Número: 8/B/2009


Data: 14-12-2009


Entidade visada: Reitor da Universidade Técnica de Lisboa


Assunto: Tabela de emolumentos. Incumprimento dos prazos de pagamento de propinas. Juros de mora


Processo: R-4704/09 (A6)


 


Recomendação n.º 8 /B/2009


[art.º 20.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril]


 


1. Foi recebida uma exposição no interesse do aluno D., do Curso de Mestrado em Medicina Veterinária, ministrado pela Faculdade de Medicina Veterinária (FMV) da Universidade Técnica de Lisboa (UTL), a respeito de montante de que o referido aluno será devedor, pela aplicação da Tabela de emolumentos dessa instituição de ensino superior – para a qual remete expressamente o “Regulamento de execução da legislação respeitante a pagamento de propinas no Curso de Medicina Veterinária, da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade Técnica de Lisboa” –, no que especificamente concerne ao não cumprimento dos prazos de pagamento da propina referente ao ano lectivo de 2008/2009.


Permita-me, Senhor Reitor, que me exima de reproduzir, com exaustão, todos os pormenores da situação relatada, atento o conhecimento que seguramente já terá a esse respeito, objecto que foi igualmente de exposição apresentada junto de V.ª Ex.ª, com data de 21 de Agosto p.p., no interesse do aluno visado.


2. Assim sendo, analisados os termos da exposição a que me reporto, não pode deixar de merecer a minha mais viva atenção a referida Tabela de emolumentos, constante do Despacho n.º 16 494/2002 (2.ª série) 1, concretamente no que tange ao incumprimento dos prazos de pagamento (ponto n.º 8), cujo teor aqui deixo reproduzido:


 



Designação Em euros


8 – Multas pelo não cumprimento dos prazos de pagamento:


8.1 – Até 5 dias úteis………………………………………. 10% do valor em dívida


8.2 – De 5 a 10 dias úteis………………………………… 15% do valor em dívida


8.3 – De 11 a 15 dias úteis………………………………. 25% do valor em dívida


8.4 – De 16 a 30 dias úteis………………………………. 40% do valor em dívida


8.5 – Por cada dia para além dos 30 dias…………… 5% do valor em dívida


 


De igual modo, tendo entrado em vigor, em 15 de Agosto último, a nova Tabela de emolumentos da UTL, firmada em Despacho já com a chancela de V.ª Ex.ª 2, verifico que a mesma incorpora solução idêntica em matéria de incumprimento dos prazos de pagamento, reproduzindo, com rigorosa fidelidade, os termos da Tabela antecessora, agora sob o ponto n.º 15, de símil epígrafe (n.os 15.1 a 15.5).


3. Neste enquadramento e observando as percentagens sobre o valor em dívida, que vêm definidas na Tabela emolumentar dessa Universidade, não considero afigurar-se defensável a respectiva conformidade com a lei.


Com efeito, sobre as consequências do não pagamento da propina, dispõe o art.º 29.º da Lei n.º 37/2003, de 22 de Agosto, diploma que estabelece as bases do financiamento do ensino superior 3. O normativo em questão prescreve que aquele incumprimento implica «a nulidade de todos os actos curriculares praticados no ano lectivo a que o incumprimento da obrigação se reporta» (alínea a)), bem como a «suspensão da matrícula e da inscrição anual, com a privação do direito de acesso aos apoios sociais até à regularização dos débitos, acrescidos dos respectivos juros, no mesmo ano lectivo em que ocorreu o incumprimento da obrigação» (alínea b), sublinhado meu).


A esta luz e em matéria de penalização pecuniária pelo não pagamento atempado de propinas, encontra-se hoje postergado um regime de responsabilidade contra-ordenacional, como o outrora vertido na Lei n.º 20/92, de 14 de Agosto (normas relativas ao sistema de propinas), muito menos se admitindo a aplicação de penas de multa, actualmente circunscritas à esfera penal.


Não obstante, se, em face do preceituado no citado art.º 29.º da Lei n.º 37/2003, não se discute a legitimidade do recebimento de juros por parte de uma instituição de ensino pelo não pagamento de propinas no prazo devido, já dúvidas podem sobrevir pela carência, na lei, da determinação expressa de uma taxa de juros.


Creio, em todo o caso, que uma interpretação sistemática pode revelar-se útil nessa tarefa de dissipação das incertezas a que aludimos. Nesse sentido, atente-se na solução normativa constante do art.º 31.º da Lei n.º 37/2003, que, para caso mais grave de incumprimento, revelado por uma actuação fraudulenta, apontada à obtenção dos apoios sociais legalmente previstos, faz recair sobre os infractores o dever de reposição das verbas indevidamente recebidas, tão-somente «acrescidas de juros de mora calculados à taxa legal em vigor» (sublinhado meu).


Ora, no momento presente, a taxa anual dos juros legais e dos estipulados sem determinação de taxa ou quantitativo, encontra-se fixada, como V.ª Ex.ª seguramente não desconhecerá, em 4%, por força da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril, emanada ao abrigo do disposto no art.º 559.º, n.º 1, do Código Civil 4.


Nestes termos e dado o exposto, não se impondo ao aluno, em caso de fraude, uma taxa mais gravosa do que a mencionada taxa de juros legais, por maioria de razão há-de aceitar-se que a simples mora do aluno no cumprimento da sua obrigação pecuniária seja reparada mediante similar taxa de remuneração, sob pena de uma inversão valorativa dos comportamentos transgressores em causa, que a consciência ético-jurídica não admite 5.


Legitimamente, poder-se-á questionar qual o efeito dissuasor de semelhante solução normativa. Seja como for, para além de acreditar que, aos olhos dos alunos do ensino superior, é a regularidade da sua situação académica a que se apresenta no seu melhor interesse – tanto mais quanto é certo que, dependendo, na sua esmagadora maioria, economicamente de terceiros, uma situação de mora pode, afinal, na prática, não lhes ser pessoalmente assacável, hipótese esta que se amplifica numa conjuntura de maiores dificuldades financeiras sentidas no seio dos agregados familiares –, importa, outrossim, não perder de vista o significado juridicamente relevante, no plano civil, do recebimento de juros de mora, de sentido indemnizatório ou ressarcimento pelo atraso da prestação, que não de sanção propriamente dita.


4. Direccionando, agora, a presente análise para as soluções normativas concretamente vertidas na Tabela de emolumentos da Universidade a cujo governo V.ª Ex.ª preside, na sua parte relevante para a apreciação do caso trazido à minha atenção, permita-me registar, em primeiro lugar, ainda que num plano meramente formal, a impropriedade da epígrafe “multas pelo não cumprimento dos prazos de pagamento”, a que ali se alude, atentas as considerações já anteriormente tecidas. Concedo, como é óbvio, que a mesma não terá expressado, afinal, nos termos mais adequados, aquele que será o pensamento normativo do seu autor, desintencionado da imposição aos alunos inadimplentes de verdadeiras penas pecuniárias, na acepção rigorosa do termo.


De resto, a letra das normas em questão revela, com segurança, um pensamento normativo dirigido, ao invés, à determinação de juros de mora, com o sentido indemnizatório que lhe adstringe a lei civil, ao fixar taxas distintas, com referência ao montante em dívida e variáveis em função da duração temporal do incumprimento.


Contudo, se não se contesta a legitimidade do recebimento, pela UTL, de juros moratórios devidos pelo não pagamento de propinas nos prazos fixados para o respectivo vencimento, já as percentagens sobre o valor em dívida, definidas na respectiva Tabela de emolumentos, se afiguram absolutamente desmesuradas, no seu cotejo com a taxa anual dos juros legais e dos estipulados sem determinação de taxa ou quantitativo, a qual se encontra fixada, como já mencionado, em 4%.


Com efeito, evidencia-se, a título meramente ilustrativo, que um incumprimento dos prazos de pagamento que, por hipótese, se prolongasse por 12 meses franquearia, com base nos mecanismos previstos na Tabela emolumentar em causa, a aplicação de uma taxa de juro de 1700%, num resultado cujo excesso resulta por demais evidente, em situação que, a ocorrer na esfera civil, conduziria certamente à aplicação do disposto nos art.os 559.º-A e 1146.º do Código Civil, sobre juros usurários.


Neste contexto, por atendível que fosse outro entendimento sobre a matéria que nos ocupa, nunca o mesmo admitiria soluções como as que constam da Tabela de emolumentos da UTL (seja na versão de 2002, no seu ponto n.º 8, seja na de 2009, nos pontos n.os 15.1 a 15.5), que, pelo seu carácter absolutamente desproporcionado, se apresentam em clara violação da lei, informada pelos princípios da boa fé, da justiça e da proporcionalidade e cujo respeito é também devido pelas instituições de ensino superior e, neste caso concreto, pela UTL e as suas unidades orgânicas.


5. Razão pela qual, recomendo a V.ª Ex.ª, ao abrigo do disposto no art.º 20.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril,


que, em matéria de efeitos do não cumprimento dos prazos de pagamento de propinas, sejam adoptadas soluções normativas distintas das vertidas na Tabela de emolumentos da UTL, devendo desde já ser corrigidas as situações pendentes, aplicando-se a taxa de juro legal, fixada na Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.


Mais se informa que da presente Recomendação será dado conhecimento ao Exm.º Senhor Presidente da Faculdade de Medicina Veterinária.


Na expectativa do que o que acima fica exposto venha a merecer o acolhimento que se afigura desejável e urgente, atentos os montantes em causa e a influência na normal actividade académica do(s) interessado(s), muito agradeço a V.ª Ex.ª que oportunamente me transmita o que houver por conveniente a respeito do teor da presente Recomendação.


O Provedor de Justiça


Alfredo José de Sousa


 


___________


1 Publicado no Diário da República, II Série, n.º 170, de 25 de Julho de 2002.


2 Despacho n.º 18908/2009, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 157, de 14 de Agosto de 2009.


3 Com as modificações decorrentes quer da Lei n.º 49/2005, de 30 de Agosto, quer da Lei n.º 62/2007, de 10 de Setembro.


4 Note-se que a taxa de juro legal é igualmente tomada como valor de referência para os juros compensatórios por dívidas fiscais (art.º 35.º, n.º 10, da Lei Geral Tributária).


5 Não sendo a primeira vez que este Órgão do Estado se pronuncia sobre a temática em apreço, a defesa do entendimento de que a Lei n.º 37/2003, ao dispor sobre a consequência do não pagamento da propina, aponta para a taxa de juro legal, recobra já consolidada expressão. V., a título exemplificativo, PROVEDOR DE JUSTIÇA, Relatório à Assembleia da República – 2006, Vol. II, Lisboa, 2007, pp. 903-905 [Proc. R – 1445/06], e PROVEDOR DE JUSTIÇA, Relatório à Assembleia da República – 2007, Vol. II, Lisboa, 2008, pp. 765-770 [Proc. R – 3347/07]. Até agora, todas as intervenções têm obtido acolhimento junto das instituições de ensino superior em causa.