Ministro das Finanças
Processo:R-2845/91
Número: 85/A/96
Data:22.10.1996
Área: A4

Assunto:FUNÇÃO PÚBLICA – CONTRATO A PRAZO – TRABALHO PRESTADO NA AUSÊNCIA DE CONTRATO – SERVIÇO NÃO REMUNERADO – ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA.

Sequência: Sem resposta.

1. A Sra A e o Sr. B. apresentaram queixa nesta Provedoria de Justiça, em 30 de Agosto de 1991, alegando que não lhes foram pagas remunerações, no período compreendido entre 29 de Setembro e 27 de Novembro de 1989, apesar de terem sido mantidas ao serviço após a cessação dos contratos a prazo e até à celebração de novos contratos na Direcção-Geral da Qualidade do Ambiente (DGQA), e de haverem trabalhado, efectivamente, naquele período. Com efeito, cessaram, em 29 de Setembro, os contratos a prazo outorgados ao abrigo do Decreto-Lei n.º 2/87, de 3 de Janeiro, tendo as queixosas permanecido no serviço até 30 de Novembro, data em que foram visados os novos contratos de prestação de serviços.

2. Ouvida a D.G.Q.A., veio esta informar, a coberto do ofício n.º …, que tinha proposto ao Secretário de Estado do Ambiente e Recursos Naturais medidas tendentes a regularizar a situação extraordinária, ou seja, o pagamento de remunerações devidas entre a data da cessação dos contratos a prazo e a do visto dos novos contratos celebrados com as queixosas e outros trabalhadores, aos quais o Tribunal de Contas não admitiu a atribuição efeitos retroactivos a 30 de Setembro de 1989. As medidas regularizadoras, constantes da Informação 22/91, de 27 de Fevereiro, D.G.Q.A., foram sugeridas ao Secretário de Estado do Ambiente e Recursos Naturais nos seguintes temos:
a)”As retribuições dizem respeito ao período entre o termo final do contrato de 1987 e o visto das relações de mera prestação e devem os colaboradores considerar-se como prestadores de serviço ao abrigo do art.º 3.º do Dec-Lei n.º 211/87;
b) A situação deve enquadrar-se em regularização ao abrigo do art.º 5.º do Decreto-Lei n.º 211/87. Dispensa de concurso por isso: ou se trata de serviços encomendados a pessoas com “aptidão especialmente comprovada” em serviços anteriores ao abrigo de a) do n.º 4 do citado art.º 5.º, ou � no caso dos técnicos superiores e dos técnicos – “trata-se de obtenção de estudos” enquadrável em f) dos n.ºs 4 e 5;
c) É dispensada a celebração de contrato, porque as situações casuísticas não atingem, servidor a servidor, os limites fixados em a) e b) do n.º 1 do art.º 8.º do Dec-Lei n.º 211/79, sendo que a prestação de servidores não demorou o tempo referido em c) do mesmo n.º e Art.”.

3. Tais medidas foram propostas partindo, fundamentalmente, do reconhecimento expresso de que as queixosas “eram imprescindíveis ao serviço” a partir de 30 de Setembro, por fazerem parte de equipas incumbidas de actividades integradas em programas anuais que não podiam ser interrompidas, sob pena de se pôr em causa a capacidade de resposta da DGQA a compromissos assumidos, e de que não houve “quebra de prestação se serviços correspondentes ao período entre 30 de Setembro e a data do visto…”

4. Apesar de concordar com a solução preconizada, aquele membro do Governo solicitou, para melhor apreciação, a posição de Secretária de Estado do Orçamento. Esta viria, por sua vez, a remeter para a informação da 14ª Delegação da Direcção-Geral da Contabilidade Pública (n.º 92, de 3 de Junho de 1991), na qual se contém parecer desfavorável, atendendo, em resumo, à falta de fundamento da proposta da D.G.Q.A. nas normas invocadas do Dec-Lei n.º 2111/79, por se tratar de despesas de pessoal, e à circunstância de se pretender o “sancionamento do Ministério das Finanças para pagamentos que, em termos práticos, e na sua essência, significam a antecipação à data do visto dos efeitos de contratos visados pelo Tribunal de Contas o que, nos termos do n.º 1 do Dec-Lei n.º 146-C/80, de 22 de Maio, é claramente ilegal…”.

