Director-Geral das Contribuições e Impostos

Rec. nº 72/A/94
Proc. R-2730/93
Data: 1994-03-21
Área: A2

ASSUNTO: CONTRIBUIÇÕES E IMPOSTOS – IMPOSTO DE MAIS VALIAS – IRS – GANHOS OBTIDOS COM TRANSMISSÃO DE TERRENOS PARA CONSTRUÇÃO – DETERMINAÇÃO DO MOMENTO DA TRANSMISSÃO PARA CÁLCULO DO IMPOSTO

Sequência: Não Acatada

O Senhor I… e a Senhora D. M…contribuintes fiscais nºs … e 1…, respectivamente, celebraram, em 08/04/87, contrato-promessa de compra e venda de uma propriedade situada na freguesia do Alvor e inscrita na respectiva matriz cadastral sob o nº … – Secção …, que prometeram vender por 25.000.000$00, por escritura a celebrar em Janeiro de 1988.

Em 21 de Julho de 1988, dirigiram os contribuintes exposição a S. Exª o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, solicitando a qualificação da propriedade como prédio rústico.

A escritura de compra e venda veio a ser celebrada apenas em 6 de Março de 1989, tendo o prédio sido transmitido como terreno para construção.

O despacho que em 22 de Janeiro de 1990 veio a recair sobre a exposição supra referida, versava, não só sobre a questão da qualificação do prédio, mas também acerca da questão que veio, agora, a ser objecto de queixa ao Provedor de Justiça: a de saber se os ganhos resultantes da referida transmissão estariam sujeitos a Imposto de Mais-Valias, ou se a entrada em vigor do Código do IRS, em 01/01/89 (previamente, portanto, à celebração da escritura de compra e venda), implicaria, antes, a tributação dos referidos ganhos em sede de IRS, categoria G (mais-valias).

Entendeu S. Exª o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais indeferir a pretensão de qualificação do prédio como rústico – questão que à data em que foi proferido o despacho se encontrava, já, ultrapassada, uma vez que a escritura celebrada em Março de 1989 expressamente refere a transmissão de um “terreno destinado a construção” – e considerar que a tributação deveria ocorrer de acordo com as disposições do Código do Imposto de Mais-Valias, sustentando que, para efeitos do disposto no artigo 1º, nº 1, do citado Código, a transmissão acontecera no ano de 1988.

Discorda o Reclamante da solução dada a esta última questão, juntando aos seus argumentos os constantes de parecer emitido por um técnico da 4ª Direcção de Serviços da DGCI, em 6/12/89, no decurso do processo de apreciação desta questão, o qual se pronuncia no sentido da tributação em sede de IRS, dado que só com a celebração da escritura de compra e venda, em Março de 1989, ocorrera a transmissão geradora do ganho tributado.

Esta divergência veio a estar na origem de uma situação de flagrante injustiça que, não obstante todos os recursos interpostos pelo contribuinte, se mantém.

Com efeito, o Reclamante pagou, em 23/12/92, na Tesouraria da Fazenda Pública de Portimão, o montante de 7.092.650$00, a título de Imposto de Mais-Valias relativo à transmissão do prédio em questão, por ser este o imposto com que a Administração Fiscal entendeu tributar o ganho assim obtido. Paga aquela importância, o contribuinte não deixou, porém, de impugnar judicialmente a liquidação respectiva, o que fez em Março de 1993, até porque havia já declarado o ganho obtido com a transmissão do prédio, aquando do preenchimento da declaração modelo 2 de IRS, referente ao ano de 1989.

Acontece que, na pendência daquela impugnação, em Setembro de 1993, o contribuinte veio a ser citado de que contra ele corria processo executivo por dívida de IRS referente ao ano de 1989, no valor de 4.719.065$00, valor que inclui a tributação, na categoria G deste imposto, do ganho obtido com a transmissão do supra mencionado prédio.

Encontra-se, pois, o Reclamante, onerado com encargos indubitavelmente superiores aos que lhe cumpre suportar na sequência de um único acto tributável. Actualmente, a hipótese de vir a ser duplamente tributado é um facto a que acresce, diariamente, o vencimento de juros em sede de processo executivo de IRS, sem que o contribuinte nada mais possa fazer para obter uma decisão que, de uma vez e coerentemente, ponha fim à questão da tributação da operação em causa.

Pelos motivos que passarei a expor, julgo ser dever da Administração Fiscal tomar aquela decisão, dado que, além do mais, foi a sua actuação, e não a do contribuinte, que gerou tal situação, desde logo ao decidir, no decurso do ano de 1990, tributar em sede de Imposto de Mais-Valias uma operação que, no seu entender, ocorrera em 1988. Situação tanto mais grave quanto é certo que, à data desta decisão, já o contribuinte havia preenchido e entregue a declaração periódica de IRS referente ao ano em que considerava praticado o acto tributário – 1989.

Há pois, tão só, que apurar qual a data relevante para efeitos de tributação do ganho obtido com a venda do terreno para construção a que tenho vindo a fazer referência.

Para justificar a decisão de tributação em sede de Imposto de Mais-Valias, invoca a Administração Fiscal não só o facto de o Reclamante ter prometido vender o prédio por escritura a celebrar em Janeiro de 1988 – o que só por si nada diz quanto à data efectiva da transmissão – como, especialmente, o facto de o comprador se ter apresentado a pagar a sisa respectiva em Fevereiro de 1988, por ter obtido autorização para entrar de posse do referido terreno.

Estes argumentos não convencem por duas ordens de razões: em primeiro lugar, porque a Administração Fiscal não apurou, nunca, se efectivamente ocorreu a tradição do terreno e, em caso afirmativo, em que data ela teria ocorrido. Obtida autorização para ocupar o mesmo, o comprador podê-lo-ia haver ocupado, de facto, logo depois de liquidada a sisa. Mas também o poderia ter feito apenas um ano depois ou apenas após a celebração da escritura de compra e venda, em 1989.

Em segundo lugar, e ainda que tivesse ocorrido a tradição do terreno, nunca esse facto seria suficiente para antecipar a data relevante para efeitos de tributação em Imposto de Mais-Valias.

É que, não obstante o nº 1, do artigo 1º, do Código respectivo, determinar que o imposto incide sobre os ganhos realizados através da transmissão onerosa de terreno para construção, “qualquer que seja o título por que se opere”, expressão semelhante à utilizada pelo legislador no artigo 1º do Código do Imposto Municipal de Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doações (CIMSISD), tal semelhança não legitima a aplicação das restantes disposições do CIMSISD à situação tributária para efeitos de mais-valias, dada a manifesta diferença entre as realidades que cada um dos impostos visa tributar: enquanto o Imposto Municipal de Sisa tributa a própria transmissão, o Imposto de Mais-Valias incide sobre os ganhos realizados através da transmissão.

Tal diferença, longe de constituir um mero pormenor, não pode deixar de se repercutir a dois níveis: em primeiro lugar, sendo impostos de natureza distinta que visam tributar realidades diferentes, nada legitima a aplicação analógica de preceitos de um dos Códigos (no caso, do CIMSISD), a situações de facto a que é aplicável o outro Código (o do Imposto de Mais-Valias); em segundo lugar, ainda que assim fosse, nada pode levar o intérprete a concluir que o Código do Imposto de Mais-Valias contém qualquer lacuna ao não prever a antecipação da tributação nos casos em que a tradição do terreno precede a celebração da escritura de compra e venda, isto é, ao não introduzir no conceito civil de “transmissão” qualquer particularidade para efeitos de Imposto de Mais-Valias, contrariamente ao que se entendeu fazer para efeitos de Sisa ou de Imposto sobre as Sucessões e Doações.

O rigor especial que o legislador do CIMSISD colocou na construção de um conceito de “transmissão” diferente do conceito civilístico – rigor desde logo explicável por ser esse o conceito em função do qual foi criado o imposto – teve como consequência a consagração expressa, no artigo 2º, § 1º, nº 2, do CIMSISD, de disposição em que tal conceito é especialmente adaptado à finalidade daquele imposto, evitando que os promitentes compradores usufruam de um bem sem ter liquidado o imposto que onerava a sua aquisição.

Já quanto ao Imposto, de Mais-Valias a realidade tributável é, como tenho vindo a afirmar, o ganho obtido na sequência de determinada transmissão, e se o legislador entendeu nada acrescentar ao conceito comum – civil – de transmissão, fazendo, antes, relevar o momento de obtenção do ganho, mais não resta ao intérprete que aplicar o direito assim criado, em obediência aos mais elementares princípios de interpretação da lei e de preenchimento de lacunas, constantes dos artigos 9º e 10º do Código Civil, com particular relevância para a presunção de que «o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados» – cfr. artigo 9º, nº 3, do Código Civil.

Certamente que o legislador, a querer valorizar o momento em que se opera a tradição do terreno, para efeitos de mais-valias, teria consagrado, no Código respectivo, disposição que expressamente o declarasse, como foi necessário fazer em sede de Imposto Municipal de Sisa e, recentemente, para efeitos de tributação das próprias mais-valias em IRS, categoria G.

Neste sentido, veja-se o Acordão de 5 de Maio de 1971, do Tribunal de 2ª Instância das Contribuições e Impostos, in CTF nº 177-178, Set.-Out. de 1973, a pgs 266 e sgts, de cujo sumário me permito transcrever o seguinte excerto:

«… II – Não havendo disposição expressa no Código do Imposto de Mais-Valias a determinar qual seja a data da aquisição dos bens, para efeitos de tributação, não é lícito recorrer ao conceito de transmissão fornecido pelo artigo 3º, nº 1 do Código da Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doações [que contém disposição semelhante à invocada, por analogia, pela DGCI, no presente caso – a constante do artigo 2º, § 1º, nº 2, do mesmo Código], por se tratar de uma disposição de natureza excepcional, só aplicável nos casos expressamente referidos.

III – Assim, para efeitos fiscais diferentes da tributação em imposto de sisa ou em imposto sobre as sucessões e doações, há-de entrar em funcionamento o conceito civilístico de transmissão».

Posto isto, não restam dúvidas de que a transmissão do referido terreno para construção ocorreu em 06/03/89, data da celebração da escritura de compra e venda. É o que resulta da aplicação, ao caso presente, das regras gerais constantes dos artigos 1317º, alínea a) e 408º, ambos do Código Civil.

Assiste, pois, razão ao Reclamante na sua pretensão de ver anulada a liquidação do Imposto de Mais-Valias incidente sobre os ganhos obtidos numa data posterior à sua revogação, ocorrida com a entrada em vigor do Código do IRS, devendo tais ganhos ser tributados – de acordo, aliás, com a declaração do contribuinte – na respectiva categoria G, juntamente com os restantes rendimentos auferidos no ano de 1989.

Dir-se-á que mal procedeu o contribuinte ao efectuar o pagamento do imposto que não considerava devido, deixando por pagar aquele que sempre afirmou ser aplicável ao seu caso. Só que o princípio solve et repete, em situações como esta, em que o contribuinte é duplamente onerado com encargos que atingem valores extremamente elevados, sem que tal facto se fique a dever, em nada, a um seu comportamento culposo ou mesmo meramente negligente, dificilmente se pode aceitar como justo e razoável.

Porque a morosidade e o formalismo ainda subjacentes aos processos de impugnação judicial e ao próprio processo executivo, não podem prevalecer sobre os princípios da legalidade e da certeza, segurança e celeridade na definição das situações tributárias, consagrados no artigo 17º, alíneas a) e b), respectivamente, do Código de Processo Tributário (CPT), nem, tão-pouco, sobre os princípios constantes do Capítulo II, da Parte I, do Código do Procedimento Administrativo, nomeadamente dos respectivos artigos 3º (princípio da legalidade), 4º (princípio da prossecução do interesse público e da protecção dos direitos e interesses dos cidadãos) e 6º (princípios da justiça e da imparcialidade),
entendo que cabe à Administração Fiscal resolver, oficiosamente, uma situação como a presente, sem necessidade de aguardar pelo desenrolar dos processos pendentes que, para além do mais, poderão revelar-se inadequados para corrigir os erros já praticados, sendo mesmo possível que, na pior das hipóteses, o contribuinte acabe confrontado com a confirmação da dupla tributação de que foram objecto os seus ganhos.

Face ao exposto,

RECOMENDO

1. Que seja oficiosamente revogado o acto de liquidação de Imposto de Mais-Valias respeitante ao ganho proveniente da transmissão do terreno para construção a que venho fazendo referência, dado que tal transmissão ocorreu em Março de 1989, data em que o Código ao abrigo do qual foi liquidado o imposto se encontrava já revogado, com a consequente emissão dos respectivos títulos de anulação a favor do contribuinte.

O processo de impugnação judicial deste imposto, actualmente pendente, extinguir-se-á, obviamente, por inutilidade superveniente da lide.

2. Que, simultaneamente, sejam anulados os juros de mora e custas que têm vindo a ser exigidos ao contribuinte em sede de processo de execução fiscal de IRS – uma vez que o atraso na liquidação da dívida de imposto não lhe pode ser imputado -, devendo o contribuinte ser notificado da possibilidade de por termo ao referido processo de execução fiscal de IRS através do expediente previsto no artigo 343º do Código do Processo Tributário (pagamento voluntário que, neste caso particular, será apenas da quantia referente ao cálculo do imposto devido, sem quaisquer acréscimos).

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel