Ministro da Finanças

Com conhecimento: Ministro da Justiça

R-250/95
Rec. nº 38/B/95
Data:21.09.95
Área: A5

Assunto:PROCESSO PENAL – VEÍCULOS AUTOMÓVEIS APREENDIDOS – REGIME JURÍDICO- ALTERAÇÃO – VEÍCULOS DECLARADOS PERDIDOS A FAVOR DO ESTADO.

Sequência:

Foram-me dirigidas exposições nas quais os reclamantes, proprietários de veículos apreendidos no decurso de processos crime, se queixam contra o facto de os mesmos estarem a ser utilizados por entidades públicas.

No seguimento da instrução destas reclamações procedeu-se à análise do Decreto-Lei nº 31/85, de 25 de Janeiro, diploma legal que permite que os veículos automóveis apreendidos em processo crime ou contra-ordenação, possam ficar à disposição da Direcção-Geral do Património do Estado, antes de ter sido proferida decisão no respectivo processo, para serem afectados ao parque automóvel do Estado.

1.Refere o preâmbulo do Decreto-Lei nº 31/85 que o diploma visa obviar a situação em que se encontram os veículos automóveis apreendidos em processo crime que, permanecendo longos períodos sem utilização, ficam reduzidos pelo tempo e, muitas vezes pela intempérie, a destroços sem utilidade, ao mesmo tempo que aproveita para agrupar e classificar outras situações de veículos automóveis apreendidos, declarados perdidos ou abandonados, conferindo-lhes tratamento idêntico.
1.1.Da leitura do Diário da Assembleia da República, relativo à reunião plenária da mesma Assembleia em que foi discutida e aprovada a proposta de Lei nº 75/III, que autorizava o Governo a legislar sobre a utilização, pelo Estado, de veículos automóveis apreendidos, verifica-se que, com o diploma em análise, se pretendeu conciliar os interesses do proprietário do veículo apreendido, por acautelar as expectativas de o vir a recuperar em bom estado de conservação, com o interesse público, através da utilização dos veículos.

2.Todavia, no que respeita aos interesses do proprietário do veículo, não parece que a solução legal consagrada os proteja de forma adequada.

2.1.Na verdade, desde logo, são escassos os meios de oposição conferidos ao proprietário que, tendo sido privado do seu veículo, apreendido e à disposição da Direcção-Geral do Património do Estado, pretendendo reavê-lo, apenas dispõe da possibilidade de requerer ao juiz de instrução competente (ou à autoridade administrativa no caso de processo de contra-ordenação) que profira despacho em que aprecie, provisoriamente, com base num juízo de prognose, a susceptibilidade de futura perda da viatura em favor do Estado (vd. artigo 3º nº 1, do Decreto-Lei nº 31/85, de 25 de Janeiro).

2.2.Por outro lado, além dos encargos inerentes ao facto de ter sido privado do uso e fruição de um bem que lhe pertence, no momento da restituição do veículo, permite o diploma em análise que possa ser imputado ao respectivo proprietário, o pagamento ao Estado de uma quantia, correspondente ao valor das reparações que o Estado entendeu serem necessárias durante a utilização (vd. artigos 9º, e 11º do Decreto-Lei nº 31/85).

2.2.1.Caso o proprietário discorde com o montante em dívida apurado (diferença entre a desvalorização ocasionada pelo uso por parte do Estado e as benfeitorias que este efectuou durante a utilização), designadamente por considerar desnecessárias as benfeitorias efectuadas, terá que recorrer da decisão proferida pelo Ministro das Finanças (sob proposta do director-geral do Património do Estado), recaindo sobre o proprietário o ónus da prova (vd. artigos 11º, e 13, nº 2, do Decreto-Lei nº 31/85, de 25 de Janeiro).
Assim, não parece justa a situação em que é colocado o proprietário, desapossado do seu veículo, que, para recorrer do montante apurado no momento da restituição do veículo, e nessa altura pago (sob pena da sua não devolução), terá que requerer a fixação judicial daquele valor, sendo conhecida a morosidade e os custos inerentes à tramitação dos processos judiciais.

3.A aplicação deste regime legal dá origem a situações de grande injustiça, do prisma do proprietário, como é exemplo a seguinte situação que me foi relatada:

-a proprietária de um veículo, utilizado na prática de um crime cometido por um terceiro e em relação ao qual não é comparticipante, vê-se privada da utilização do mesmo, visto que, tendo sido objecto de utilização indevida e não autorizada, por parte desse terceiro, foi apreendido e, posteriormente, entregue a um serviço público;

-a reclamante viu-se assim privada do seu veículo, indispensável para o exercício da sua actividade profissional;

-recentemente, tomou conhecimento que foram efectuadas benfeitorias, por iniciativa dos serviços a quem o veículo foi entregue, a seu ver desnecessárias, sendo o veículo novo, tendo-lhe sido imputado o pagamento de Esc.320.000$00;

-o veículo foi-lhe restituído, cerca de um ano após a apreensão, tendo recaído sobre a reclamante a obrigação de o ir buscar ao Hospital Distrital de Viseu, entidade a que tinha sido entregue.

4.Tendo sido solicitadas informações à Direcção-Geral do Património do Estado sobre a aplicação prática de algumas disposições do diploma em análise, constatou-se, relativamente ao ano de 1994, que das 8425 comunicações efectuadas nos termos do artigo 2º do Decreto-Lei, apenas 188 automóveis foram considerados com interesse para o parque automóvel do Estado, o que corresponde a uma percentagem de 2,23%. Assim, considerando que um dos objectivos deste diploma era obviar à situação em que se encontravam as várias centenas de veículos apreendidos que, permanecendo durante longos períodos sem utilização, ficavam reduzidos a destroços sem utilidade, decorre que a prossecução daquele objectivo só teria sido possível caso tivessem sido afectos ao parque automóvel do Estado um número substancialmente mais elevado de veículos, entre os quais deveriam conter-se, designadamente, os mais susceptíveis de depreciação por imobilização.

4.1.Na prática, verifica-se que esta solução legal promove o interesse exclusivo do Estado, economizando avultadas somas na utilização de veículos apreendidos em bom estado de conservação, que de outra forma despenderia na aquisição de novos veículos para o seu parque automóvel.

5.Após um breve estudo de direito comparado, verificou-se que nos ordenamentos jurídicos estrangeiros consultados não existe nenhum regime que, à semelhança do Decreto-Lei nº 31/85, permita que fiquem à disposição dos serviços do Estado os veículos apreendidos em processo judicial antes de ser proferida sentença. Nesses ordenamentos jurídicos, os veículos apreendidos em processo crime destinam-se a efeitos probatórios e são, se possível, entregues ao proprietário enquanto fiel depositário, ou então retidos em depósitos judiciais sem que seja feita qualquer referência à sua utilização por entidades públicas.

6.O direito penal português, por sua vez, tem evoluído no sentido de diminuir os casos em que a perda de objectos apreendidos no decurso de processo crime é decretada, o que deveria ser acompanhado, relativamente ao destino dos objectos apreendidos, por uma diminuição das situações em que fosse possível declarar a sua utilização a favor do Estado (cfr. artigos 75º do Código de Processo Penal de 1929, 107º e ss. do Código Penal de 1982 e 110º da nova redacção deste último, em vigor a partir de 1 de Outubro de 1995).

6.1.No entanto, o anterior diploma que regulava a matéria em questão, a Lei nº 25/81, de 21 de Agosto, ao contrário do vigente, só em circunstâncias excepcionais permitia a entrega às entidades públicas dos veículos apreendidos, o que resultava quer através da instituição do mecanismo da caução, quer através de um leque apertado de condições, entre as quais avultava a exigência de despacho judicial para o efeito.

7.A solução consagrada no Direito Português relativamente ao destino dado aos veículos apreendidos em processo crime, privando os legítimos proprietários da sua utilização, mesmo quando estão na posição de terceiros relativamente ao processo judicial, e entregando os veículos à ordem da Direcção-Geral do Património do Estado, para uso e fruição de entidades públicas, antes de ser proferida sentença condenatória, constitui uma limitação do direito de propriedade privada que pode conduzir a situações injustas. Acresce que não parece justificável que os veículos apreendidos na situação prevista na alínea a), do nº 1, do Decreto-Lei nº 31/85, tenham tratamento legal semelhante aos veículos declarados definitivamente perdidos a favor do Estado ou abandonados.

8.Assim, considerando que o diploma em análise “…visa obviar a situação em que se encontram os veículos automóveis apreendidos em processo crime que, permanecendo longos períodos sem utilização, ficam reduzidos pelo tempo e, muitas vezes pela intempérie, a destroços sem utilidade…” em virtude de estarem a aguardar que seja proferida decisão judicial, seria mais correcto encontrar uma solução que não aproveitasse a morosidade dos processos judiciais, que, em última análise, é imputável ao Estado, para servir os interesses do próprio em detrimento da limitação do direito de propriedade dos proprietários dos veículos. Em face do exposto, e no exercício da atribuição constitucional que me é conferida, no sentido da prevenção e reparação de injustiças (artigo 23º, nº 1, da C.R.P.) alínea b), entendo fazer uso do poder que me é conferido pelo artigo 20º, nº 1, alínea b), da Lei nº 9/91, de 9 de Abril, e como tal,RECOMENDO:

a Vossa Excelência que se digne providenciar no sentido de ser desencadeado procedimento legislativo com vista à alteração do Decreto-Lei nº 31/85, de 25 de Janeiro (regime jurídico aplicável aos veículos automóveis apreendidos em processo crime ou de contra-ordenação que sejam susceptíveis de vir a ser declarados perdidos a favor do Estado), nomeadamente, consagrando uma solução legal que:

-promova que os veículos apreendidos sejam, se possível, entregues ao seu proprietário, enquanto depositário ou, quando confiados à guarda do Estado, recaia sobre este o dever de zelar pela sua conservação e,

-assegure que os veículos apreendidos só possam ser colocados à disposição da Direcção-Geral do Património do Estado, para subsequente uso e fruição de entidades públicas, caso tenha sido declarada a sua perda definitiva a favor do Estado.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel