Sua Excelência


O Ministro da Administração Interna


Praça do Comércio – Ala Oriental


1149-018 Lisboa


 


 


 


Vossa Ref.ª Vossa Comunicação Nossa Ref.ª


Proc. R-1746/10 (A5) R-2197/10 (A5)


ASSUNTO: serviço urgente de interesse público.


 


 


 


RECOMENDAÇÃO n.º 4-A/2011


— artigo 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril —


 


 


I


INTRODUÇÃO


 


A Associação de Cidadãos Auto-Mobilizados apresentou duas queixas ao Provedor de Justiça manifestando preocupação relativamente às circunstâncias em que, em regra, se processa a marcha em serviço urgente de interesse público de veículos do Estado.


Ilustrando as queixas, a associação reclamante aludiu a dois casos que foram largamente noticiados nos órgãos de comunicação social: por um lado, o acidente verificado entre dois veículos do Estado (um veículo da presidência da Assembleia da República e o carro de serviço do então secretário-geral de Administração Interna), no centro de Lisboa, do qual resultou um ferido muito grave e que terá posto em perigo outros automobilistas e transeuntes e, por outro lado, o excesso de velocidade em que alegadamente circulava a viatura oficial do Presidente da Câmara Municipal de Lisboa quando se deslocava para presenciar um evento desportivo.


Faço notar que, em tempos, também correu termos neste órgão do Estado um outro processo cujo objecto foi a actuação das entidades fiscalizadoras num caso de comprovado excesso de velocidade do veículo onde seguia o Presidente do Tribunal Constitucional, tendo a intervenção do Provedor de Justiça cessado quando se constatou que havia sido levantado auto de contra-ordenação ao condutor. Não obstante, naquela instrução foi também possível verificar que não estavam definidos, ou pelo menos interiorizados, os procedimentos a seguir pelas entidades fiscalizadoras perante situações de excesso de velocidade alegadamente resultantes de serviço urgente de interesse público .


Entendi, por isso, que a presente instrução deveria tratar da questão dos procedimentos de actuação dos agentes das entidades fiscalizadoras perante situações de excesso de velocidade ou condução perigosa envolvendo veículos do Estado.


II


DILIGÊNCIAS INSTRUTÓRIAS


No âmbito da instrução foram auscultadas a Guarda Nacional Republicana (GNR) e a Polícia de Segurança Pública (PSP) sobre as instruções transmitidas aos militares da Guarda e aos Agentes da força policial quanto aos procedimentos a adoptar no caso de verificação de excesso de velocidade ou condução perigosa envolvendo veículos do Estado.


Em resposta, a GNR remeteu cópia das instruções emanadas ao dispositivo da Guarda, que constam de uma comunicação de 5 de Março de 2009, epigrafada “Trânsito de Veículos em Serviço de Urgência (Art.º 64.º CE)”, e que, pela sua relevância, me permito transcrever na íntegra:


“1. Frequentemente, o dispositivo da Guarda depara-se com situações de veículos que transitam em missão de polícia, de prestação de socorro ou de alegado serviço urgente de interesse público, cujos condutores deixam de observar as regras e os sinais de trânsito, merecendo especial destaque a circulação em excesso de velocidade, detectada pelos radares ou cinemómetros.


2. Ora, o art.º 64.º do CE prevê e estatui que “Os condutores de veículos que transitem em missão de polícia, de prestação de socorro ou de serviço urgente de interesse público assinalando adequadamente a sua marcha podem, quando a sua missão o exigir, deixar de observar as regras e os sinais de trânsito, mas devem respeitar as ordens dos agentes reguladores do trânsito”.


3. Neste contexto, e visando garantir a necessária uniformidade de procedimentos no tratamento desta matéria, as Unidades da Guarda, quando confrontadas com situações referidas em 1., devem seguir a seguinte orientação, conforme esteja em causa:


a. Veículos em missão de polícia (GNR, PSP, PJ, SEF, ASAE, etc);


b. Veículos em missão de prestação de socorro (INEM, Bombeiros, Cruz Vermelha, etc);


c. Veículos em missão de serviço urgente de interesse público (veículos do Estado ao serviço dos Ministérios, Governos Civis, Autarquias, etc).


4. Em qualquer dos casos referidos nas alíneas do número anterior, as subunidades limitam-se a elaborar a respectiva participação dos factos e remetem-na à respectiva Unidade, acompanhada do correspondente registo fotográfico, quando for o caso.


5. A Unidade, logo que recebida a participação, oficia a entidade proprietária/detentora do veículo, visando apurar se o caso concreto é passível de se enquadrar no conceito de ‘missão de polícia ou de prestação de socorro’.


6. Após conclusão do processo é elaborada informação a ser submetida a despacho do Comandante da Unidade, com proposta de arquivo nos termos do Art.º 64.º do Código da Estrada, ou de levantamento do respectivo auto de contra-ordenação, nos termos do Art.º 170.º do mesmo Código, fazendo-se notar que os veículos de polícia, por força da especificidade da sua missão, nem sempre podem/devem assinalar a sua marcha.


7. Relativamente aos casos em que é alegada situação de “serviço urgente de interesse público” (3 c.), enquanto as entidades competentes não se pronunciarem quanto ao alcance desta expressão, deve proceder-se de acordo com o disposto no Art. 170.º do CE, informando-se a entidade proprietária/detentora do veículo que, querendo, pode apresentar defesa junto da ANSR”.


Já a PSP esclareceu que “(…) os elementos policiais identificam os infractores e/ou o veículo consoante os casos e as circunstâncias em que ocorrem. Caso não seja possível a identificação, ou as circunstâncias não o permitam, é oficiada a entidade de quem depende o funcionário aguardando-se a devida justificação. Em ambas as situações, caso não seja justificado o serviço urgente de interesse público é levantado o respectivo auto de contra-ordenação, caso seja enviada justificação é a mesma remetida para a ANSR” [Autoridade Nacional para a Segurança Rodoviária].


Por outro lado, a GNR e a PSP, mas também a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR), foram ouvidas sobre os dados estatísticos dos últimos dez anos relativos a processos de contra-ordenação instaurados por excesso de velocidade em que tenha sido invocado ou suscitado o serviço urgente de interesse público.


A GNR informou que, entre 26 de Março de 2005 e 31 de Julho de 2010, foram registados 161 processos de contra-ordenação motivados por excesso de velocidade, nos quais foi invocado ou suscitado serviço urgente de interesse público, nos termos do disposto no artigo 64.º do Código da Estrada (CE). A PSP não forneceu quaisquer elementos estatísticos, encaminhando este órgão do Estado para a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR); e esta, por sua vez, respondeu esclarecendo que “as defesas em processos de contra-ordenação rodoviária não têm (…) qualquer tratamento estatístico com referência aos motivos da apresentação de defesa”, não sendo possível prestar informações.


III


EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS


O Plano Nacional de Prevenção Rodoviária, de 2003, afirmava que “a sinistralidade rodoviária deve ser considerada (…) um grave problema de saúde pública, com as inerentes consequências sociais e económicas”, ao qual deveria ser “conferido um estatuto prioritário na agenda política”.


A Resolução do Conselho de Ministros n.º 54/2009, de 26 de Junho, que aprovou a Estratégia Nacional de Segurança Rodoviária (ENSR) para o período 2008–2015, caracteriza “a sinistralidade rodoviária [como] um flagelo inaceitável, pelas suas consequências sociais e económicas”, importando registar, ainda, que um dos objectivos operacionais do Plano é o controlo da velocidade. No que se refere à metodologia, afirma-se que “a eficácia na concepção, organização e implementação da ENSR só poderá ser atingida [com] uma coordenação forte e com elevado envolvimento político ao mais alto nível do Governo e do Estado”.


A Autoridade Nacional para a Segurança Rodoviária (ANSR) é a entidade responsável pela ENSR 2008-2015.


No que se refere, em concreto, à matéria da circulação em serviço urgente de interesse público note-se que se encontra regulada no artigo 64.º do CE , cujo n.º 1 dispõe que “os condutores de veículos que transitem em missão de polícia, de prestação de socorro ou de serviço urgente de interesse público assinalando adequadamente a sua marcha podem, quando a sua missão o exigir, deixar de observar as regras e os sinais de trânsito, mas devem respeitar as ordens dos agentes reguladores do trânsito”. Como é bom de ver, a citada disposição legal não define o que é serviço urgente de interesse público, pelo que importa buscar o sentido da expressão a partir do seu elemento literal: o serviço que é urgente — adjectivo uniforme do latim urgente-, «id.», part. pres. de urgére, «que urge», «iminente», «indispensável» — resulta de o interesse ser público — adjectivo do latim publìcu-, «lugar público» —.


Assim, o serviço urgente de interesse público é a marcha dos veículos do Estado que se caracteriza por dois elementos:


— por um lado, a inadiabilidade do acto ou decisão que justifica a utilização do veículo do Estado;


— por outro lado, a sua conexão com o serviço que concretiza as atribuições públicas de decisor público.


Daqui resulta, portanto, que nem todo o serviço público justifica a inobservância das regras e dos sinais de trânsito; apenas, e só, o que é inadiável e conexo com o serviço que concretiza as atribuições públicas de decisor público — ideia que é reforçada pela circunstância de a disposição em causa estipular como pressuposto para o serviço urgente de interesse público a sua necessidade, como resulta da expressão ‘quando a sua missão o exigir’.


Acrescidamente, o CE estabelece uma exigência ao serviço urgente de interesse público: a sinalização da marcha, que advém da expressão ‘assinalando adequadamente a sua marcha’. Este aspecto é desenvolvido nos n.os 3 e 5, podendo a sinalização ser feita através da utilização dos avisadores sonoros e luminosos especiais ou, caso os veículos não estejam equipados com estes dispositivos, utilizando alternadamente os máximos com os médios, durante a noite, ou utilizando repetidamente os sinais sonoros, durante o dia. Pelo contrário, é proibida a utilização destes sinais quando os veículos não transitem em missão urgente.


Quanto ao regime, propriamente dito, do serviço urgente de interesse público consta dos n.os 2 e 6 do artigo 64.º do CE. Em suma, quando em serviço urgente de interesse público, os condutores podem deixar de observar as regras e os sinais de trânsito, com as seguintes limitações:


— devem respeitar as ordens dos agentes reguladores do trânsito;


— nunca podem pôr em perigo os demais utentes da via;


— são obrigados a suspender a marcha perante o sinal de paragem obrigatória em cruzamento ou entroncamento;


— são obrigados a suspender a marcha perante o sinal luminoso vermelho de regulação do trânsito, mas podem prosseguir, sem esperar que a sinalização mude, depois de tomadas as devidas precauções.


Uma nota final. Afigura-se-me que, em nome da transparência, tanto as entidades fiscalizadoras GNR e PSP como, também, a Autoridade Nacional para a Segurança Rodoviária (ANSR), a quem compete o processamento das contra-ordenações, deveriam organizar e manter actualizado um registo de entidades do Estado cujos veículos e condutores foram fiscalizados e invocaram ou suscitaram o serviço urgente de interesse público, nos termos do disposto no artigo 64.º do CE — e pondero, igualmente, a conveniência da divulgação anual dos dados registados.


IV


CONCLUSÕES


Dos factos computados na presente instrução e da leitura que faço do artigo 64.º do CE alcanço as seguintes conclusões:


1.ª Com excepção da GNR, as entidades fiscalizadoras não dispõem de dados históricos sobre o número de situações enquadráveis no artigo 64.º do CE, o que torna muito difícil, se não impossível, a compreensão cabal da situação efectivamente verificada.


2.ª A ausência de registos, especialmente por parte da Autoridade Nacional para a Segurança Rodoviária (ANSR), denota uma deficiente preparação para o exercício das relevantes competências ao nível do planeamento e coordenação de apoio à política do Governo em matéria de segurança rodoviária.


3.ª O conceito e o regime de serviço urgente de interesse público estão suficientemente densificados, resultando do artigo 64.º do CE que o serviço urgente de interesse público é a marcha dos veículos do Estado que se caracteriza pela inadiabilidade do acto ou decisão que justifica a utilização do veículo do Estado e pela sua conexão com o serviço que concretiza as atribuições públicas de decisor público.


4.ª No que se refere aos procedimentos de fiscalização e às instruções eventualmente transmitidas aos Militares da GNR e aos Agentes da PSP sobre os procedimentos a adoptar no caso de verificação de excesso de velocidade ou condução perigosa envolvendo veículos do Estado, a situação não é unívoca, concluindo-se que:


— a PSP aprecia os casos de serviço urgente de interesse público em fase anterior ao levantamento do auto de contra-ordenação, o que não se afigura correcto.


— a GNR levanta autos em todas as situações, remetendo para a Autoridade Nacional para a Segurança Rodoviária (ANSR) a análise da verificação, ou não, dos pressupostos inerentes ao serviço urgente de interesse público, a fazer na fase de apreciação da defesa. Esta é a actuação que se me afigura devida.


5.ª Com efeito, o procedimento da GNR é o que se compagina com o disposto no n.º 1 do artigo 170.º do CE , conjugado com o n.º 1 do artigo 169.º do CE .


6.ª Cabe em exclusivo à Autoridade Nacional para a Segurança Rodoviária (ANSR) a apreciação dos casos de serviço urgente de interesse público, a fazer no âmbito da instrução dos processos de contra-ordenação. Diferentemente, às forças policiais competente levantar os autos de contra-ordenação rodoviária sempre que presenciem situações de inobservância das regras e os sinais de trânsito .


7.ª Se entenderem, os arguidos apresentarão defesa, nos termos fixados no CE, devendo sublinhar-se, contudo, que não bastará a mera invocação da circulação em serviço urgente de interesse público: haverá que comprovar a indispensabilidade do comportamento contrário ao CE para a salvaguarda do interesse público, nos termos que atrás referi.


8.ª Finalmente, afigura-se-me que a GNR, a PSP e a Autoridade Nacional para a Segurança Rodoviária (ANSR) devem organizar e manter actualizado um registo de entidades do Estado cujos veículos e condutores foram fiscalizados e invocaram ou suscitaram o serviço urgente de interesse público, nos termos do disposto no artigo 64.º do CE, cujo conteúdo deverá ser anualmente divulgado.


V


RECOMENDAÇÕES


As forças de segurança e, bem assim, a Autoridade Nacional para a Segurança Rodoviária (ANSR), são serviços centrais de natureza operacional que integram a administração directa do Estado, no âmbito do Ministério da Administração Interna (artigo 4.º, n.º 1, da Lei Orgânica do Ministério da Administração Interna ) que, enquanto departamento do Governo responsável pela formulação, coordenação, execução e avaliação da política de segurança rodoviária [artigo 2.º, alínea i), da mesma Lei Orgânica], pode difundir orientações aos serviços que tutela.


Assim sendo, e no uso do poder que me é conferido pelo disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 20.º do Estatuto do Provedor de Justiça, recomendo a Vossa Excelência que pondere transmitir orientações:


A. À PSP, no sentido de que, no desempenho das funções de fiscalização rodoviária, os respectivos Agentes levantem autos de contra-ordenação sempre que presenciem contra-ordenações rodoviárias, cometendo para a Autoridade Nacional para a Segurança Rodoviária (ANSR) a análise da verificação, ou não, dos pressupostos inerentes ao serviço urgente de interesse público, a fazer na fase de apreciação das defesas;


B. À Autoridade Nacional para a Segurança Rodoviária, no sentido de que, na fase de apreciação das defesas, faça a análise da verificação, ou não, dos pressupostos inerentes ao serviço urgente de interesse público;


C. à GNR, à PSP e à Autoridade Nacional para a Segurança Rodoviária, no sentido de que organizem e mantenham actualizados registos de entidades do Estado cujos veículos e condutores foram fiscalizados e invocaram ou suscitaram o serviço urgente de interesse público, nos termos do disposto no artigo 64.º do CE, e que divulguem anualmente tais registos.


 


Permito-me lembrar a Vossa Excelência a circunstância da formulação da presente Recomendação não dispensar, nos termos do disposto nos n.os 2 e 3 do artigo 38.º do Estatuto do Provedor de Justiça, a comunicação a este órgão do Estado, em 60 dias, da posição que vier a ser assumida em face das respectivas conclusões.


Com os melhores cumprimentos,


 


 


O PROVEDOR DE JUSTIÇA


 


(Alfredo José de Sousa)