Presidente da Câmara Municipal da Moita
Número: 53/A/98
Processo:R-1757/96
Data: 31.07.1998
Área: A1

Assunto:URBANISMO E OBRAS – OBRAS PARTICULARES – JANELAS – DISTÂNCIAS – RESERVA DA INTIMIDADE DA VIDA PRIVADA – CONFLITO DE DEVERES – DEMOLIÇÃO.

Sequência: Acatada.

I-Exposição de Motivos

1. Foi apresentada uma queixa na Provedoria de Justiça relativa à realização de obras particulares no edifício sito na Rua…, no concelho da Moita.

2. A referida queixa fundava-se no facto de ter sido aberta um vão do lado nascente do referido edifício, ou seja, na fachada que confronta com o logradouro do edifício contíguo, situado no n.º …, colocando em causa a privacidade dos seus habitantes.

3. Sobre o assunto foram pedidos esclarecimentos à Câmara Municipal da Moita, através do ofício n.º …. Em resposta datada de …, essa Câmara Municipal informou que: “1. as obras reclamadas, relacionadas com a abertura de uma janela no edifício supra identificado, foram executadas sem licença municipal.
2. As referidas obras, para além de desrespeitarem o projecto aprovado, violam o n.º 1 do artº 1360 do C. Civil, pelo que foi o infractor notificado, (depois de ter tido a faculdade de se pronunciar nos termos do n.º 3 do art 58º do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro), para proceder à reposição da obra em conformidade com o projecto aprovado”.
4. Questionada sobre a adopção de medidas destinadas a repor a legalidade urbanística no local, pelo ofício n.º…, foi dado conhecimento que havia sido deduzida participação crime contra o infractor e que no “que respeita à reposição da obra, por parte da Câmara Municipal, em conformidade com o projecto aprovado, aguarda oportunidade para o efeito, pois a autarquia carece de meios para promover essas acções, que pela sua amplitude em termos de toda a área do Município impõem que se priorizem as intervenções (e esta está longe de ser a mais grave)” .

5. Não há dúvida que a actuação da Câmara Municipal da Moita, na medida em que ordenou a reposição da obra em conformidade com o projecto aprovado e deduziu participação crime por desobediência àquela ordem, se desenvolveu no âmbito de um estrito cumprimento da lei.

6. Com efeito, a Câmara Municipal da Moita verificou que as obras de alteração em causa (abertura de vão no lado nascente do edifício), tinham sido realizadas sem a necessária licença municipal.

7. Estando em causa uma obra realizada em violação do disposto no Regime de Licenciamento Municipal de Obras Particulares, constante do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 250/94, de 15 de Outubro, foi ordenada a respectiva demolição, ao abrigo do art. 58º do mesmo diploma.

8. Na verdade, com vista ao restabelecimento da ordem jurídica violada, o citado art. 58º, n.º 1, do regime aprovado pelo Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, confere ao presidente da câmara municipal o poder de ordenar a demolição da obra e a reposição do terreno, quando for caso disso.

9. No mesmo sentido, o art. 165º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU) estabelece que as “Câmaras Municipais poderão ordenar (…) a demolição ou o embargo administrativo das obras executadas em desconformidade com o disposto nos artigos 1º a 7º”.

10. Aliás, e não obstante a formulação dos preceitos legais citados (art. 58º do regime aprovado pelo Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro e art. 165º do RGEU) indicar a possibilidade de escolha entre ordenar a demolição ou não ordenar a mesma, certo é que se está perante um poder vinculado, um dever de ordenar a demolição de obras ilegais.

11. Porquanto, nos termos do art. 167º do RGEU, a demolição das obras “só poderá ser evitada desde que a câmara municipal ou o seu presidente, conforme os casos, reconheça que são susceptíveis de vir a satisfazer os requisitos legais e regulamentares de urbanização, de estética, de segurança e de salubridade”.

12. Esta vinculação mereceu já concretização jurisprudencial, tendo o Supremo Tribunal Administrativo (1ª Secção) decidido que “caso os particulares ou pessoas colectivas procedam a construções sem licença ou com inobservância das condições desta, dos regulamentos, posturas municipais ou planos directores, de urbanização ou de pormenor em vigor, devem as câmaras municipais, no exercício de um poder vinculado, ordenar a demolição dessas construções” (cfr. Acórdão de 6-11-1990, in Actualidade Jurídica, Ano 2, n.º 13-14, p. 35).

13. Por outro lado, o incumprimento de uma ordem de demolição constitui desrespeito de um acto administrativo, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 59º do regime aprovado pelo citado Decreto-Lei n.º 445/91, como bem entendeu V. Exa. quando promoveu participação do crime junto do Ministério Público.

14. No entanto, a Câmara Municipal da Moita alegou que não procederia, desde já, por sua iniciativa, à demolição da obra, por falta de meios financeiros e atenta a valoração da gravidade da situação sub judice, o que não pode deixar de nos merecer alguns reparos. Senão vejamos:

15. Exercido o referido poder vinculado de ordenar a demolição da obra ilegal e decorrido o prazo estabelecido para o efeito, o Presidente da Câmara deve proceder à demolição da obra, por conta do infractor, de acordo com o citado art. 58º, n.º 4, do Regime de Licenciamento Municipal de Obras Particulares.
16. A este propósito, o art. 6º do Decreto-Lei n.º 92/95, de 9 de Maio dispõe, também, que “Decorrido o prazo para o início ou para a conclusão dos trabalhos de demolição sem que a ordem se mostre cumprida, a entidade ordenante procederá à demolição da obra por conta do infractor, tomando para o efeito, posse administrativa do terreno”.

17. A Câmara Municipal da Moita reconheceu estar sujeita a este dever, alegando que a actuação correspondente só não seria adoptada em virtude da falta de meios financeiros e atenta a pouca gravidade relativa da situação em causa.

18. O que a Câmara Municipal da Moita alegou, em suma, foi encontrar-se perante um conflito de deveres e que em face da ponderação dos mesmos deveres, atentos os meios disponíveis e a gravidade relativa das situações, não procederia, de imediato, à demolição da obra ilegal em causa.

19. A figura do conflito de deveres é reconhecida na nossa ordem jurídica, constituindo, nos termos do art. 36º do Código Penal, uma causa de exclusão da ilicitude.

20. Assim, a decisão sobre a demolição da obra em causa supõe que se tomem em consideração os meios disponíveis para actuar e a hierarquia dos bens jurídicos envolvidos nas diversas situações de obras ilegais que suscitam a intervenção dessa Câmara Municipal.

21. É certo que face à existência de várias situações de obras ilegais que suscitariam a intervenção da Câmara Municipal, as mesmas deverão ser consideradas em função do prejuízo decorrente para o interesse público da manutenção da situação de ilegalidade.

22. A actuação de demolição das obras ilegais visa, em qualquer caso, a salvaguarda do interesse público subjacente às normas violadas na execução da obra e esse interesse público pode ser afectado em maior ou menor medida, com consequente maior ou menor relevância do bem jurídico a salvaguardar pela actuação tendente à reposição da legalidade.

23. Neste âmbito, só V. Exa. está em condições de ponderar os interesses públicos afectados pelas várias situações de obras ilegais que reclamam uma actuação municipal, por forma a estabelecer prioridades.

24. Contudo, no que respeita à alegada falta de meios financeiros por parte da autarquia para promover, por sua iniciativa, a demolição da obra ilegal, há que salientar que, no caso concreto, a obra necessária à reposição da legalidade, se traduz, tão somente, na tapagem do vão ilegalmente aberto, pelo que está em causa, necessariamente, uma despesa de carácter diminuto.

25. Por outro lado, nos termos do art. 6º, n.º. 3 e 4, do Decreto-Lei n.º 92/95, de 9 de Maio, as despesas ocasionadas pela demolição, embora possam ter que ser suportadas, numa primeira fase, pelo Município, deverão ser pagas pelo infractor, no prazo de 20 dias a contar de notificação para o efeito, podendo ser cobradas judicialmente, em processo executivo, acaso não ocorra o pagamento voluntário.

26. Sendo certo que o crédito correspondente a essas despesas goza, inclusivamente, de privilégio imobiliário sobre o lote de terreno onde se situa a obra ilegal, conforme estabelece o citado art. 6º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 92/95.

27. Resulta claro, assim, que está em causa uma quantia diminuta e que, nos termos legais, a mesma sempre poderá ser cobrada ao infractor, de forma expedita e beneficiando de garantia especial atribuída por lei.

28. A decisão relativa às várias demolições de obras ilegais que hajam de ser executadas, com vista a apurar as que requerem uma intervenção mais urgente da parte da administração, se deve ponderar os interesses públicos envolvidos, mas não pode ser alheia, também, aos meios cuja utilização em concreto se revela necessária.

29. A decisão quanto à demolição da obra ilegal em causa por iniciativa municipal não pode deixar de considerar a diminuta complexidade e extensão das operações materiais destinadas a repôr a legalidade no caso concreto e os reduzidos meios financeiros necessários para o efeito, que permitem concluir pela possibilidade e prioridade da sua execução.

30. Todos estes aspectos merecem a ponderação de V. Exa., Senhor Presidente da Câmara Municipal da Moita. E não devendo nem podendo o provedor de justiça substituir-se à Administração Pública no exercício dos poderes que lhe estão legalmente cometidos para a prossecução dos fins de interesse público reflectidos, neste caso, nas atribuições municipais, terá V. Exa. de actuar no âmbito das competências destinadas à salvaguarda da legalidade urbanística.

II-Conclusões

a) Face à alegada impossibilidade da Câmara Municipal da Moita cumprir a obrigação de demolir todas as obras ilegais realizadas na área do seu município, deverão ser executadas as demolições que permitam salvaguardar bens jurídicos de maior relevância.

b) A decisão sobre quais, em concreto, os deveres a cumprir, supõe que sejam considerados os meios disponíveis e todas as situações que requerem a intervenção dessa Câmara Municipal.

c) Deverá, pois, ser tomado em consideração que, no caso vertente, a demolição da obra ilegal importará uma operação material de menor complexidade e extensão e uma despesa diminuta, a qual, nos termos do art. 6º, n.º. 3 e 4, do Decreto-Lei n.º 92/95, de 9 de Maio, sempre poderá ser cobrada ao infractor, de forma expedita e beneficiando de privilégio creditório.

De acordo com o que ficou exposto, e em nome da atribuição constitucional que me é conferida no sentido da prevenção e reparação de injustiças (art. 23º, n.º 1, CRP), entendo fazer uso dos poderes que me são conferidos pela Lei n.º 9/91, de 9 de Abril (Estatuto do provedor de justiça), no seu art. 20º, n.º 1, alínea a), e, como tal, RECOMENDO:

que V. Exa. considere prioritária a demolição, por iniciativa municipal, da obra ilegal executada no edifício sito na Rua…, Vale da Amoreira, no Município da Moita, para efeitos de exercício das competências previstas no art. 58º, n.º 4, do regime aprovado pelo Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro e de acordo com o procedimento disciplinado pelo Decreto-Lei n.º 92/95, de 9 de Maio.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel