Presidente da Câmara Municipal de S. Pedro do Sul
Número:49/A/98
Processo:R-3538/97
Data:14.07.1998
Área: A1

Assunto:URBANISMO E OBRAS – EXPLORAÇÃO AVÍCOLA – CADUCIDADE DA LICENÇA – ORDENAMENTO DO TERRITÓRIO MUNICIPAL – RESERVA ECOLÓGICA NACIONAL.

Sequência: Não Acatada.

I-Exposição de Motivos

1. Pelo Sr. Dr. …, em representação dos Senhores A… e B…, foi-me apresentada queixa contra o licenciamento de uma exploração avícola , em …, concelho de S. Pedro do Sul.

2. A fim de habilitar a instrução do processo foi questionada a Direcção-Geral de Veterinária e essa Câmara Municipal. As informações obtidas permitiram concluir pela procedência da queixa e pela necessidade de serem adoptadas medidas adequadas à reposição da legalidade urbanística infringida.

3. Do ponto de vista do licenciamento da actividade avícola de produção pelos competentes serviços da Administração Central, o estabelecimento reclamado beneficia de autorização de funcionamento, encontrando-se legalizado desde 8.10.1996 (art. 3º do Decreto-Lei n.º 69/96, de 31 de Maio, e Portaria n.º 209/96, de 7 de Junho).

4. Não obstante o facto de se encontrar regularmente habilitado o funcionamento do estabelecimento, a localização das edificações não se conforma com a disciplina urbanística da zona em causa, disciplina já em vigor à data em que foi indevidamente autorizada a prorrogação da licença municipal de construção.

A-Dos Factos

5. Em 20 de Janeiro de 1981, licenciou a Câmara Municipal de S. Pedro do Sul as obras de construção do aviário, em nome de …. .

6. As obras não foram concluídas, não foi requerida a emissão de licença de utilização e as instalações, em estado semi-acabado, foram destinadas a arrumos, até 1997.

7. Em 7 de Abril de 1997, o proprietário requereu a prorrogação do prazo para conclusão das obras, pedido que veio a ser deferido por despacho do Senhor Vereador … .

8. A fim de habilitar esta decisão solicitou a Câmara Municipal de S. Pedro do Sul a emissão de parecer à Direcção Regional do Ambiente e Recursos Naturais do
Centro, porquanto, nos termos da Portaria n.º 86/96, de 15 de Junho, e do Regulamento do Plano Director Municipal de S. Pedro do Sul, a zona em questão integra-se na Reserva Ecológica Nacional.

B-Do Direito

9. Não previa o regime jurídico relativo ao licenciamento municipal de obras particulares constante do Decreto-Lei n.º 166/70, de 15 de Abril, a caducidade das licenças municipais de obras de construção civil. Esta lacuna deu origem à prática camarária traduzida na renovação de licenças há muito emitidas, sem que no momento da prorrogação dos prazos para conclusão das obras fossem apreciadas as pretensões de aproveitamento urbanístico dos solos à luz dos condicionamentos supervenientes.

10. Tendo o legislador reconhecido a lacuna e os prejuízos decorrentes da situação de indefinição a que propositadamente e com intuitos especulativos vinham sendo votados os solos, o Decreto-Lei n.º 19/90, de 11 de Janeiro, alterado em 10 de Dezembro pelo Decreto-Lei n.º 282/90, veio estabelecer a regra da caducidade das licenças municipais de construção, sempre que as obras não sejam iniciadas no prazo de quinze meses após a emissão da licença, se se encontrarem suspensas pelo mesmo prazo, se forem abandonadas e sempre que expire o prazo de validade estabelecido na própria licença [art. 1º, n.º 1, alíneas a), b), c) e d)].

11. A licença de obras reclamada no presente processo foi emitida em Janeiro de 1981, pelo que, não se encontrando a obra concluída à data da entrada em vigor do DecretoLei n.º 19/90, de 11 de Janeiro, se tem de entender que a mesma caducou por força de quanto se dispõe nas alínea b) e c), do art. 1º, daquele diploma.

12. Sustenta a Câmara Municipal de S. Pedro do Sul que desconhecia, à data em que foi autorizada a renovação da licença, a disciplina normativa acima descrita, pelo que se vira impedida de proceder à demolição das construções.

13. É inadmissível, contudo, que o desconhecimento do regime em questão seja por essa Câmara Municipal apontado como causa justificativa da manutenção de uma situação que se apresenta ilegalizável, porquanto não são toleradas em áreas integradas na Reserva Ecológica Nacional as presentes construções.

14. À data em que foi autorizada a designada renovação da licença, tendo em vista a conclusão das obras, encontrava-se esta caducada, pelo que se mostrava legalmente impossível a prorrogação dos respectivos efeitos. A ser assim, o acto, impropriamente designado de renovação da licença, apresenta um objecto impossível, e, como tal é nulo (art. 133º, n.º 1, alínea c), do Código do Procedimento Administrativo).

15. São juridicamente impossíveis os actos cujo efeito ou medida seja proibido pela ordem jurídica. Da mesma forma que é nulo, em virtude da impossibilidade do respectivo objecto, o acto de revogação de um acto nulo, do mesmo desvalor jurídico padece a prorrogação de efeitos de um acto que já caducou (neste sentido, OLIVEIRA, Mário Esteves de, et al, Código do Procedimento Administrativo, Coimbra, 1997, p. 645).

16. Mas ainda que não se interpretasse a renovação da licença como um acto pelo qual se pretendeu prolongar no tempo os respectivos efeitos, mas antes como a concessão de uma nova licença, não podia ser diferente a conclusão a extrair quanto à natureza da invalidade do despacho do Senhor Vereador João Rodrigues Oliveira que ilegalmente habilitou os trabalhos de conclusão das obras contestadas.

17. Nos termos do art. 2º do já citado Decreto-Lei n.º 19/90, de 11 de Janeiro, uma vez caducada a licença de construção, o procedimento conducente à emissão de nova licença obedece aos requisitos da lei vigente à data da apresentação do requerimento respectivo, não sendo aproveitáveis os pareceres, autorizações e aprovações legalmente exigidos e que informaram o anterior procedimento. Da mesma forma se dispõe no art. 23º, n.º 3, do regime aprovado pelo Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, com a redacção conferida pelo Decreto-Lei n.º 250/94, de 15 de Outubro.

18. Apenas por esta via se assegura que a pretensão de aproveitamento urbanístico do local irá ser apreciada à luz da disciplina de ordenamento do território em vigor no momento. E, de tal forma se mostra cara ao legislador a preocupação de reavaliação das formas de ocupação do solo decididas anteriormente, que são consideradas nulas as deliberações camarárias que desrespeitem a citada exigência.

19. Assim pode ser entendido no caso presente. Embora incorrectamente qualificado, o pedido apresentado pelo dono da obra em Janeiro de 1997 poderá ser entendido como um pedido de licenciamento ex novo das obras necessárias à conclusão das edificações destinadas a exploração avícola, ainda que o mesmo se apresente deficientemente instruído em face dos elementos exigidos pelo regime procedimental relativo ao licenciamento municipal de obras particulares, entretanto em vigor, e que foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, com a redacção conferida pelo Decreto-Lei n.º 250/94, de 15 de Outubro.

20. Por se encontrar a zona em causa integrada na Reserva Ecológica do concelho, requereu a Câmara Municipal de S. Pedro do Sul a emissão de parecer à Direcção Regional do Ambiente e Recursos Naturais do Centro (art. 4º, n.º 6, do Decreto-Lei n.º 93/90, de 19 de Março, com a redacção conferida pelo Decreto-Lei n.º 213/92, de 12 de Outubro), tendo em vista a verificação de algumas das excepções à proibição genérica de edificar naquelas áreas.

21. Não se pronunciou, no prazo para tanto fixado, o serviço em questão do Ministério do Ambiente, pelo que, de acordo com o preceituado pelo artº 4º, n.º 4, do diploma citado, essa Câmara Municipal entendeu como favorável a falta de emissão de parecer e autorizou a realização das obras, com base na presunção de que estaria permitida construção, por já se encontrar autorizada à data da entrada em vigor da Portaria que operara a delimitação concelhia da reserva ecológica.

22. É improcedente, por que contraditório, este argumento. Se a Câmara Municipal de S. Pedro do Sul procedeu à emissão de nova licença, no âmbito de um procedimento novo, não se encontrava prevista ou autorizada qualquer edificação, pelo que o parecer favorável é, em si, um acto nulo, nos termos do art. 15º do Decreto-Lei n.º 93/90, de 19 de Março, com a redacção conferida pelo Decreto-Lei n.º 213/92, de 12 de Outubro, por violar a proibição genérica de edificação em zona da Reserva Ecológica Nacional.

23. Mais se dirá que o despacho do Senhor Vereador João Rodrigues Oliveira que licenciou as obras contestadas é nulo, também, porquanto infringe a disciplina de ordenamento do território municipal contida no respectivo Plano Director, ratificado pela resolução do Conselho de Ministros n.º 105/95, de 13 de Outubro.

24. A planta de condicionantes, anexa ao Regulamento do Plano Director Municipal de S. Pedro do Sul, inclui as áreas que nos termos da legislação respectiva fazem parte da RAN e da REN, considerando-se áreas de salvaguarda estrita (art. 67º do referido instrumento de planeamento). Nos termos da planta em questão, a exploração avícola reclamada encontra-se implantada em área da Reserva Ecológica Nacional, pelo que se verifica uma violação do disposto no plano municipal; violação essa que dá origem à nulidade do licenciamento (art. 52º, n.º 2, alínea b), do regime aprovado pelo Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, com a redacção conferida pelo Decreto-Lei n.º 250/94, de 15 de Outubro).

25. E nem se argumente que a construção já se encontrava autorizada antes da entrada em vigor da portaria que operou a delimitação da REN para o concelho. Correctamente, deverá entender-se que se a construção se encontrou autorizada, essa autorização caducou por motivo imputável ao particular, e por efeito do Decreto-Lei n.º 19/90, de 11 de Janeiro, não produzindo, assim, quaisquer efeitos no momento em que foi solicitado a essa Câmara Municipal o licenciamento das obras em falta para conclusão do estabelecimento avícola.

26. No plano material não procede a invocação, no caso presente, do princípio da tutela de direitos adquiridos ou da confiança legítima que fundamenta a excepção à proibição de construir em zona da Reserva Ecológica Nacional (já que possuiria o particular título bastante emitido em momento anterior à delimitação da zona de reserva), porquanto já não dispunha o dono da obra de habilitação válida e eficaz à data do licenciamento.

27. Cumpre assim extrair da nulidade do licenciamento as consequências devidas quanto à possibilidade de subsistência das edificações.

28. Exigem os princípios da legalidade e da prossecução do interesse público, em que se funda a sanção da nulidade dos actos administrativos, que na destruição dos respectivos efeitos sejam praticados os actos necessários a repor a ordem jurídica e material, na situação em que estaria, se o acto ilegal não tivesse sido praticado.

29. Caducado o direito do particular em virtude do não preenchimento da condição resolutiva – conclusão da obra – da qual dependia a sua plena efectivação, tem que se entender que aquilo que foi edificado até se verificar a caducidade da licença, não coincidiu com o objecto da permissão de aproveitamento urbanístico nela contida.

30. A construção existente até 1997 não se conformou com a licença de construção, uma vez que representou um minus relativamente ao que fora licenciado. Desconhece-se, até, se as edificações, em estado semi-acabado, possuiam qualquer aptidão funcional. Importará, contudo, reconhecer que obras suspensas ou abandonadas, por um longo período de tempo, não deixarão de ter um impacto urbanístico muito negativo.

31. Não tendo o particular procedido ao aproveitamento urbanístico que lhe havia sido autorizado, não apenas se encontram sujeitas a ser demolidas as obras efectuadas após 1997, como as realizadas até se verificar a caducidade da licença. Com efeito, não se constituiu na esfera jurídica do requerente qualquer direito decorrente da permissão contida na licença sobre o que havia sido edificado, e, por este motivo, não adquiriu, direito à utilização pretendida: estabelecimento de produção de espécies avícolas.

32. A aplicação estrita do princípio da retroactividade da declaração de nulidade exigiria, assim, que ordenasse o Senhor Presidente da Câmara Municipal de S. Pedro do Sul o despejo sumário das edificações e a respectiva demolição integral (art. 165º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, e art. 58º, n.º 1, do regime aprovado pelo Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro).

33. Declarada a nulidade de um acto administrativo, autoriza, porém, a ordem jurídica que se considerem relevantes alguns dos efeitos decorrentes da situação de facto constituída aos seu abrigo, por força do decurso do tempo e de acordo com os princípios gerais de direito (art. 134º, n.ºs 1 e 2, do Código do Procedimento Administrativo).

34. Os efeitos putativos do acto de licenciamento em análise, traduzidos na subsistência das construções por um período prolongado de tempo, permitem atenuar o rigor da regra geral da necessidade de destruição da totalidade dos seus efeitos, a qual, repito, imporia que fossem demolidas as edificações existentes.

35. Assim, declarada a nulidade de um acto de licenciamento de obras particulares, mais não resta à câmara municipal que ordenar a respectiva demolição enquanto e na medida em que o ordenamento jurídico se oponha à respectiva subsistência. Com efeito, admite-se uma demolição parcial, porquanto é autorizada a legalização de uma construção, uma vez introduzidas as alterações que permitam observar os requisitos urbanísticos aplicáveis (art. 167º, § 1º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas).

36. Por esta via se garante que a afectação do direito de propriedade se restringe ao mínimo para satisfazer o interesse público em matéria urbanística. Não há interesse na demolição de uma obra que seja susceptível de se vir a conformar com os requisitos materiais que lhe são aplicáveis.

37. O princípio da necessidade da demolição está expressamente consagrado no referido art. 167º do RGEU, uma vez que se admite a legalização, não apenas das obras que satisfaçam aos requisitos legais e regulamentares estabelecidos pelas normas técnicas e urbanísticas aplicáveis, mas também aquelas obras que sejam susceptíveis de vir a satisfazer tais requisitos. Desta forma, estabelece o § 1º deste artigo que a legalização poderá ser condicionada à execução dos trabalhos que para o efeito se reputem necessários, o que impõe a conclusão que a demolição deverá ser preterida sempre que através de obras de correcção e alteração seja possível satisfazer os requisitos de urbanização, de estética, de segurança e de salubridade aplicáveis.

38. Do mesmo passo se diga, uma vez mais, que a solução proposta encontra apoio na regra fixada no art. 134º, n.º 3, do Código do Procedimento Administrativo, no que tange ao reconhecimento de efeitos jurídicos decorrentes de actos nulos por força do decurso do tempo.

39. No caso vertente, importa considerar que sendo admissíveis em zona da Reserva Ecológica
Nacional, construções anteriores à respectiva delimitação, poder-se-á admitir, na decorrência dos princípios citados, a subsistência das edificações contestadas, desde que destinadas a uma utilização ecologicamente inofensiva.

40. Assim, por aplicação dos princípios da boa-fé e da proporcionalidade, conclui-se que a o interesse público em matéria urbanística consente a existência em zona de Reserva Ecológica Nacional das edificações em questão, desde que a respectiva utilização não acarrete qualquer prejuízo de índole ambiental, o que não será, certamente, o caso de uma exploração avícola, cujo funcionamento, para além de outros inconvenientes, é altamente poluidor do ar e dos solos circundantes. A preservação dos equilíbrios ecológicos locais não se mostra afectada pela subsistência das edificações, mas antes, pela utilização que lhes é conferida.

41. Admitindo que as edificações originais possam subsistir, desde que destinadas a utilização diversa, cumprirá à Câmara Municipal de S. Pedro do Sul promover a cessação da actividade ali desenvolvida, sob pena da demolição de tudo quanto ali foi edificado ao abrigo de um acto de licenciamento nulo.

II-Conclusões

De acordo com o exposto, no uso dos poderes que me são conferidos pelo art. 20º, n.º 1, alínea a), do Estatuto do provedor de justiça, aprovado pela Lei n.º 9/91, de 9 de Abril,

RECOMENDO:
a) Que seja declarada a nulidade do despacho de Senhor Vereador João Rodrigues de Oliveira de 28.04.1997, que autorizou a prorrogação da licença, e, como acto consequente, do despacho que ordenou a emissão da licença de utilização das instalações (art. 15º, do Decreto-Lei n.º 93/90, de 19 de Março, alterado pelo Decreto-Lei n.º 213/92, de 12 de Outubro, e art. 52º, n.º 2, alínea b), do regime aprovado pelo Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, com a redacção conferida pelo Decreto-Lei n.º 250/94, de 15 de Outubro);
b) Que seja ordenado o despejo sumário do estabelecimento avícola reclamado (art. 165º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 38.382, de 7 de Agosto de 1951), e que às edificações seja conferida utilização insusceptível de afectar o equilíbrio ecológico da zona.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel