Ministro da Economia
Número:26/A/96
Processo:R-849/95
Data:31.01.1996
Área: A1

Assunto:URBANISMO E OBRAS – SERVIDÃO ADMINISTRATIVA DE GÁS NATURAL – PROPRIEDADE PRIVADA – PLANO DIRECTOR MUNICIPAL – PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE – PRINCÍPIO DA TUTELA DA CONFIANÇA.

Sequência: Não Acatada

I-Exposição de Motivos

A-Preliminares

1. Analisada com a melhor atenção e vivo interesse a resposta que Vossa Excelência se dignou prestar-me sobre a Recomendação n.º 81/A/95, de 17 de Agosto, relativa ao traçado de gasoduto no município de St.ª Maria da Feira, em particular no lugar de Ferral (São Miguel de Souto), não posso deixar de tomar em boa conta a determinação de Vossa Excelência em vir a obter uma solução consensual que ultrapasse a divergência de interesses em presença, particularmente sentida pelo Provedor de Justiça, quando como neste caso, são pequenos proprietários e suas famílias que se lhe dirigem para que faça valer os direitos e legítimos interesses.

2. É por considerar legítimos os interesses destes reclamantes, e como tal merecedores de protecção por parte de um Órgão investido na sua garantia e defesa, que me permito propor a Vossa Excelência um breve excurso pela fundamentação aduzida na resposta que me dirigiu.

3. Creia Vossa Excelência que ao Provedor de Justiça não é alheia a importância da obra de construção da rede de transporte e distribuição de gás natural, os benefícios que a mesma representa para a economia nacional e para o bem-estar das populações. Acredito contudo, ser possível levar a bom termo este projecto dentro de parâmetros de estrito respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e da confiança que justamente depositam na lei e nos instrumentos de planeamento territorial aprovados. De resto, julgo que, em boa parte. o êxito desta infra-estrutura passará pela relação que os proprietários de terrenos atravessados mantenham com a empresa concessionária, fundamental para os aspectos de conservação e segurança do gasoduto.

B-Da Vinculação Produzida pelo Plano Director Municipal de St.ª Maria da Feira

4. Na Recomendação anterior expus como núcleo essencial da razão que admito possuírem os impetrantes, a violação do princípio da legalidade. em especial, a desconformidade entre o traçado contido no Plano Director Municipal de Santa Maria da Feira, ratificado pelo Conselho de Ministros em 1 de Julho de 1993, e sobre o qual foi a população local chamada a pronunciar-se em inquérito público, dali colhendo relevante orientação para as utilizações doravante permitidas nas suas propriedades, e por outro lado, o traçado que veio a resultar no terreno.

5. Com efeito – e é ponto que entendo dever reacentuar – os planos directores municipais constituem fonte de vinculação para as decisões tomadas pela Administração Pública, integram a legalidade que estas devem respeitar, sendo do mesmo passo, geradores de situações jurídicas activas de que são titulares os munícipes: “o proprietário de um terreno onde as normas urbanísticas autorizam a construção de edifícios, torna-se dono de um bem muito mais valioso do que o infeliz proprietário de outro, relativamente ao qual aquelas normas traçaram como destino área de equipamentos sociais” (CAUPERS, João – Estado de Direito. Ordenamento do Território e Direito de Propriedade, Revista jurídica do Urbanismo e do Ambiente, n.º 3, 1995, Coimbra, p. 95).

6.O plano director municipal não dispõe apenas indicativamente, e se é lícito que a Administração se questione, hoje, sobre a bondade da consagração em tal instrumento de um traçado do gasoduto, o certo é que, ao dotar-se esse mesmo plano de eficácia jurídica, com a sua ratificação pelo Conselho de Ministros e publicação no jornal oficial, auto vinculou-se o Estado a respeitar e fazer respeitar as suas regras. Isto, claro está, não apenas pelo que o princípio da legalidade vale em si, mas também pela segurança que a lei confere aos cidadãos nas suas escolhas e determinações. nos seus projectos e investimentos.

7. A lei, de modo expressivo, qualifica o plano director municipal como regulamento administrativo (art.º 4.º do Decreto-lei n.º 69/90, de 2 de Março), obviando a extensas especulações doutrinarias sobre o assunto em outros países. O regulamento compõe a legalidade a que se reporta o disposto no art.º 266.º, n.º 1, da Constituição. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, ao anotarem este preceito, não hesitam, em poucas, mas suficientes palavras, em afirmá-lo : “os órgãos e agentes administrativos estão ainda vinculados aos próprios regulamentos administrativos competentes” (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed, Coimbra, 1993, p. 923).

8. O acto que aprova o traçado, não se conformando com o disposto no Plano Director Municipal de St.ª Maria da Feira não é, pois, senão ilegal, visto que não o poderia revogar e – no pressuposto que dou por correcto – de que “como regulamentos administrativos, os planos municipais são normas de conduta pública, que devem ser observadas tanto pela Administração como pelos particulares (…) a desconformidade da conduta de um órgão público com o plano municipal vigente constitui um desvalor do acto assim praticado, (…) sem que para o efeito releve tratar-se de órgão da Administração Central ou da Administração Local, pois as disposições do plano são vinculativas para todos os órgãos públicos, da mesma forma que o são para os particulares.” (OLIVEIRA, Luís Perestrelo de, Planos Municipais de Ordenamento do Território, Coimbra, 1991, pp. 74-75).

9. Sustenta Vossa Excelência que “o conflito só poderá respeitar ao chamado projecto de detalhe do traçado do gasoduto do município, único que se reveste do grau de pormenor susceptível de ser confrontado com o grau de pormenor do PDM.” Prossegue a motivação exposta, referindo que “estando executado, de pouco servirá discutir o chamado projecto base do traçado do gasoduto, muito menos pormenorizado e relativo a uma fase preliminar e já ultrapassada.”. Sem quebra de toda a consideração pela coerência entre estas conclusões, permita-me que manifeste a minha inteira discordância.

10. Na verdade, projecto base e projecto de detalhe têm de coincidir, uma vez que é o primeiro a permitir a afectação da esfera jurídica dos particulares. Resulta da legislação aplicável que o projecto base não é uma simples linha imaginária, antes constituindo um modelo macroscópico que apenas o projecto de detalhe permite revelar nos seus pormenores técnicos de construção, e assim, tornar exequível, sem embargo, porém. de caber ao primeiro o citado efeito ablatório.

11. Outro entendimento retira sentido às disposições contidas nas alíneas a) e b) do art.º 2.º do Decreto-lei n.º 232/90, de 16 de Julho, segundo as quais, a aprovação do projecto base tem como efeitos a declaração de utilidade pública da expropriação dos bens imóveis necessários à execução do gasoduto e a faculdade de constituir as servidões administrativas regidas pelo Decreto-lei n.º 11/94, de 13 de Janeiro, respectivamente.

12. Que a Administração tenha expandido a latitude permitida aos projectos de detalhe, por forma a conseguir soluções tecnicamente mais adequadas, não poderia censurar-se do estrito ponto de vista da boa execução e do mérito dos seus trabalhos. O que não deve, nem pode, é socorrer-se de uma interpretação incorrecta do quadro fixado pelo legislador, para a contrapor aos particulares, diminuindo as suas garantias, quando fundados na correcta e integral apreensão do relacionamento entre projecto base e projecto de detalhe, entre poderes do Governo, exercidos através do Ministro da Indústria e Energia e poderes do Director-Geral da Energia. Ou seja, se a lei não se adequava às necessidades de execução da obra, haveria, em tempo, que reformá-la. Este. possivelmente, foi o desiderato do Decreto-lei n.º 183/94, de 1 de Julho, ao cometer a aprovação dos projectos de detalhe ao Director-Geral da Energia, alterando o disposto nos art.ºs. 2.º, n.º 1 e 3.º do Decreto-lei n.º 232/90, de 16 de Julho. Ao deixar inalterado o disposto no n.º 4 do citado art.º 2.º, acabou por não retirar todas as consequências da modificação introduzida, já que os efeitos que anteriormente eram reconhecidos ao projecto tout court, recaíram, todos eles, no projecto base, e não no projecto de detalhe.

13. De resto, e como se viu anteriormente, da sequência do despacho MIE n.º 113/93 de 15 de Dezembro (aprovando o projecto de traçado) e do despacho MIE n.º 66/94, de 16 de Junho (aprovando o projecto de construção) resultou a declaração de utilidade pública da expropriação dos bens imóveis necessários e a faculdade de constituir servidões – tudo isto, antes da publicação do aviso DGE no Diário da República, II série, de 28-4-1995.

14. Devo dizer que, em conclusão sobre este ponto, ainda que se desse por rigorosa a autonomização dos projectos de detalhe relativamente ao projecto base, em caso algum seria de conceder que uns ou o outro pudessem colidir com planos directores municipais, atento o valor e proeminência que estes ocupam no quadro das fontes de direito.

C-Do Princípio da Proporcionalidade

15. Invoca Vossa Excelência, em desfavor de quanto é recomendado pelo Provedor de Justiça, o elevado valor da obra, o reduzido número de proprietários atingidos e a boa-fé da empresa concessionária (Transgás, SA) e da Direcção-Geral de Energia. Isto, como suporte para considerar desproporcionada a reposição da situação dos terrenos atravessados, solução contida na Recomendação n.º 81/A/95, de 17 de Agosto.

16. Não posso deixar, aqui, de manifestar a minha inteira discordância sobre este ponto. Essencialmente porque, como acabei de expor, o que se encontra em causa não é a escolha da melhor decisão segundo critérios de oportunidade e mérito. Naturalmente que toda a actividade prosseguida pela Administração Pública se encontra subordinada ao interesse público, mas há-de processar-se, porém, dentro do parâmetro do respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares. É dentro destes dois vectores concorrentes que os actos praticados pelos poderes públicos se deverão situar, como resulta da formulação constitucional do art.º 266.º, n.º 1: “A Administração Pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos”.

17. Isto não significa que os direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos não hajam de sofrer compressões, restrições e limitações por razões ditadas pelo interesse público. mas significa, isso sim, que essas mesmas compressões, restrições e limitações têm de ser legitimas, conformes à lei (cfr. art.ºs. 62.º, n.º 2 e 83.º, a titulo de exemplo).

18. É dentro da livre escolha de decisões legais que os poderes públicos deverão escolher soluções proporcionais. irrelevando o juízo sobre adequação, necessidade e razoabilidade, quando o seu conteúdo resvala na ilegalidade:
“O objectivo do acto tem de ser em si válido. Se se verificar que o objectivo não é, em si. permitido pelo direito, o acto será inválido, não se chegando a submetê-lo ao crivo do princípio da proporcionalidade” (CANAS, Vitalino, Princípio da proporcionalidade, Dicionário jurídico da Administração Pública, Vol. VI, Lisboa 1994, p. 618).

19. Ao fim e ao cabo, o órgão competente, quando situado perante um acto ou feixe de actos administrativos ilegais, encontra-se vinculado a destruir-lhe os seus efeitos, ou seja, a revogá-lo por ilegalidade: “O princípio da legalidade administrativa não só impede a Administração de praticar actos contrários ao estabelecido em normas gerais anteriores, como impõe logicamente a reparação das ilegalidades eventualmente cometidas através da anulação dos actos viciados” (ANDRADE, José Robin de, A Revogaçâo dos Actos Administrativos, Coimbra, 1969 (reimp., 1985), p. 215).

20. De resto, e mesmo que nos pudéssemos afastar desta conclusão, por hipótese, sempre haveria que adoptar uma visão menos redutora da realidade. A boa-fé da Transgás, SA, e da Direcção-Geral de Energia no procedimento não infirma nem invalida a boa-fé dos proprietários ilegalmente atingidos. Do mesmo modo, a Administração não deve deixar impressionar-se pelo diminuto número destes mesmos proprietários sem cotejar esta quantificação com a determinação do número de proprietários afectados pela solução legítima (a observância do Plano Director Municipal de St.ª Maria da Feira), e cujas expectativas posteriormente criadas no sentido de verem arredado o traçado das suas propriedades são infundadas porque assentes na prática de uma ilegalidade que a ninguém deve beneficiar.

D-Da eventualidade de uma modificação do plano director municipal

21. Concordará Vossa Excelência não ser bom princípio alterar elementos da legalidade vigente como forma de sanar vícios pretéritos. Contudo, a ter lugar uma modificação do PDM de St.ª Maria da Feira com tal propósito não deixa de comprometer-se o principio da tutela da confiança dos cidadãos na ordem jurídica. Essa medida colidiria, por certo, não apenas com o sentimento colectivo de justiça, como também com a segurança que o Direito pretende imprimir às relações entre os cidadãos e os poderes públicos num Estado de direito.

22. As expectativas legítimas depositadas pelos munícipes no Plano Director Municipal foram criadas com a ratificação deste. Se o Governo ratifica um instrumento de planeamento territorial do qual consta um traçado determinado para uma obra pública, é de crer, num Estado de direito que o mesmo Governo não vai, arbitrariamente, desvincular-se de uma opção supostamente reflectida e ponderada, comprometendo escolhas e opções dos particulares por considerar que as mesmas são de reduzido alcance.

23. Além do mais, virtuais alterações ao Plano Director Municipal implicam iniciativa da respectiva câmara municipal e aprovação pela respectiva assembleia municipal. Ora o certo é que os competentes órgãos do município de St.ª Maria da Feira não deram ainda qualquer indício de se encontrarem dispostos a assumir tal iniciativa (cfr. Jornal de Noticias, 8-7-1995, e Acta de reunião ordinária da Câmara Municipal de St.ª Maria da Feira, de 30 de Outubro p.p.).

II-Conclusão

Em face de quanto ficou exposto, na sequência da anterior Recomendação e da resposta de Vossa Excelência, de 5 de Dezembro p. p., entendo dever exercer o poder que me é conferido no art.º 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91 de 9 de Abril e assim,RECOMENDO:

1) A adopção das medidas adequadas à reposição dos terrenos ilegalmente afectados no lugar de Ferral, freguesia de São Miguel de Souto, nas condições em que se encontravam antes do inicio das obras.

2) O cumprimento do disposto no Plano Director Municipal de St.ª Maria da Feira. publicado, após ratificação pelo Conselho de Ministros através da Resolução n.º 56/93. em DR, II Série, de 19-08-1993.

O PROVEDOR DE JUSTIÇA

José Menéres Pimentel