5. Devido à posição assumida pela Secretaria de Estado do Orçamento, a Direcção-Geral do Ambiente e Recursos Naturais considerou-se impossibilitada de proceder ao pagamento dos serviços prestados pelas queixosas, entre 30 de Setembro e 30 de Novembro de 1989, conforme consta da Informação n.º 64/95, de 23 de Maio de 1995, enviada ao meu Gabinete através do ofício 5157/95/4556, de 24 de Agosto de 1995, do Gabinete da Ministra do Ambiente e Recursos Naturais.

6. Perante a situação de impasse a que se chegou, afigura-se-me que a solução deste caso terá de ser encontrada num âmbito que se situa para além do mero enquadramento contratual e legal específico, ciente de que foi a própria Administração a manter os trabalhadores ao seu serviço por considerá-los imprescindíveis à prossecução de actividades da Direcção-Geral da Qualidade do Ambiente, entre 30 de Setembro de 1989 (por haverem cessado, em 29, os contratos a prazo outorgados ao abrigo do Dec-Lei n.º 2/87, de 3 de Janeiro) e 30 de Novembro do mesmo ano (data em que foram visados os novos contratos de prestação de serviços).

7. A Administração não poderá, razoavelmente, ignorar princípios fundamentais de direito aos quais se encontra submetida por imperativo constitucional (Constituição, artigo 266.º, n.º 2), designadamente os princípios da boa fé e do não locupletamento à custa alheia, consagrados nos artigos 334.º e 473.º do Código Civil, respectivamente. O instituto da boa fé, comum a vários ramos de direito, visa primordialmente a correcção de leis injustas ou inconvenientes e impedir à Administração comportamentos contraditórios. O não locupletamento à custa alheia obriga, por sua vez, à restituição daquilo com que alguém se locupletou a custa de terceiro sem causa justificativa.

8. No caso descrito está assente que os queixosos prestaram serviços ao Estado sob a orientação e a disciplina deste, serviços aos quais correspondia uma determinada remuneração mensal. E, não obstante os argumentos invocados contra a prossecução das relações de serviço, o certo é que a D.G.Q.A. ordenou, no alegado interesse da Administração, que os queixosos continuassem a trabalhar, até a regularização das respectivas situações. E o trabalho foi por eles realizado, cientes de que o mesmo lhes seria pago. A lei visa o cumprimento do acordo por ambos os contraentes, porque tal corresponde a imperativos e exigências de justiça comutativa e de respeito pela boa fé e segurança nas relações negociais.

9. Tendo, pois, as queixosas acatado as ordens da entidade empregadora Administração e executado os trabalhos de que foram incumbidas, não pode aquela entidade, sob pena exceder manifestamente os limites da boa fé, impor aos trabalhadores a gratuitidade das actividades por estes empreendidas profissionalmente. E nada adiantará invocar a impossibilidade de pagar por carência de base legal ou a pretexto de antecipação da eficácia do visto nos novos contratos de prestação de serviços. E isto porque são argumentos que podendo relevar do campo da gestão se mostram inoponíveis a terceiros que, de boa fé, acederem em continuar a trabalhar. Tal posição contraditória, da Administração, face às circunstâncias relatadas, fá-la-ia incorrer num intolerável “venire contra factum proprium.” E a recusa de pagamento redundaria também num enriquecimento sem causa da Administração, porque envolveria o aproveitamento por esta de todas as vantagens decorrentes da efectiva realização de trabalhos pelas queixosas sem qualquer contrapartida remuneratória, o que contraria, aliás, um dos traços caracterizadores das relações de serviço ou de emprego que é, precisamente, o carácter oneroso da prestação.

Nestes termos,RECOMENDO:

a V.ª Ex.ª que determine a reapreciação do caso, pela Direcção-Geral de Contabilidade Pública, à luz dos princípios da boa fé e do não locupletamento a custa alheia, por forma a permitir à Direcção-Geral do Ambiente do Ministério do Ambiente e Recursos Naturais o pagamento às queixosas com os correspondentes juros legais, dos trabalhos por estas efectivamente prestado entre 30 de Setembro e 30 de Novembro de 1989 àquele Ministério.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel