Presidente da Câmara Municipal de Almada
Processo:R-3161/95
Número:76/A/96
Data:16.10.1996
Área: A1

Assunto:AMBIENTE – RUÍDO – LOCAL DE CULTO – EDIFÍCIO HABITACIONAL – LIBERDADE RELIGIOSA – LICENÇA DE UTILIZAÇÃO – DESPEJO ADMINISTRATIVO

Sequência:Acatada

I-Exposição de Motivos

1. Na sequência de uma reclamação, foi aberto processo neste Órgão do Estado sobre a utilização dada a uma fracção autónoma do prédio sito na Av. …, n.º…, em Almada. Em concreto, os reclamantes queixavam-se da circunstância da fracção estar a ser utilizada para local de culto religioso e, igualmente, dos níveis de ruído que tal uso provocava.

2. Resulta dos documentos juntos ao processo, e designadamente das cópias da vasta correspondência que o acompanham, que a situação objecto de reclamação existe, pelo menos, desde Março de 1993. Verifica-se, da mesma forma, que, ainda em 1993, foi dado conhecimento dos factos reclamados, ao Governo Civil do Distrito de Setúbal, à Câmara Municipal de Setúbal e ao Instituto de Promoção Ambiental.

3. Tanto o Governo Civil do Distrito de Setúbal como o Instituto de Promoção Ambiental, informaram o reclamante que a resolução da questão não se enquadrava nas suas atribuições.

4. Em 08/01/96, a Câmara Municipal de Almada respondeu à Provedoria de Justiça elencando os seguintes factos relevantes:
a) A fracção autónoma correspondente ao … do prédio sito na Av. …, n.º, em Almada, encontrava-se licenciada para o uso de loja/armazém.
b) Desde início de 1992 que a Igreja Universal do Reino de Deus vinha utilizando o local para o culto religioso.
c) Embora a Igreja Universal do Reino de Deus tivesse apresentado dois pedidos para a alteração do alvará de uso (em 20/03/92 e em 26/11/93), nenhum deles foi devidamente instruído, faltando, designadamente, declarações dos condóminos autorizando a alteração de uso pretendida.
d) Tais pedidos foram, em conformidade, indeferidos.

5. Até à presente data não ocorreram modificações significativas na situação descrita, designadamente quanto à utilização licenciada e ao uso dado ao local.

6. É da competência das câmaras municipais a concessão de licenças de utilização de edifícios novos, reconstruídos, reparados, ampliados ou alterados ou das suas fracções autónomas, cujas obras tenham sido por elas licenciadas (Cfr. art.º 26.º, n.º 1, do Regime de Licenciamento das Obras Particulares).

7. Nos termos do disposto na alínea j), do n.º 2, do art.º 53.º, do Decreto-Lei n.º 100/84, de 29 de Março, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 18/91, de 12 de Junho, tal competência pertence, actualmente, ao Presidente da Câmara.

8. Porque em desacordo com o uso fixado no respectivo alvará de licença, a utilização da fracção em causa configura uma contra-ordenação, nos termos do disposto na alínea c), do n.º 1, do art.º 54.º, do Regime de Licenciamento de Obras Particulares, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 250/94, de 15 de Outubro.

9. A contra-ordenação referida, além de dar lugar ao pagamento de coima, sujeita a despejo os inquilinos e demais ocupantes das edificações ou das fracções autónomas utilizadas sem as respectivas licenças ou em desconformidade com elas (cfr. art.º 165.º, do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto n.º 38.382, de 7 de Agosto de 1951, na redacção que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 44.258, de 31 de Março de 1962).

10. A alteração do uso fixado na licença de utilização carece de aprovação da câmara municipal e das demais entidades da Administração Central que tenham tido intervenção no processo de licenciamento, nos termos do n.º 1, do art.º 30.º, do Regime de Licenciamento Municipal de Obras Particulares.

11. O requerimento do interessado na alteração deve, além de mencionar o novo uso pretendido, ser acompanhado, entre outros, de documento comprovativo da legitimidade do requerente para requerer a alteração pretendida (cfr. art.º 34.º, n.º 4).

12. Uma vez que o edifício em causa se encontra constituído em propriedade horizontal, tem aplicação o disposto no n.º 1, do art.º 1419.º, do Código Civil: “o título constitutivo da propriedade horizontal só pode ser modificado por escritura pública, havendo acordo de todos os condóminos”.

13. Verifica-se, pelo exposto, que se encontra inviabilizada a alteração do uso pretendida pela entidade reclamada – Igreja Universal do Reino de Deus -, uma vez que é notório que pelo menos o reclamante não dará o seu assentimento à aludida mudança.

14. A circunstância da fracção estar licenciada para o uso de loja/armazém significa, acrescidamente, que não dispõe das características estruturais próprias dos locais de culto, nomeadamente em termos de isolamento acústico.

15. No caso concreto, a fracção em causa não reúne as condições indispensáveis para a utilização que a Igreja Universal do Reino de Deus lhe está destinando. E, nessa conformidade, o ruído produzido para o exterior daquela parte do edifício provoca grave incomodidade, designadamente para os moradores das fracções vizinhas, como foi possível constatar em exame de medição acústica.

16. Com efeito, na sequência de pedido da Provedoria de Justiça ao Governo Civil do Distrito de Setúbal, foram realizados, nos dias 2 e 3 de Março p.p., ensaios de avaliação do grau de incomodidade sonora. Os testes, levados a cabo pela Administração Regional de Saúde de Setúbal, obtiveram o resultado de 11.9 dB (A) de grau de incomodidade.

17. Uma vez que, nos termos da alínea a), do n.º 1, do art.º 20.º, do Regulamento Geral sobre o Ruído, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 251/87, de 24 de Junho, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 292/89, de 2 de Setembro, a diferença entre o ruído perturbador e o ruído de fundo não pode exceder os 10 dB (A), o valor encontrado está acima dos níveis legalmente permitidos.

18. Por fim, refira-se que a afirmação de que o direito do urbanismo não pode limitar o exercício da liberdade religiosa – alegação da Igreja Universal do Reino de Deus perante a Câmara Municipal de Almada – não constitui fundamento válido no âmbito do presente processo.

19. Na realidade, a liberdade de culto – constitucionalmente garantida nos termos do disposto no n.º 1, do art.º 41.º, da Constituição da República Portuguesa – a qual configura o direito, de exercício individual e colectivo, de praticar actos de veneração no âmbito de uma religião, não é limitada pelo exercício de outros direitos, sejam eles de conteúdo pessoal, económico ou social.

20. Aliás, afigura-se perfeitamente compaginável a liberdade religiosa com as normas que garantem a legalidade urbanística, tanto mais que o cumprimento destas vai melhorar o exercício daquele direito.

21. Por outro lado, a prática da liberdade religiosa deve ser compatibilizada com o exercício de outros direitos fundamentais, designadamente à integridade física, à protecção da saúde e à preservação da intimidade pessoal na habitação, bem como a um ambiente são e à qualidade de vida.

22. Assim, o facto da fracção autónoma objecto de reclamação estar a ser ocupada pela Igreja Universal do Reino de Deus, e servir para manifestações de culto religioso, não dispensa o cumprimento das normas pertinentes de direito do urbanismo nem, tão pouco, permite o desrespeito por direitos de terceiros.

II-Conclusões

Pelas razões que deixei expostas e no exercício do poder que me é conferido pelo disposto no art.º 20.º, n.º1, alínea a), da Lei 9/91, de 9 de Abril, RECOMENDO:

Que a Câmara Municipal de Almada promova, nos termos do disposto no art.º 165.º, do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, o despejo da fracção autónoma do prédio sito na Av. …, n.º…, em Almada, em virtude daquela estar a ser utilizada em desconformidade com a licença de utilização.

(deliberação camarária com eficácia suspensa por ordem judicial)

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel