Exm.º Senhor
Coordenador Sub-Regional de Saúde de Coimbra
da Administração Regional de Saúde do Centro
Processo:R-157/93
N.º 65/A/96
Data:18.07.1996

Assunto:FUNÇÃO PÚBLICA – DOENÇA PROFISSIONAL – FALTAS JUSTIFICADAS

Sequência: Acatada

1. Como é do conhecimento de V.ª Ex.ª, uma ex-funcionária do Laboratório de Saúde Pública dessa Administração Regional de Saúde, dirigiu-me uma reclamação relacionada com a doença profissional de que padeceu enquanto exerceu funções no aludido Laboratório, no sector de hematologia.

2. Considerando que a reclamante já não presta serviço naquele Laboratório e que os problemas de poluição ali verificados foram solucionados mediante a instalação de equipamento adequado, a pretensão da funcionária restringe-se, agora, à questão do tratamento conferido às faltas motivadas pela referida doença.

3. Deliberou a Comissão Instaladora da Administração Regional de Saúde de Coimbra, em 22.6.93, quanto a este aspecto, “não considerar o acidente como acidente em serviço”, com fundamento no disposto no art.º 5.º do Decreto-Lei n.º 38.523, de 23.11.51 e no teor da informação do Chefe de Repartição de Pessoal da Direcção de Serviços de Recursos Humanos de 20.4.93. Esta informação não aduz qualquer fundamento para além do incumprimento da disposição referida, facto que impediria a qualificação de qualquer acidente como acidente em serviço.

4. Não posso deixar de manifestar o meu desacordo quanto a tal deliberação, pelas razões que passo a expor.

5. Em primeiro lugar, julgo que a situação de facto em análise não se deve configurar como um acidente (em serviço ou fora dele) reclamando, antes, a caracterização de aquisição de uma doença. Como bem salienta JOÃO ALFAIA (Conceitos Fundamentais do Regime Jurídico do Funcionalismo Público”, vol. I., pag. 594), a doença, ao contrário do acidente – que resulta de um evento súbito – “é, em princípio, contraída lenta, insidiosa e progressivamente, só se manifestando quando atinge certa gravidade”. Ora, no caso concreto, a sintomatologia apresentada pela reclamante resultou da inalação de produto tóxico, em quantidade superior à aconselhável e durante período razoavelmente longo, pelo que se impõe concluir pela sua qualificação como doença.

6. Por outro lado, os elementos instrutórios recolhidos não suscitam dúvidas no que toca à conexão directa da doença com o exercício das funções cometidas à funcionária. Assim:
6.1. A autoridade de saúde distrital, em relatório remetido a à aludida Comissão Instaladora em 12.11.92, ao descrever as medições do teor residual de gases na sala de hematologia e os resultados das análises ao sangue das funcionárias, considera que:

“Atendendo às condições normais existentes, antes da instalação da ventax na janela da sala de trabalho, e relatadas pela requerente, é de presumir que, algumas vezes, tivesse sido ultrapassado o limiar proposto pelo NIOSH (10 ppm) para o teor de “Hydrogen Cyanide” na atmosfera de trabalho. Daí a presença de doses de cianeto no sangue, superiores aos valores normais, nas trabalhadoras expostas e que regrediram para os parâmetros normais com o afastamento da exposição”.

E acrescenta: “Face aos sintomas referidos pela requerente e os doseamentos efectuados no sangue, esta não chegou a desenvolver toxicidade aguda. No entanto, de acordo com a literatura, a exposição pontual a valores superiores ao limiar NIOSH, ou a exposição contínua, durante períodos iguais ou superiores a um ano, pode levar ao aparecimento de sintomatologia a que se adaptam alguns dos sintomas do quadro referido pela técnica supra mencionada, nomeadamente: mal estar, cefaleias, astenia, náuseas, vómitos, perda de peso e sintomas das vias respiratórias”.

Conclui considerando que as faltas dadas pela reclamante deverão ser justificadas nos termos do regime dos acidentes em serviço.

6.2. Por seu turno, a Direcção Regional do Centro do Serviço de Utilização Comum dos Hospitais, na sequência das medições do teor residual do “Hidrogen Cyanide” no local de trabalho da interessada, comunicou em 28.9.92 à Directora do Laboratório em causa que foram detectados valores próximos do valor máximo do indicador NIOSH em ambiente que procurou recriar o existente antes da instalação do exaustor (ou seja, sistema de exaustão desligado e a porta da sala fechada).

6.3. O médico legista emitiu em 2.11.92 parecer clínico, de que se junta uma cópia, no sentido de que a doente, muito embora revelando melhoras, “ainda apresenta astenia, emagrecimento, falta de forças e motivação, anorexia, insónias, depressão reactiva e alterações da personalidade”, concluindo que “tudo aponta para uma relação de causalidade entre a intoxicação sofrida pela examinada e as condições em que exerceu a sua actividade específica, que no seu caso se relacionam com a exposição a cianeto de hidrogénio e metanol emanados de aparelho de contagem de glóbulos”.

6.4. Por último, o Dr… atestou, em 18.11.92, que a especificidade e a gravidade da “depressão reactiva” da doente desaconselham a sua manutenção no sector onde vinha exercendo funções (atestado médico que a reclamante entregou nos respectivos serviços de pessoal para justificação das faltas dadas por doença).

7. Cumprirá, ainda, referir que o regime das doenças profissionais dos funcionários e agentes do Estado – por força da remissão do Decreto-Lei n.º 45.004, de 27.4.63 para o art.º 8.º da Lei n.º 1942, que hoje deve entender-se feita para a Lei n.º 2127, de 3.8.65 – abrange, a par das doenças tipificadas na lei, a lesão corporal, perturbação funcional ou doença resultante de causa que actue continuadamente, desde que se prove ser consequência necessária e directa da actividade exercida e que não represente normal desgaste do organismo.

8. A fundamentação invocada pela Comissão Instaladora para justificar a não qualificação da patologia descrita “como acidente em serviço” afigura-se, a meu ver, improcedente. Sendo o regime constante do Decreto-Lei n.º 35.523, de 23.11.61 aplicável, com as necessárias adaptações, às situações de doença profissional (cfr. JOÃO ALFAIA, loc. cit., pag. 597), uma das adaptações que se revela imprescindível é a que respeita ao regime da participação escrita. Se a disposição do art.º 5.º supra referido faz sentido no caso de acidente em serviço – que se caracteriza pela ocorrência de um evento súbito – já não será razoável fixar o prazo de 48 horas para a participação de uma doença, que, por natureza, é “contraída lenta, insidiosa e progressivamente, só se manifestando quando atinge certa gravidade”. E, saliente-se, nem sempre é evidente a relação de causalidade entre a doença e o serviço, a qual requer confirmação médica. É exactamente por atender a esta especial natureza das doenças profissionais que, por exemplo, a Base XXXVIII da Lei n.º 2127, de 3.8.65, faz reportar o início do prazo de caducidade do direito de acção respeitante a prestações por doença profissional à data da comunicação formal à vítima do diagnóstico inequívoco de doença.

9. Ainda que, por hipótese, se defenda a aplicabilidade de idêntico prazo para a comunicação das doenças profissionais e dos acidentes em serviço, há que reconhecer, face ao exposto, que se este último se deve contar desde a data do acidente, aquele outro não poderá ver reportado o seu início senão à data em que o lesado teve conhecimento da doença, bem como da sua conexão com o serviço. Antes de tal momento, nada haveria, em bom rigor, para ser comunicado.

10. Ora, no caso vertente, impõe-se a conclusão de que tal prazo foi cumprido. Na verdade, a queixosa, tendo tido conhecimento, em 16.8.92 (data em que regressou de férias) do resultado da análise do teor de cianeto no sangue, comunicou, no dia seguinte, a essa Administração Regional de Saúde, que a sua análise sanguínea revela valores de cianeto anormais, solicitando a transferência de serviço e a realização de um inquérito às causas da intoxicação. Ou seja, faz a participação no dia seguinte à confirmação da sua doença.

11. É, ainda, de realçar que a Direcção do Laboratório conhecia já o problema antes da comunicação formal da queixosa, porquanto solicitou a realização de medições atmosféricas ao local de trabalho da mesma, tendo a primeira sido efectuada em 8.8.92.

12. Em face de todo o exposto, a recusa da qualificação da doença como profissional por falta da participação afigura-se nitidamente injusta, bem como, na medida em que a enfermidade era conhecida do funcionário a quem competia a elaboração do auto de notícia, atentatória do princípio da boa fé e da tutela da confiança.

13. Nessa medida, e considerando o disposto no art.º 49.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 497/88, de 30.12, e no art.º 11.º do Decreto-Lei n.º 38.523, de 23.11.51,

RECOMENDO:

a V.ª Ex.ª a aplicação às faltas dadas no período compreendido entre Setembro e Dezembro de 1992 pela ex-funcionária do regime das faltas motivadas por doença profissional, procedendo-se, consequentemente, à reposição do vencimento de exercício e à contagem do respectivo período para efeitos de antiguidade.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel