Presidente da Assembleia da República
Número: 1/B/96
Processo: R-213/91
Data: 12.01.1996
Área: A1

Assunto: AUTARQUIAS LOCAIS – ELEITOS LOCAIS – PERDA DE MANDATO – INCAPACIDADE ELEITORAL PASSIVA – INELEGIBILIDADE SUPERVENIENTE – MEDIDA LEGISLATIVA

Sequência: Não Acatada

I- Exposição de Motivos

1. Em resultado de diversos estudos elaborados na Provedoria de Justiça referentes à inelegibilidade como causa da perda de mandato dos membros dos órgãos autárquicos vim a concluir pela necessidade de esclarecimento do exacto alcance do preceito contido na primeira parte do art.º 9.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 87/89, de 9 de Setembro, em face do que dispõe o art.º 50.º, n.º 3, da Constituição, aditado pela revisão constitucional de 1989.

2. Estipula aquela norma a perda de mandato dos membros dos órgãos autárquicos que “após a eleição, sejam colocados em situação que os torne inelegíveis ou relativamente aos quais se tornem conhecidos elementos supervenientes reveladores de uma situação de inelegibilidade já existente, mas não detectada previamente à eleição”.

3. Por seu turno dispõe o art.º 50.º, n.º 3, quanto aos fundamentos e objectivos das incapacidades eleitorais passivas que estes apenas se podem reconduzir à necessidade de salvaguarda da liberdade de escolha dos eleitores e à garantia da isenção e independência do exercício dos respectivos cargos.

4. Poder-se-á, assim, questionar se, não obstante a redacção genérica do art.º 9.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 87/89, no sentido de que constitui pressuposto da perda de mandato a verificação de alguma das inelegibilidades constantes do art.º 4.º, do Decreto-Lei n.º 701-B/76, de 29 de Setembro, a primeira parte daquele preceito se refere a todas as inelegibilidades ou se, pelo contrário, se deve entender que só abrange algumas.

5. O n.º 3, do art.º 50.º da Constituição, aditado pela Lei Constitucional n.º 1/89, de 8 de Julho, veio resolver as divergências doutrinais e jurisprudenciais quanto à possibilidade de o legislador estabelecer restrições à capacidade eleitoral passiva nas eleições autárquicas dada a ausência de preceito constitucional que expressamente previsse tal restrição ao direito de acesso aos cargos públicos (art.º 50.º da Constituição, aditado pela revisão constitucional de 1982).

6. Estabelecendo um critério quanto aos fundamentos e fins das causas de inelegibilidade que o legislador ordinário pretenda vir a criar, estatui o art.º 50, n.º 3, da Constituição, que as incapacidades eleitorais passivas apenas podem ter por fundamento:
a garantia da liberdade de escolha dos eleitores e a garantia da isenção e independência do exercício dos respectivos cargos.

Para além da vinculação teleológica do legislador, realça o preceito em análise o princípio da proibição do excesso em matéria de restrições aos direitos, liberdades e garantias, exigindo que as inelegibilidades se limitem ao necessário para assegurar tais valores (neste sentido vd., CANOTILHO, J. J. Gomes, e, MOREIRA, Vital, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª Ed., Coimbra, 1993, p. 273).

7. Como tal, não faz sentido que a primeira parte do art.º 9.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 87/89, se possa referir às inelegibilidades que visam garantir a liberdade de escolha dos eleitores quando o eleito, apenas supervenientemente, se vem a encontrar numa situação que origina inelegibilidade, porquanto tal facto em nada afecta a liberdade de escolha dos eleitores, exercida na eleição antecedente.

8. Incorrendo o titular de um órgão do poder local em qualquer uma das situações previstas nas várias alíneas do n.º 1, do art.º 4.º, do Decreto-Lei n.º 701-B/76, torna-se tal circunstância impeditiva do exercício do mandato autárquico, manifestando-se a inelegibilidade superveniente como causa da perda do mandato, ou mais precisamente, como uma incompatibilidade de exercício de tal cargo.

9. Verificando-se a impossibilidade legal de exercício das funções e não estando em causa a validade do acto designativo mas a perda de tal cargo (MIRANDA, Jorge, Enciclopédia Verbo, loc. “Inelegibilidades” Lisboa, Vol. 10.º, p. 1367), o art.º 9.º, n.º 1, alínea a), converte as inelegibilidades legais em incompatibilidades.

10. Certo é que a Constituição não adopta para as incompatibilidades uma regra semelhante ou equiparável à do art.º 50.º, n.º 3, não havendo um “numerus clausus” para os seus fundamentos, limitando-se o art.º 120.º, n.º 2, a remeter para a lei a definição das incompatibilidades dos titulares dos cargos políticos. Poderia mesmo retirar-se do art.º 269.º, n.º 4, a conclusão de que a regra geral seria a da incompatibilidade de empregos ou cargos públicos.

11. Não obstante, porque o direito de acesso aos cargos públicos implica necessariamente o direito de exercer em efectividade o cargo, e sendo aquele um direito beneficiário do regime dos direitos, liberdades e garantias, a lei que fixar as incompatibilidades está sujeita à observância dos limites fixados no art.º 18.º, da Constituição, em especial, aos princípios da necessidade e da proporcionalidade.

12. Na verdade, as incompatibilidades são restrições ao direito de acesso aos cargos públicos na sua vertente de exercício do cargo, na medida em que significam que quem tiver uma específica actividade ou função, ou se encontrar em certa situação, não pode exercer determinado cargo público. Tratando-se da “impossibilidade legal do desempenho de certas funções públicas por indivíduo que exerça determinadas actividades ou se encontre em alguma das situações, públicas ou particulares, enumeradas pela lei” (CAETANO, Marcello, Manual de Direito Administrativo, Vol. II, Coimbra, 1991, p. 721), é, pois, uma restrição para os cidadãos que desempenham essas funções ou se encontrem em tal situação.

13. Assim, a pura e simples conversão em incompatibilidades das inelegibilidades estabelecidas com o fim de garantir a liberdade de escolha dos eleitores não encontra qualquer justificação à luz dos referidos princípios da necessidade e da proporcionalidade em matéria de restrições aos direitos, liberdades e garantias.

Com efeito, verificando-se a causa determinante da inelegibilidade em momento posterior ao da eleição não há, por imperativo lógico, possibilidade de afectação da liberdade de escolha dos eleitores, com ressalva, naturalmente, dos casos de fraude à lei.

14. Em conclusão, a perda de mandato é uma medida inadequada e, por tal motivo, inconstitucional, quando pressuponha uma inelegibilidade superveniente que tenha como fundamento e objectivo evitar a possibilidade de influência do sentido de voto.

15. Revela-se tal medida adequada e proporcional se e na medida em que as funções e as circunstâncias legalmente previstas no art.º 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 701-B/76, representarem impedimentos ao exercício isento e independente do mandato autárquico.

16. Apenas se mostram necessárias, adequadas e proporcionais as inelegibilidades que apresentem como fundamento a necessidade de preservar a independência dos cargos electivos autárquicos e assegurar que os respectivos titulares desempenhem esses cargos com isenção e desinteresse, ou seja, com imparcialidade.

II – Conclusões

Em face do exposto, no uso dos poderes que me são conferidos no art.º 20.º, n.º 1, alínea b),do Estatuto do Provedor de Justiça, constante da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril,

RECOMENDO

A interpretação autêntica, por razões de segurança jurídica e justiça, da norma contida na primeira parte da alínea a), do n.º 1, do art.º 9.º, da Lei n.º 87/89, de 9 de Setembro, por forma a reduzi-la teleologicamente e garantir, assim, que apenas é determinante da perda de mandato a colocação, após a eleição, em situação de inelegibilidade por motivo imputável à necessidade de assegurar a isenção e independência do exercício dos respectivos cargos.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

JOSÉ MENÉRES PIMENTEL