Ministro do Planeamento e Administração do Territõrio

C/c Ministro das Finanças

Rec. nº 170/A/94
Proc.: R-4106/91
Data: 1994-11-24
Área: A5

ASSUNTO: ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Sequência:

1. A Senhora …… , ex-trabalhadora contratada do extinto Gabinete da Área de Sines (G.A.S), em queixa que me dirigiu, alegou essencialmente o seguinte:

a) O contrato de trabalho que a vinculou ao extinto Gabinete da Área de Sines, inicialmente celebrado pelo prazo de seis meses, veio a ser sucessivamente renovado até 2 de Maio de 1986, data em que foi despedida sem justa causa.

b) Inconformada com tal decisão, instaurou acção sumária emergente de contrato de trabalho contra o Gabinete da Área de Sines, no Tribunal de Trabalho de Lisboa (Proc. nº …/86, do 4º Juízo, 1ª Secção), tendo a sentença, proferida em 03.11.88, condenado o R.G.A.S. “…a pagar à … os salários e mais direitos vencidos a partir da data de 1 de Maio 86 até à data do efectivo reingresso na empresa…”, e ainda “…os juros legais
sobre os salários vencidos e não pagos e contados desde a data dos respectivos vencimentos até à data do seu recebimento efectivo”.

c) Interposto recurso de apelação da mencionada decisão para o Tribunal da Relação de Lisboa, veio esta a ser confirmada e o recurso a ser julgado improcedente, por Acórdão emitido em 12.07.89, o qual transitou em julgado.

d) No entanto, a despeito da existência de decisão judicial transitada em julgado, o Gabinete da Área de Sines não pagou à reclamante as quantias que lhe eram e continuam a ser devidas, apesar de esta haver solicitado o seu pagamento com reiterada insistência.

e) Entretanto, sem que houvesse sido instaurada execução da mencionada decisão condenatõria do 4º Juízo do Tribunal de Trabalho de Lisboa, veio a ser extinto o Gabinete da Área de Sines, através da publicação do Decreto-Lei nº 228/89, de 17 de Julho.

f) No artigo 2º, nº 2, alínea g), deste diploma legal prescreveu-se que o pagamento aos credores do extinto Gabinete se deveria fazer “por negociação, caso a caso”.

g) Porém, o crédito da reclamante não veio a ser reconhecido pelo administrador liquidatário.

h) Ulteriormente, foi publicado o Decreto-Lei nº 297/91, de 16 de Agosto, o qual veio permitir no respectivo artigo 1º, nº 2, a instauração, contra o Estado, de processos especiais de impugnação de não reconhecimento por parte dos credores que não viessem a obter o reconhecimento dos seus créditos.

i) E ao abrigo da disposição legal atrás citada veio a reclamante a deduzir acção especial de impugnação contra o Estado, acção distribuída ao 3º Juízo Cível da Comarca de Lisboa (1ª Secção), que, embora já saneada (despacho de 21.12.93), ainda não foi decidida.

f) Solicitou, enfim, a reclamante a intervenção do Provedor de Justiça junto da Administração – Ministério do Planeamento e Administração do Território – no sentido do cumprimento efectivo da decisão condenatória do 4º Juízo do Tribunal de Trabalho de 3.11.88, confirmada pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12.07.89.

2. O precedente registo factual veio a ser inteiramente confirmado na instrução a que se procedeu no processo organizado neste órgão do Estado com base na aludida queixa.

3. Solicitada informação pertinente ao assunto em causa ao Ministério do Planeamento e Administração do Território, veio o mesmo, através de sucessivas informações prestadas à Provedoria de Justiça, sustentar o entendimento de que “nem a relação material controvertida se encontrava esclarecida e estabelecida no direito, nem a exponente terá esgotado os meios judiciais ao seu alcance para poder fazer valer a sua pretensão” (Informações nº 24/DSJ/92 e nº 44/DSJ/92, prestadas pelo Exmº consultor jurídico do M.P.A.T.).

4. Com base neste entendimento, não foi sequer analisada a questão do incumprimento da decisão condenatória transitada em julgado, a que se reportou, expressamente, o ofício da Provedoria de Justiça de 12 de Março de 1992 (vid. cópia em anexo ao processo da presente Recomendação).

5. No entanto, a apreciação e valoração de tal questão, numa perspectiva técnico-jurídica, reveste-se de importância verdadeiramente fulcral no caso objecto da queixa, ajudando a melhor compreender o trilho processual sinuoso que a queixosa se viu compelida a percorrer para obter o pagamento do seu crédito, apesar de este estar devidamente reconhecido em sentença judicial transitada em julgado.

6. Com efeito, prescreve-se no artigo 671º, nº 1, do Código de Processo Civil que “transitada em julgado a sentença, a decisão sobre a relação material controvertida fica tendo força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 497º e seguintes…” do mesmo diploma, constituindo caso julgado nos precisos limites e termos em que decidiu (artigo 673º, C.P.Civil).

7. Na própria Constituição (artigo 282º, nº 3) é admitido, implicitamente, o princípio da intangibilidade do caso julgado, já que são ressalvados expressamente os casos julgados quando assentem em normas inconstitucionais, impondo-se, por maioria de razão, o mesmo tratamento quando se não verifique tal situação, como acontece na generalidade dos casos (cfr., neste sentido, Prof. Gomes Canotilho e Dr. Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 3ª edição, 1993, pag. 800).

8. E, por sua vez, no artigo 208º da mesma Lei Fundamental consignou-se a obrigatoriedade das decisões dos Tribunais para todas as entidades públicas e privadas, decisões que deverão prevalecer sobre as de quaisquer outras autoridades, mesmo que investidas em funções legislativas (cfr., quanto a este último ponto específico, Prof. Gomes Canotilho e Dr. Vital Moreira, op. cit., pag. 799).

9. Atento este quadro de referências, será forçoso reconhecer, sem grande esforço, que os Decretos-Leis nº 228/89, de 17 de Julho – que determinou a extinção do Gabinete da Área de Sines -, e nº 227/91, de 16 de Agosto, que, em complemento àquele outro, veio permitir a instauração de acções especiais de impugnação contra o Estado, por todos aqueles que não viram reconhecidos os seus créditos nos termos e no prazo estabelecido no Decreto-Lei nº 228/89, são irrelevantes e não podem ser feitos valer contra o caso julgado formado no caso da queixosa, nos termos atrás enunciados.

10. Com efeito, o Supremo Tribunal de Justiça, nos Acórdãos de 16.02.78 e 15.06.78 (in BMJ, 274º/126, “Revista dos Tribunais”, 95-70, e “Revista de Legislação e Jurisprudência”, 110º/232 e 437, com anotação do Prof. Vaz Serra), firmou o entendimento claro e inequívoco, com base no princípio da intangibilidade do caso julgado consagrado na Constituição, de que o mesmo “obsta a que à situação concreta por ele definida seja aplicada nova lei, ainda que retroactiva, uma vez que tal lei, precisamente na medida em que pretenda abranger essa situação, estará afectada de inconstitucionalidade”.

11. E se o direito da reclamante aos salários emergentes do contrato de trabalho firmado com o Gabinete da Área de Sines já foi declarado por sentença transitada em julgado, o cumprimento da obrigação reconhecida em juízo pode ser exigido em acção executiva, já que a reclamante dispõe de título executivo (artigos 46º, alínea a), e 47º do Código de Processo Civil), legalmente apto a conferir realização material efectiva à decisão jurisdicional transitada.

12. Nesta conformidade, a propositura de acção especial de impugnação contra o Estado, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 297/91, de 16 de Agosto, justifica-se por exclusivas razões de índole prática, perante o não “reconhecimento” do crédito por parte do administrador liquidatário, mas traduz-se num procedimento processual desajustado, vulnerador do caso julgado e de efeitos perversos para os interesses da reclamante tutelados na lei.

13. Com efeito, o crédito da reclamante já estava reconhecido e declarado por decisão jurisdicional transitada em julgado, não carecendo, por essa razão decisiva, de ser “reconhecido” por outra qualquer entidade, no caso pelo administrador liquidatário do extinto Gabinete da Área de Sines.

14. E, por outro lado, a acção especial de impugnação movida pela reclamante contra o Estado repetiu, na sua essencialidade, a causa já decidida no 4º Juízo do Tribunal de Trabalho de Lisboa, com ofensa do caso julgado, já que se verificou, no caso, identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir (v. artigos 497º e 498º do Código de Processo Civil).

15. E, conquanto o Gabinete da Área de Sines, requerido na primeira acção proposta no Tribunal de Trabalho de Lisboa, haja sido extinto ulteriormente, decorre da lei (artigo 498º, nº 2, do C.P. Civil), e constitui entendimento, a bem dizer generalizado, da doutrina e jurisprudência, que existe identidade de sujeitos quando as partes na acção são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, não relevando apenas a identidade física, mas principalmente a identidade jurídica.

16. Ora, no caso em apreço, e como resulta do conteúdo prescritivo dos citados Decretos-Leis nº 228/89, de 17 de Julho, e nº 297/91, de 16 de Agosto, o Estado assumiu a posição jurídica do extinto Gabinete da Área de Sines, muito embora em data ulterior à formação do caso julgado, o que, no entanto, não obsta à verificação da identidade de sujeitos, tal como se deixou caracterizada (cfr., neste sentido, Prof. Antunes Varela, “Manual de Processo Civil”, pag. 722, e Prof. Manuel de Andrade, “Noções de Processo Civil”, pag. 285).

17. Aliás, o próprio Mmº Juiz do processo especial de impugnação nº 5069, ainda pendente no 3º Juízo Cível da Comarca de Lisboa, embora não conhecendo oficiosamente da excepção do caso julgado, nos termos do artigo 500º do Código de Processo Civil, deixou expressamente sublinhado, no intróito do despacho saneador que proferiu em 21.12.93, que “não se compreende de todo que o Estado venha contestar factos já reconhecidos por sentença transitada em julgado”, juízo assertório que sem dúvida vem contestar as nossas considerações anteriores quanto à repetição da causa e ofensa do caso julgado.

18. Cabe, por último, observar que a via processual percorrida pela reclamante ao abrigo do disposto no nº 2 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 297/91, de 16 de Agosto, e que lhe pareceu a via mais exequível para a obtenção do seu crédito, dada a posição assumida pelo administrador liquidatário e pelo Estado, para além de a sujeitar aos riscos inerentes à produção da prova e a nova decisão jurisdicional, revela-se excessivamente morosa.

19. Com efeito, a morosidade já registada na tramitação do processo especial de impugnação no 3º Juízo Cível da Comarca de Lisboa (onde deu entrada em 17.09.91) faz fundadamente presumir que o processo tarde ainda largo tempo a ser decidido.

20. E, nesta conformidade, julgo justificar-se bem, no plano dos princípios, e no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos da reclamante, o cumprimento extra-judicial da decisão proferida pelo 4º Juízo do Tribunal de Trabalho de Lisboa, e confirmada pelo Acórdão de 12.07.89 do Tribunal da Relação de Lisboa.

21. Tal procedimento só prestigiaria a Administração e, conduzindo necessariamente à declaração de extinção da instância no processo de impugnação nº 5069, ainda pendente no 3º Juízo Cível da Comarca de Lisboa, por inutilidade superveniente da lide (artº 287º, alínea e), do Código de Processo Civil), poria termo a uma situação de conflitualidade indesejável para ambas as partes e processualmente injustificada nas circunstâncias descritas.

22. As importâncias devidas à queixosa a título de salários e outros abonos vencidos haverão de ser acrescidos os juros vencidos, à taxa legal, contados desde 01.05.86, e vincendos até efectivo pagamento, nos termos da sentença proferida pelo 4º Juízo do Tribunal de Trabalho de Lisboa em 03.11.88, e do Acórdão do Tibunal da Relação de Lisboa que a confirmou.

23. Em face de todo o exposto, tenho por conveniente, nos termos da alínea a) do nº 1 do artigo 20º da Lei nº 9/91, de 9 de Abril,

RECOMENDAR

a Vossa Excelência:

Que o Estado, através desse Ministério, em cumprimento extra-judicial da decisão proferida no caso em apreço pelo 4º Juízo do Tribunal de Trabalho de Lisboa em 03.11.88, já transitada em julgado, pague voluntariamente à reclamante, D. …, as quantias que aquela decisão condenou o extinto Gabinete da Área de Sines a pagar.

24. Solicito a Vossa Excelência que, nos termos do artigo 38º da Lei nº 9/91, de 9 de Abril, me comunique a posição assumida quanto à presente Recomendação.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel