Comandante Geral da Polícia de Segurança Pública
Número:54/A/98
Processo:R-1721/96
Data:31.07.1998
Área: A1

Assunto:AMBIENTE – PIROTECNIA – SUBSTÂNCIAS EXPLOSIVAS – SEGURANÇA – INCUMPRIMENTO DO REGULAMENTO – LICENÇA DE POLÍCIA – ACTO PRECÁRIO – CADUCIDADE.

Sequência: Acatada

I-Exposição de Motivos

1. Dos Factos

Na sequência de queixa que me foi dirigida acerca de oficina de pirotecnia sita em …, foi promovida, para instrução do respectivo processo, em epígrafe identificado, audição da Câmara Municipal de São Brás de Alportel e da Inspecção Geral da Polícia de Segurança Pública.

Pronunciou-se o Exmo. Inspector Geral, em resposta às questões que lhe foram colocadas, a coberto do ofício n.º ….
Por seu turno, veio a Câmara Municipal de S.Brás de Alportel, a prestar os esclarecimentos constantes de ofício n.º …, de que se junta cópia, para melhor apreciação.
Concluída a recolha dos elementos necessários à formulação de juízo sobre a matéria reclamada, permito-me relevar os seguintes factos e circunstâncias:

1. Por averbamento ao alvará n.º 203, foi, em 29.1.1955, autorizada a instalação de oficina pirotécnica no lugar …. Procede o estabelecimento em causa a operações de fabrico e armazenagem de fogos de artifício e outros artifícios pirotécnicos e ao fabrico de pólvora para manufactura de tais produtos.

2. O funcionamento da oficina foi causa de vários acidentes dos quais resultaram a morte de um trabalhador e a lesão da integridade física de outro trabalhador, que sofreu queimaduras graves. No plano patrimonial, foi verificada a destruição ou deterioração de edifícios da oficina e a projecção de destroços com incidência sobre as habitações vizinhas, com produção de danos.

3. Não foi observada, à data da autorização de instalação da oficina no lugar de …, a proibição de implantação a menos de 150 metros de habitação, edifício ou estrada, consignada no art. 59º do Regulamento sobre substâncias explosivas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 37:925 de 1 de Agosto de 1950. Nem parece ter tido lugar vistoria para determinação de zona de segurança, nos termos previstos no art. 44º daquele diploma.

4. O despacho do Exmo. Vice-Presidente da Câmara Municipal de S.Brás de Alportel, de 6.5.1953, que julgou improcedentes as reclamações apresentadas no âmbito de processo de licenciamento de instalação da oficina, fundamentou-se na circunstância de a oficina distar mais de 150 metros da mais próxima habitação. Foi esse pressuposto que habilitou a asserção de inexistência de perigo para a vida dos moradores.

5. No entanto, os elementos facultados pelo Exmo. Presidente da Câmara Municipal à Provedoria de Justiça, permitem concluir em sentido oposto ao do juízo formulado em 6.5.1953. Verifica-se, na verdade, que, a menos de 100 m dos limites da propriedade na qual se situa a oficina, existem dez edifícios, na sua larga maioria destinados a habitação, dos quais sete se encontravam construídos à data da autorização da instalação do estabelecimento, e, bem assim, dois caminhos municipais de circulação rodoviária.

6. Em Janeiro de 1986 foram estabelecidas distâncias de segurança entre as diversas dependências constituintes do estabelecimento, por ponderação das respectivas lotações. Não se mostram, pois, satisfeitas as exigências prescritas pelo art. 11º, n.º 3 do Regulamento sobre a Segurança nas Instalações de Fabrico e de Armazenagem de Produtos Explosivos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 142/79 de 23 de Maio, relativamente à definição de zona de segurança, faixa de terreno de largura não inferior a cerca de 150 m, confinante com a área ocupada pelos edifícios do estabelecimento. A circunstância de a oficina, nas actuais condições de funcionamento, observar todos os requisitos de segurança definidos no alvará de licenciamento, não acautela, devidamente, os interesses de terceiros.

7. Com efeito, como informou a Inspecção-Geral, a natureza das matérias primas utilizadas no fabrico dos artifícios pirotécnicos, acarreta especial risco de acidente por deflagração de incêndios e explosões associados a erro humano ou inflamação de matérias por motivo fortuito ou caso de força maior. Mostra-se revelador, a este respeito, o incêndio que deflagrou no alpendre do edifício n.º 3 em 27.3.1992, ao qual terá sido alheia a intervenção humana, merecendo, do mesmo, ponderação, a circunstância de permanecerem por identificar as causas da maioria dos acidentes ocorridos.

8. A Inspecção Geral e a Câmara Municipal de S.Brás de Alportel convêm que a actual localização da oficina acarreta perigo para a vizinhança.
Na verdade, o esclarecimento prestado a coberto do ofício n.º …, nos termos do qual “não se pode afirmar com rigor técnico que existe perigo para a segurança e saúde pública”, não se coaduna com as informações anteriormente facultadas, nem com a solução preconizada pela mesma entidade, reiterada no texto da mencionada comunicação: a transferência das instalações da oficina, que pressupõe, de resto, o seu encerramento.

9. Frustraram-se as diligências desencadeadas pela Câmara Municipal de S.Brás de Alportel, tendo em vista a alteração da localização do estabelecimento.

2. Do Direito

1. Na prevenção dos danos sociais de um acidente desencadeado pelo exercício de actividades que envolvam a utilização de substâncias explosivas, o legislador impôs exigências reforçadas.
Previu a definição de uma zona de segurança “exteriormente aos limites da área do terreno de instalação dos edifícios de fabrico e de armazenagem de uma fábrica, oficina ou paiól permanente, constituída por faixa de terreno na qual não deverão existir ou não se poderão construir quaisquer edificações, vias de comunicação ou instalações de transporte de energia, além das indispensáveis ao serviço próprio daqueles estabelecimentos” (art. 11º do Regulamento sobre a Segurança nas Instalações de Fabrico e de Armazenagem de Produtos Explosivos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 142/79 de 23 de Maio).
Estabeleceu a lei diferentes distâncias de segurança em função da natureza dos interesses a proteger.
A protecção da segurança do público em geral, população local e trânsito pedonal ou rodoviário, constitui uma preocupação do legislador, que subjaz à expressa previsão, no art. 15º do Regulamento aprovado pelo Decreto-Lei n.º 142/79, de 23 de Maio, da exigência da definição de distâncias a vias de comunicação de uso público e distâncias a edifícios ocupados (independentemente do uso praticado).

2. As distâncias de segurança fixadas entre o estabelecimento ou suas dependências e, vias de comunicação, por um lado, e edifícios habitados, por outro, mostram-se insuficientes para debelar as incidências de eventuais acidentes sobre a integridade física das pessoas e a segurança dos bens.
A aprovação da localização do estabelecimento em inobservância da proibição legal consignada no art. 59º do Regulamento sobre Substâncias Explosivas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 37:925 de 1 de Agosto de 1950, e o posterior licenciamento municipal de novas edificações a curta distância dos limites da área de implantação das oficinas, propiciaram a criação de uma situação de especial perigosidade social.
A actuação camarária, no que tange às aprovações de projectos de construção na área que circunda o estabelecimento, concedidas na década de 1990, traduz a sua convicção de que a mesma constitui uma zona urbana, em parte ocupada por habitações, e dispondo de infraestruturas urbanas, aptas a satisfazer as necessidades do aglomerado que ali se fixou.
A caracterização da área envolvente à oficina como zona urbana exclui a possibilidade da sua definição como zona de segurança, destinada a precaver os riscos e inconvenientes que, para pessoas e bens, advenham do exercício de actividade perigosa.

3. Dão-se, assim, por verificadas as circunstâncias que determinam a caducidade da licença de instalação do estabelecimento, designadamente a existência de perigo para a segurança ou a saúde públicas e a insusceptibilidade da sua remoção (cfr. art. 31º, n.º1, al.f) do Regulamento sobre o Licenciamento dos Estabelecimentos de Fabrico e de Armazenagem de Produtos Explosivos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 376/84 de 30 de Novembro).
Nem a circunstância de a instalação da oficina se encontrar licenciada permite obviar à caducidade da licença, já que se trata do domínio das licenças de polícia, actos precários por natureza.

3.1. Sobre o conceito de polícia no direito administrativo, pronuncia-se MARCELLO CAETANO, “definiremos a polícia como o modo de actuar da autoridade administrativa, que consiste em intervir no exercício das actividades individuais susceptíveis de fazer perigar interesses gerais, tendo por objecto evitar que se produzam, ampliem ou generalizem os danos sociais que as leis procuram prevenir”.
(…)
E prossegue o mesmo Autor: “A medida de polícia é um acto puramente preventivo que não carece da verificação de transgressão, contravenção ou crime para ser aplicada, prosseguindo o fim de evitar a produção de danos sociais cuja prevenção caiba no âmbito das atribuições da polícia”.
(…)
Acrescenta: “Bastará que o perigo assuma proporções graves para que, independentemente da produção de facto delituoso, a polícia poder tomar as precauções permitidas por lei a título de defesa da segurança pública”.
(…)
Conclui MARCELLO CAETANO: “Em regra, as licenças policiais são revogáveis a todo o tempo pela autoridade que as concedeu desde que se verifique perturbação causada pela actividade permitida”.(Manual de Direito Administrativo, Vol. II,pp. 1169 e 1170).

Os poderes conferidos ao destinatário dos actos precários existem unicamente por tolerância do órgão administrativo que a todo o tempo pode extingui-los, por motivo de interesse público. (Manual de Direito Administrativo, Vol. I, 10ª edição, 5ª Reimpressão, Revista e Actualizada por Diogo Freitas do Amaral, Almedina, pp. 455 e 457).

3.2. A licença policial não concede direitos subjectivos, originando antes a constituição de faculdades.
Ao invés da autorização administrativa que tem por objecto o exercício de actividade normalmente permitida, o licenciamento policial reporta-se a actividades geralmente proibidas que, excepcionalmente, poderão ser consentidas pela Administração.
Perfilhando tal entendimento, sustenta JOSÉ ROBIN DE ANDRADE:
“A qualificação, como faculdade, do poder jurídico que, da licença policial, resulta para o administrado, assenta no facto de a actividade permitida excepcionalmente ser, em princípio, proibida e juridicamente desvalorada, de tal forma que implicaria uma autêntica contradição no seio da ordem jurídica considerar a mesma actividade, só porque permitida excepcionalmente, como um autêntico bem jurídico em si, como um verdadeiro direito.

Não permitem tal qualificação a natureza excepcional do poder atribuído e do carácter, de puro interesse público, das razões que determinaram a concessão da licença. A actividade permitida não é garantida ao particular como exercício de um bem jurídico que lhe é reconhecido e respeitado, mas como simples paralização excepcional de um regime de proibição, (resultante da desvaloração jurídica da actividade em si), motivada por menor exigência de interesse público em questão ou pela sobreposição de outro interesse superior”.
“A autorização policial diz respeito, não a direitos mas a puras possibilidades de exercício de direitos; e efectivamente a autorização policial não é determinada por razões ligadas à tutela de bens jurídicos pessoais em que os direitos se consubstanciam, mas por simples motivos de interesse público e de polícia administrativa completamente estranhos à essência dos direitos e dos bens jurídicos em causa. A concessão da autorização policial não origina a atribuição de protecção a um bem jurídico privado, mas assegura apenas a garantia de que não serão postergados interesses públicos.”

“De resto, condicionando a lei o exercício de direitos à apreciação do interesse público pela autoridade administrativa, não seria lógico que a apreciação desse interesse público se fixasse apenas no momento do início do exercício da actividade, quando é certo que razões idênticas, ou porventura mais fortes, poderão mais tarde levar a Administração a nova apreciação da conveniência da actividade exercida, em face do interesse público, e por consequência a impedir a prossecução do uso da autorização”.
(A revogação dos actos administrativos, 2ª edição, p.p. 109 a 112).

3.3. A asserção de que o interesse particular no exercício da actividade é condicionado à apreciação pela Administração da sua concordância com o interesse público concreto, tem por corolário a possibilidade, sempre reservada à autoridade administrativa, de efectuar, fundada em motivações imperiosas de interesse público, nova apreciação da conveniência da prossecução da actividade, e proibir o exercício inicialmente permitido.
Verificada a cessação dos pressupostos objectivos legalmente definidos como condição de instalação da oficina de pirotecnia, o exercício da actividade não é mais tolerado pela ordem jurídica, por não subsisistirem as motivações inerentes ao juízo de concordância do interesse particular com o interesse público.
A situação jurídica do particular extingue-se automaticamente, havendo lugar não à revogação do acto administrativo mas a uma declaração de caducidade.

4. Na esteira de MARCELLO CAETANO, a doutrina portuguesa vem admitindo a possibilidade de indemnização por actos lícitos nas situações de violação de direitos subjectivos que contrapõe à lesão de posições jurídicas criadas por actos precários. Entende a doutrina que a situação de interesses que se constitui ao abrigo daquela categoria de actos nasce socialmente vinculada, não excedendo a sua modificação ou extinção a “tolerabilidade normal da vinculação social” (cfr. FILIPA URBANO GALVÃO, “Os Actos Precários e Os Actos Provisórios no Direito Administrativo, p.p. 332 e 333). O titular da posição jurídica encontra-se ciente da possibilidade da perturbação do gozo precário por intervenção administrativa ditada por contigências de interesse público, não depositando confiança na estabilidade da situação de que beneficia. O dever de suportar os danos inerentes à perturbação do gozo por acto administrativo extintivo ou modificativo da situação emana do princípio da equidade, por se revelar equitativo que quem usufrui de vantagens de uma situação desta natureza suporte os prejuízos advenientes da sua precariedade (ob.cit. p.p. 334 e 335).

5. A verificação de perigo para a segurança ou a saúde pública e a insusceptibilidade da sua remoção determina a constituição de vinculação legal em sentido contrário ao primitivo acto. A Administração incorre numa vinculação que impõe o desencadear de procedimentos tendo em vista a declaração de caducidade e a apreensão do alvará (cfr. art. 31º, n.ºs 1, al. f), 3 4 e 5 do Regulamento aprovado pelo Decreto-Lei n.º 376/84 de 30 de Novembro).

5.1. A formulação de juízo a respeito da verificação de perigo para a segurança e saúde públicas e da insusceptibilidade da sua remoção compete à Polícia de Segurança Pública (art. 31º, n.º 4 do citado diploma e art. 1º do Decreto?Lei n.º 107/92 de 2 de Junho). A decisão sobre a verificação dos pressupostos de facto de que depende o exercício da competência administrativa, ainda quando a mesma envolva a determinação do sentido e alcance de conceitos vagos e indeterminados, é vinculada, cumprindo à Administração apurar e respeitar a vontade do legislador.

No caso vertente, a inexistência de zona de segurança fixada em respeito do disposto no art. 11º, n.º 3 do Regulamento aprovado pelo Decreto-Lei n.º 142/79 de 23 de Maio, permite concluir pela impossibilidade de acautelar devidamente o perigo verificado para os interesses superiores da colectividade. Com efeito, não merecendo aplicação a regra excepcional prevista no art. 11º, n.º 5 do citado regulamento, a delimitação de tal área, nos termos legalmente previstos, é o único meio idóneo à remoção do perigo de ofensa do direito à vida, do direito à integridade pessoal e do direito à propriedade.
Na sua falta, e na impossibilidade de proceder à redifinição da zona de segurança, há-de a Administração concluir pela existência de perigo para a segurança e para a saúde pública e pela insusceptibilidade de remediar ou anular tais inconvenientes.

II-Conclusões

De acordo com a motivação exposta,RECOMENDO

a V. Exa. que se digne desencadear procedimentos tendo em vista a prolação de decisão a respeito da caducidade da licença e a apreensão do alvará, nos termos previstos no art. 31º, ns. 3 a 5 do Regulamento sobre o Licenciamento dos Estabelecimentos de Fabrico e de Armazenagem de Produtos Explosivos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 376/84 de 30 de Novembro.

O RPOVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel