureza

1.Quem, não observando disposições legais ou regulamentares, eliminar exemplares de fauna ou flora ou destruir habitat natural ou esgotar recursos do subsolo, de forma grave, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa até 600 dias.
2.Para os efeitos do número anterior o agente actua de forma grave quando:
a)Fizer desaparecer ou contribuir decisivamente para fazer desaparecer uma ou mais espécies animais ou vegetais de certa região;
b)Da destruição resultarem perdas importantes nas populações de espécies de fauna ou flora selvagens legalmente protegidas;
c)Esgotar ou impedir a renovação de um recurso do subsolo em toda uma área regional.
(…)
Em face do que fica exposto não estranhará, portanto, a conclusão segundo a qual, a par de um direito negativo ao ambiente – “um direito à abstenção, por parte do Estado e de terceiros, de acções ambientalmente nocivas” -, existe um “direito positivo a uma acção do Estado, no sentido de defender o ambiente e de controlar as acções poluidoras deste, impondo-lhe as correspondentes obrigações políticas, legislativas, administrativas e penais”. Tende a ser pacífico, pelo menos na maioria da doutrina , o entendimento de que inexiste um direito ao ordenamento do território – sendo ainda duvidosa a possibilidade de se falar num genérico direito ao ambiente. Este facto não impede, no entanto e como refere JORGE MIRANDA , que toda esta matéria se projecte no “domínio dos direitos fundamentais”. Daqui, este autor retira as seguintes conclusões:
-O ambiente e o ordenamento do território são matérias intrinsecamente relacionadas com interesses difusos (e não tendem a colidir, pelo menos tão directamente, com direitos subjectivos),
-Não obstante, os interesses difusos podem constituir-se em verdadeiros direitos fundamentais;
-O direito ao ambiente conduz a direitos, liberdades e garantias, ou a direitos de natureza análoga – muito mais do que a direitos económicos, sociais e culturais;
-Os sujeitos passivos daqueles direitos tanto podem ser o Estado e entidades públicas, como entidades privadas;
-O dever de defender o ambiente constitui um dever fundamental autónomo – e não um mero efeito externo da previsão de um direito.

Do que fica dito vai somente um passo até à seguinte afirmação: “(…) nunca poderiam os particulares invocar uma expectativa de imutabilidade da ordem jurídica com que razoavelmente pudessem contar, porque não poderiam ignorar nem as mencionadas incumbências e imposições do Estado, desde 1976, respeitantes ao ambiente e ao ordenamento do território, nem a sucessiva emanação de normas legais e regulamentares destinadas a conferir-lhes crescente concretização e execução”.

Se, para além de tudo o que deixei dito, se atentar igualmente no regime de responsabilidade das entidades públicas consagrado no artigo 22º da Constituição da República (“o Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa do exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem”), e no regime de responsabilidade dos titulares de cargos políticos do artigo 117º, nº 1 (“os titulares de cargos políticos respondem política, civil e criminalmente pelas suas acções e omissões que pratiquem no exercício das suas funções”), está aberta a porta para a discussão da questão da responsabilidade pela aprovação (ou pela não aprovação) de facto legislativo em violação de direitos, liberdades e garantias ou interesses legalmente protegidos .

Mas diga-se, igualmente, que em termos de ordenamento do território não existe o exclusivo de nenhuma entidade pública na concretização do desígnio constitucional. Como expressamente afirmou o Tribunal Constitucional no Acórdão nº 432/93 , em matéria de ambiente e urbanismo há uma interdependência de competências e não há que falar em autonomia (estadual, regional ou municipal) pelo que se justifica – e impõe, segundo creio – a intervenção complementar do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais.

Outra questão pertinente prende-se com a compatibilização do exercício do poder de regulamentação urbanística das autoridades públicas competentes (poder este que, como ficou visto, emana directamente de imposições constitucionais) com os interesses dos particulares, designadamente dos proprietários de terrenos situados em áreas de especial interesse ecológico. A doutrina – em especial na Alemanha – criou a figura da expropriação de sacrifício para qualificar as situações em que um particular vê destruída ou gravemente limitada a sua posição jurídica de propriedade garantida pela Constituição sem, no entanto, ocorrer “o momento translactivo do direito” . Afinal, esta matéria reconduz-se à problemática do direito à edificação (jus aedificandi) enquanto elemento integrador do direito de propriedade. A discussão conhece adeptos de ambos os lados: a consideração do direito à edificação como atributo natural da propriedade do imóvel não faz relevar a necessária autorização do poder público; pelo contrário, há aqueles para quem “não se pode fundamentar o jus aedificandi directamente na garantia constitucional do direito de propriedade privada” uma vez que “os pressupostos de existência e as condições de exercício daquele “direito” têm de ser encontrados no ordenamento jurídico urbanístico e estão dependentes do seu “sistema de atribuição”” . A posição ideal, segundo creio, terá de compatibilizar a ideia de que o jus aedificandi não é merecedor de tutela constitucional (não obstante o direito de propriedade privada ser um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, sendo-lhe aplicável o seu regime) com a defesa da consagração legal da expropriação de sacrifício – com a inerente indemnização devida pela prática de actos lícitos da Administração.

No entanto, e para que não subsistam dúvidas, esclareça-se que na situação objecto do presente estudo não faz sentido falar em expropriação do plano (ou de sacrifício) porquanto as restrições ou proibições de uso justificadas na área em causa da freguesia dos Biscoitos resultam directamente das qualidades naturais dos terrenos (em termos de paisagem, aptidão agrícola e valor cultural) – e não podem ser qualificadas de “especiais e anormais” nos termos do disposto no artigo 9º do Decreto-Lei nº 48.051, de 21 de Novembro de 1967, que regula a responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas públicas.

V-
A paisagem – “unidade geográfica, ecológica e estética resultante da acção do homem e da reacção da natureza” [artigo 5º, nº 2, alínea c), da Lei de Bases do Ambiente] – aparece classificada na Lei nº 11/87, de 7 de Abril, como uma componente ambiental humana. Este afastamento da ideia comummente aceite de que a paisagem é a natureza em si aparece já em ALBERTO PREDIERI que a define como uma forma do território ou do ambiente criada pela comunidade e que nela tem a sua sede.

Como afirma JOÃO PEREIRA REIS, “a degradação da paisagem é talvez a forma mais irrecuperável de “poluição”” . Por este facto, é vasto o conjunto de poderes conferidos à administração central, regional e local para condicionar o exercício de um grande número de actividades em ordem à “defesa da paisagem como unidade estética e visual” (artigo 18º, nº 1, da Lei de Bases do Ambiente). Por outro lado, a estratégia de conservação da natureza pressupõe, a nível regional, “o ordenamento integrado do território” e faz uso da “classificação e criação de áreas, sítios ou paisagens protegidas sujeitos a estatutos especiais de conservação” [artigo 27º, nº 1, alínea c), do mesmo diploma].

A adequação da actividade agrícola à conservação da natureza passa pela implementação de medidas de apoio às zonas rurais visando, em especial, a manutenção dos recursos e da paisagem, a preservação dos sistemas agrícolas tradicionais, bem como a diminuição da carga poluente proveniente da agricultura. Em face destas medidas, será possível conservar o património agrícola-florestal, os habitats dos ecossistemas próprios das áreas abrangidas e a biodiversidade. Por outro lado, alcançar-se-á a preservação do património de valor paisagístico e de interesse turístico, bem como o património genético vegetal e animal. Do mesmo passo, a utilização de práticas agrícolas mais adequadas à salvaguarda do meio ambiente contribuirá para a melhoria da qualidade dos produtos.
“O reforço das acções e medidas de defesa e recuperação do património cultural, quer natural, quer construído” é, nos termos do disposto na alínea k) do artigo 4º da Lei de Bases do Ambiente, pressuposto “de um ambiente propício à saúde e ao bem-estar das pessoas e ao desenvolvimento social e cultural das comunidades, bem como à melhoria da qualidade de vida”. Não obstante as dúvidas suscitas pela inclusão “entre os objectivos e medidas enunciadas numa Lei de ambiente, a protecção e recuperação do património cultural” , parece ser indiscutível (fazendo uso da definição da Lei de Bases do Património Cultural contida na Lei nº 13/85, de 6 de Julho) o valor próprio dos bens materiais e imateriais que constituem o património da Zona Vitivinícola dos Biscoitos, bem como o interesse relevante para a permanência e identidade da cultura regional através do tempo.

Com a aprovação da Lei n.° 11/87, de 7 de Abril (Lei de Bases do Ambiente) ficaram consagrados, a par das áreas protegidas de âmbito nacional, os conceitos de área protegida de âmbito regional e local, atendendo aos interesses que visam salvaguardar. Esta nova classificação releva na iniciativa da classificação, na regulamentação e na gestão das mesmas (que passa a ser cometida às autarquias locais ou às associações de municípios).
Destaque-se, igualmente, que, a par do património natural, constitui factor de influência na classificação das áreas a proteger, o seu valor estético e cultural.
O Decreto-Lei n.° 19/93, de 23 de Janeiro, define como objectivos de interesse público “a conservação da Natureza, a protecção dos espaços naturais e das paisagens, a preservação das espécies da fauna e da flora e dos seus habitats naturais, a manutenção dos equilíbrios ecológicos e a protecção dos recursos naturais contra todas as formas de degradação” (artigo 1º, nº 1) e determina que “devem ser classificadas como áreas protegidas as áreas terrestres e as águas interiores e marítimas em que a fauna, a flora, a paisagem, os ecossistemas ou outras ocorrências naturais apresentem, pela sua raridade, valor ecológico ou paisagístico, importância científica, cultural e social, uma relevância especial que exija medidas específicas de conservação e gestão, em ordem a promover a gestão racional dos recursos naturais, a valorização do património natural e construído, regulamentando as intervenções artificiais susceptíveis de as degradar” (nº 2).

A Rede Nacional de Áreas Protegidas compreende as áreas protegidas de interesse nacional, regional ou local, consoante os interesses cuja salvaguarda se visa (artigo 2º, nº 2). As áreas protegidas de interesse regional ou local classificam-se como paisagem protegida as áreas protegidas de interesse regional ou local (nº 4).

Anote-se que, nos termos do disposto no artigo 3º, entre os objectivos prosseguidos pela classificação de áreas protegidos está “a preservação das espécies animais e vegetais e dos habitats naturais que apresentem características peculiares, quer pela sua raridade e valor científico, quer por se encontrarem em vias de extinção” [alínea a)], “a investigação científica indispensável ao desenvolvimento dos conhecimentos humanos e o estudo e a interpretação de valores naturais, fornecendo elementos para a melhor compreensão dos fenómenos da biosfera” [alínea e)], “a protecção e a valorização das paisagens que, pela sua diversidade e harmonia, apresentem interesses cénicos e estéticos dignos de protecção” [alínea g)], “a promoção do desenvolvimento sustentado da região, valorizando a interacção entre as componentes ambientais naturais e humanas e promovendo a qualidade da vida das populações” [alínea i)], e “a valorização de actividades culturais e económicas tradicionais, assente na protecção e gestão racional do património natural” [alínea j)].
O artigo 36º, não obstante determinar a aplicação do regime contido no Decreto-Lei n.º 19/93, de 23 de Janeiro, à Regiões Autónomas dos Açores, previa a sua adequação à especificidade regional, a introduzir mediante decreto legislativo regional. Tal veio a acontecer através do Decreto Legislativo Regional n.º 21/93/A, de 23 de Dezembro.

Tendo por escopo “a adopção de medidas que, a nível regional ou local, permitam a manutenção e valorização das características das paisagens naturais e seminaturais e a diversidade ecológica” (artigo 9º, nº 2) está em curso o processo de classificação da Zona Vitivinícola dos Biscoitos como paisagem protegida.

VI-
De tudo quanto deixei exposto verifica-se que existem, no ordenamento jurídico português instrumentos legislativos e regulamentares que disciplinam a matéria da protecção do ambiente – em termos de conservação da natureza e de ordenamento do território -, e que prevêem a adopção de medidas de salvaguarda do equilíbrio ecológico. Apurou-se, igualmente, que:
a)A Assembleia Municipal da Praia da Vitória aprovou o estabelecimento de um conjunto de medidas preventivas com o objectivo de preservar as condições naturais existentes na zona litoral dos Biscoitos até à data da entrada em vigor do Plano de Pormenor daquela área;
b)Foi obtido o parecer favorável condicionado da Secretaria Regional da Presidência para as Finanças e Planeamento;
c)O Governo Regional dos Açores:
-ratificou as medidas preventivas mediante a aprovação da Resolução nº 147/98, de 25 de Junho – tendo excluído de ratificação o disposto no artigo 5º, nº 1 e no artigo 6º;
-criou, através da Resolução nº 150/98, de 25 de Junho, um grupo de trabalho “encarregado de promover e supervisionar a realização do estudo de salvaguarda do património natural e edificado característico da cultura da vinha dos Biscoitos, na ilha Terceira, propondo a delimitação geográfica da respectiva área, com vista à sua eventual classificação como “Paisagem Protegida de Interesse Regional” (…)”.

Em face do que fica dito, devo registar com apreço o conjunto das medidas asseguradas em ordem à preservação da Zona Vitivinícola dos Biscoitos, tanto por parte do Governo Regional dos Açores como pela Assembleia Municipal da Praia da Vitória. A solicitada colaboração deste Órgão do Estado no caso em apreço terá em atenção as medidas já desencadeadas nesta matéria; ainda assim, pretende o Provedor de Justiça contribuir – no âmbito da sua actuação e atendendo aos interesses difusos cuja valorização é visada – para ser obtida a mais ampla protecção possível da Zona Vitivinícola dos Biscoitos.

Não obstante, a averiguação facultada pela análise (da listagem) dos processos camarários relativos à área em apreço da freguesia dos Biscoitos não permite extrair conclusões para além do óbvio:
a)Existe uma clara pressão urbanística consubstanciada num elevado número de processos relativos a pedidos de licenciamento de obras particulares, em especial para construção de edifícios de habitação (mas também de informações sobre a viabilidade de obras e outros);
b)Os dados disponíveis neste Órgão do Estado relativos ao ano de 1998 não permitem extrair conclusões sobre as decisões que incidiram sobre os processos de obras organizados posteriormente à entrada em vigor das medidas preventivas aprovadas pela Resolução nº 147/98, de 25 de Junho.

VII-
Um vasto conjunto de actividades pode ser interditado, ou pelo menos condicionado, ao abrigo do regime jurídico contido no Decreto-Lei n.º 19/93, de 23 de Janeiro. Refira-se, a título meramente exemplificativo, alguns dos actos ou das actividades que podem constituir contra-ordenações, nos termos do artigo 22º:
-Realização de obras de construção civil, designadamente novos edifícios e reconstrução, ampliação ou demolição de edificações, salvo tratando-se de obras de simples conservação, restauro, reparação ou limpeza;
-Alteração do uso actual dos terrenos;
-Alterações à morfologia do solo, nomeadamente modificações do coberto vegetal, escavações, aterros, depósitos de sucata, areias ou outros resíduos sólidos que causem impacto visual negativo ou poluam o solo ou o ar;
-Abertura de novas vias de comunicação ou acesso, bem como alargamento das já existentes;
-Lançamento de águas residuais industriais ou de uso doméstico, susceptíveis de causarem poluição;
-Instalação de novas linhas aéreas eléctricas ou telefónicas, tubagens de gás natural e condutas de água ou de saneamento;
-Colheita ou detenção de exemplares de quaisquer espécies vegetais ou animais sujeitas a medidas de protecção;
-Prática de actividades desportivas susceptíveis de provocarem poluição ou ruído ou de deteriorarem os factores naturais da área.

Apesar da inquestionável importância das proibições e dos condicionalismos cuja imposição a Lei permite, a efectiva protecção de uma área delimitada pressupõe, obrigatoriamente, a criação de mecanismos de fiscalização e controlo mais rigorosos do que os tradicionalmente existentes. É certo que o exercício dos poderes de fiscalização e polícia que competem às diversas autoridades públicas (designadamente os referidos no artigo 21º do Decreto-Lei n.º 19/93, de 23 de Janeiro) é complementado pela susceptibilidade de aplicação de sanções acessórias, conforme dispõe a artigo 23º , que se transcreve:

Artigo 23°-Sanções acessórias

As contra-ordenações previstas no n.° 1 do artigo anterior podem ainda determinar, quando a gravidade da infracção o justifique, a aplicação das seguintes sanções acessórias:
a)A apreensão dos objectos pertencentes ao agente que tenham sido utilizados como instrumento na prática da infracção;
b)A privação do direito a subsídios outorgados por entidades ou serviços públicos;
c)A interdição do exercício de actividade por um período máximo de dois anos.

A experiência tem demonstrado, porém, a insuficiência destes instrumentos quando não acompanhados da obrigação da reposição da situação anterior à prática da infracção. “A simples aplicação de sanções não basta para que se possa afirmar que o direito deu resposta adequada à salvaguarda dos valores que lhe incumbe defender. Se o poluidor continuar a poluir, se o poluidor não recuperar o recurso natural que degradou de forma a restituir-lhe a qualidade, as características e as potencialidades de uso de que desfrutava antes da prática dos actos poluentes, a sociedade não poderá estar tranquila. O equilíbrio que toda a ordem jurídica procura, por definição, alcançar não é atingido se a infracção à Lei não cessar ou se os efeitos negativos dela decorrentes não forem eliminados através da reposição da situação anterior” . A Lei nº 11/87, de 7 de Abril, dispõe sobre a obrigatoriedade de remoção das causas da infracção e da reconstituição da situação anterior no seu artigo 48º, disposição que tem paralelo no artigo 25º do Decreto-Lei n.º 19/93, de 23 de Janeiro.

Deve chamar-se a atenção para a redacção contida nos nºs 1 e 2 desta norma:

Artigo 25.°- Reposição da situação anterior à infracção

1.A comissão directiva de uma área protegida pode ordenar que se proceda à reposição da situação anterior à infracção, fixando-lhe concretamente os trabalhos ou acções que deva realizar e o respectivo prazo para execução.
2.A ordem de reposição é antecedida de audição do infractor, que dispõe de 15 dias a contar da data da sua notificação para se pronunciar sobre o conteúdo da mesma.
(…)
Note-se que a ordem de reposição da situação anterior à infracção deve fixar, em concreto, os trabalhos a desenvolver, bem como o prazo em que devem ser realizados. Este dever de orientação do infractor constitui um elemento essencial da reparação do dano ambiental.
Por outro lado, os órgãos de polícia administrativa – da Administração Regional, da autarquia e de outras entidades incumbidas de fiscalizar o cumprimento das disposições em causa – devem possuir um quadro normativo objectivo e suficientemente claro para que não se gerem situações de desigualdade de tratamento, ou de incerteza. A este propósito, é de evitar a mera remissão genérica para o normativo base – e é benéfico especificar com a pormenorização possível a realização de acções de fiscalização, o procedimento a seguir no caso de processamento de contra-ordenações, bem como a tramitação dos processos de embargo de obras e actividades não autorizadas. Esta incumbência configura um aspecto organizativo da área protegida e deve ser remetido para a auto-regulamentação da respectiva comissão directiva.

VIII-
Do que deixo exposto podem retirar-se as seguintes conclusões:
1ª -As qualidades naturais dos terrenos que constituem a Zona Vitivinícola dos Biscoitos justificam e aconselham a sua preservação.
2ª -Existe um conjunto de factores susceptíveis de afectar o equilíbrio ambiental daquela área, dos quais se destaca a pressão urbanística resultante do clima ameno e da sua localização na zona balnear da freguesia dos Biscoitos;
3ª -A preservação da área da freguesia dos Biscoitos integrada na Zona Vitivinícola dos Biscoitos (v.g. de altitude igual ou inferir a 100m) tem vindo a ser prosseguida mediante um conjunto de medidas das quais se destacam:
-A aprovação pela Assembleia Municipal da Praia da Vitória do estabelecimento de um conjunto de medidas preventivas;
-A ratificação destas medidas pelo Governo Regional dos Açores através da Resolução nº 147/98, de 25 de Junho (com exclusão do disposto no artigo 5º, nº 1 e no artigo 6º);
-A criação, também pelo Governo Regional dos Açores e mediante a aprovação da Resolução nº 150/98, de 25 de Junho, de um grupo de trabalho encarregado de promover e supervisionar a realização do estudo de salvaguarda do património natural e edificado característico da cultura da vinha dos Biscoitos propondo a delimitação geográfica da respectiva área, com vista à sua eventual classificação como paisagem protegida de interesse regional.
4ª -A protecção e a valorização do património cultural, a defesa da natureza e do ambiente, a preservação dos recursos naturais e a obtenção de um correcto ordenamento do território constituem tarefas fundamentais do Estado, nos termos do disposto no artigo 9º, alínea e), da Constituição.
5ª -Existe, assim, um direito positivo a uma acção do Estado, seja no sentido de defender o ambiente e de controlar as suas acções poluidoras, seja no aspecto de ver cumpridas as correspondentes obrigações políticas, legislativas, administrativas e penais.
6ª -O imperativo constitucional de ordenamento do território constitui um instrumento indispensável do exercício do direito ao ambiente.
7ª -Não existe incompatibilidade do exercício do poder de regulamentação urbanística das autoridades públicas competentes com os interesses dos particulares, designadamente dos proprietários de terrenos situados em áreas de especial interesse ecológico.
8ª -A interdependência de competências inerente ao ambiente e ao urbanismo pressupõe a intervenção complementar do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais.
9ª -O processo de classificação da Zona Vitivinícola dos Biscoitos como paisagem protegida propiciará a manutenção e valorização das características das paisagens naturais e seminaturais e a diversidade ecológica daquela área.
10ª -Deve, no entanto, votar-se um especial cuidado à consideração da invulgar apetência urbanística da área em causa da freguesia dos Biscoitos.
11ª -Em especial, deve lançar-se mão dos instrumentos de polícia urbanística que a Lei de Bases do Ambiente e o Decreto-Lei n.º 19/93, de 23 de Janeiro, prevêem para fazer face às situações de incumprimento às disposições de ordenamento do território cuja aprovação se aguarda.
12ª -Assume particular importância a consagração de dispositivos de célere reposição da situação anterior à prática da infracção, bem como a concertação das diferentes autoridades públicas competentes para a fiscalização do cumprimento da disciplina urbanística.

IX-
Pelas razões que deixei expostas e no exercício do poder que me é conferido pelo disposto no artigo 20º, nº 1, alínea b), da Lei nº 9/91, de 9 de Abril,RECOMENDO
A. Que, na sequência do processo já em curso, a Zona Vitivinícola dos Biscoitos seja classificada como Paisagem Protegida de Interesse Regional;
B. Que, no âmbito do respectivo processo, seja assegurada a indispensável compatibilização entre a classificação de Paisagem Protegida de Interesse Regional e o restantes instrumentos de disciplina urbanística que incidem sobre aquela área;
C. Que o instrumento de classificação, e a sua posterior regulamentação, tenha em particular atenção, nos termos atrás expostos, a pressão urbanística exercida na área abrangida.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel