Número: 5/B/2009


Data: 29-05-2009


Entidade visada: Presidente da Câmara Municipal do Funchal


Assunto: Regulamento sobre Propaganda.


Processo: R-4862/08 (A6)


 


Recomendação n.º 5/B/2009


[art.º 20.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril]


1. O Regulamento sobre Propaganda em vigor no Município do Funchal, publicitado através do Edital n.º 138/94 (doravante Regulamento), pretende dar execução ao disposto na Lei n.º 97/88, de 17 de Agosto, diploma que regula a afixação e inscrição de mensagens de publicidade e propaganda, alterado pela Lei n.º 23/2000, de 23 de Agosto.


A questão que motiva esta minha iniciativa junto de V.ª Ex.ª prende-se com a aplicação, na prática, da comunicação prévia, por parte dos responsáveis pela afixação de propaganda, a que se refere o art.º 2.º, n.º 1, do Regulamento.


Importa, antes de mais, referir que não duvido da bondade da referida solução, que terá teoricamente em vista uma repartição tão equitativa quanto possível dos locais de afixação pelos interessados, e a possibilidade de ser feito um controlo mais rigoroso dos prazos máximos previstos para essa afixação. Deste modo, a comunicação em causa terá teoricamente o objectivo de proteger os beneficiários da actividade de propaganda, não só permitindo que o espaço seja mais justamente repartido, como possibilitando um controlo mais eficaz de eventuais incumprimentos dos prazos regulamentares ou acordados para a remoção de mensagens.


Não estando a referida comunicação prévia prevista na mencionada Lei n.º 97/88, a sua admissibilidade face designadamente à Constituição da República Portuguesa, nos termos à frente definidos, dependerá, no entanto, da forma como tal exigência é aplicada na prática, e muito concretamente do tipo de efeitos que o seu eventual não cumprimento poderá acarretar.


Como ideia geral, desde logo deverá referir-se que a comunicação prévia prevista no Regulamento não poderá constituir, na prática, nem uma espécie de licenciamento ou autorização prévia para a afixação de mensagens de propaganda, nem o fundamento para a eventual remoção das mensagens afixadas sem o seu cumprimento. A solução contrária, conforme adiante se justificará, revelar-se-ia manifestamente inconstitucional.


2. É assente, na jurisprudência do Tribunal Constitucional, a caracterização jurídico-constitucional da propaganda como manifestação da liberdade de expressão. Chegando a esta mesma conclusão, e invocando arestos anteriores, diz-se, por exemplo, no Acórdão n.º 258/2006 daquele Tribunal, o seguinte:


“O Tribunal Constitucional foi, desde o início da sua existência, confrontado com a questão de saber se, e em que medida, a liberdade de propaganda, designadamente político-partidária, estaria garantida pelo artigo 37.º da Constituição, preceito respeitante à liberdade de expressão. Ora, da jurisprudência então produzida resulta inquestionável, e como tal tem sido repetidamente afirmado (…), não só uma determinada caracterização do direito de liberdade de expressão, mas também que a propaganda (nomeadamente, mas não apenas, a propaganda política), é uma forma de expressão do pensamento abrangida pelo âmbito de protecção daquele preceito”.


Debruçando-se sobre o mesmo dispositivo da Lei Fundamental, afirma o Tribunal Constitucional, desta feita no seu Acórdão n.º 636/95 :


“Incluindo-se no domínio especialmente protegido dos direitos, liberdades e garantias enunciados no título II, este direito apresenta uma dimensão essencial de defesa ou liberdade negativa: é, desde logo, um direito ao não impedimento de acções, uma posição subjectiva fundamental que reclama espaços de decisão livres de interferências, estaduais ou privadas.


Esta natureza de liberdade que, em primeira linha, caracteriza o direito e que vai ligada à sua dimensão individual-subjectiva não afasta definitivamente o papel do Estado na promoção de condições que o tornem efectivo”.


O sentido e alcance das normas relevantes da mencionada Lei n.º 97/88 foram igualmente já objecto de ponderação e de decisão por parte do Tribunal Constitucional, precisamente em concretização da referida jurisprudência.


No já mencionado Acórdão n.º 636/95, a propósito do teor do art.º 3.º, n.º 1, desta Lei – que dispõe no sentido de que “a afixação ou inscrição de mensagens de propaganda é garantida, na área de cada município, nos espaços e lugares públicos necessariamente disponibilizados para o efeito pelas câmaras municipais” –, e fundando-se a questão da constitucionalidade numa interpretação que atribuiria à norma o efeito de viabilizar a circunscrição a esses lugares da prática de acções propagandísticas, o Tribunal Constitucional foi claro:


“Do enunciado da norma do artigo 3.º, n.º 1, aqui em apreço, e do seu contexto de sentido, não pode derivar-se um qualquer sentido de limitação do exercício da liberdade de propaganda constitucionalmente consagrada. E não pode porque essa norma está aí tão-só a desenvolver a funcionalidade de imposição de um dever às câmaras municipais. Este dever de disponibilização de espaços e lugares públicos para afixação ou inscrição de mensagens de propaganda – que radica, afinal, na dimensão institucional desta liberdade e na corresponsabilização das entidades públicas na promoção do seu exercício – não está, por qualquer modo, a diminuir a extensão objectiva do direito.


(…)


A norma do artigo 3.º, n.º 1, não vem perturbar o domínio de protecção do direito fundamental de liberdade de propaganda. Ao impor às câmaras municipais um dever de disponibilização de espaços e lugares públicos para o exercício desse direito, a mesma norma está tão-só a abrir possibilidades de comportamento no quadro de uma posição livre dos sujeitos”.


Ainda neste mesmo aresto, desta feita analisando a norma da Lei n.º 97/88 que enuncia um conjunto de “critérios a estabelecer no licenciamento da publicidade comercial assim como [n]o exercício das actividades de propaganda” (art.º 4.º, n.º 1), o Tribunal Constitucional pronunciou-se da seguinte forma:


“Neste plano da propaganda, o artigo 4.º não se dirige às câmaras municipais nem, pois, a uma sua qualquer actividade regulamentar. O que a lei aí faz é ordenar por objectivos a actuação de diferentes entidades: das câmaras municipais, quanto aos critérios de licenciamento da publicidade [o que não está em questão] e dos sujeitos privados, quanto ao exercício da propaganda”.


3. O Tribunal Constitucional apreciou também já, em sede de fiscalização abstracta, normas de regulamentos ou deliberações municipais que restringiam a afixação de mensagens de propaganda a áreas previamente determinadas e, nalguns casos, impunham simultaneamente a obtenção de uma autorização prévia para a afixação dessas mensagens, sempre decidindo no sentido da respectiva inconstitucionalidade, por razões de índole orgânico-formal e material.


Fê-lo designadamente nos Acórdãos n.ºs 74/84, de 10 de Julho de 1984, 248/86, de 15 de Julho de 1986, e 307/88, de 21 de Dezembro de 1988 .


Assim, pode ler-se desde logo no Acórdão n.º 74/84, quanto à questão da inconstitucionalidade orgânica, o que segue:


“Esse poder regulamentar [das autarquias locais] tem, porém, como limite o domínio reservado à lei. Aí, só é permitida a intervenção do legislador ou a do Governo quando munido de autorização legislativa. O regulamento – designadamente o dos órgãos autárquicos – só é, aí, permitido, quando for de simples execução.


(…)


Os órgãos municipais autárquicos (…), ao intervir no domínio da liberdade de expressão de pensamento – e, justamente, sujeitando a prévia autorização da Câmara Municipal a propaganda de carácter político-partidário, sempre que ela seja feita fora dos locais indicados [em norma da postura em causa] –, não se limitaram a regular pormenores de execução.


(…)


O referido artigo (…) viola o artigo 167.º, alínea c), da Constituição [hoje, art.º 165.º, n.º 1, alínea b)]. É, por isso, inconstitucional, uma vez que os órgãos municipais autárquicos (…) não tinham competência para o editar e, fazendo-o, invadiram a área de competência da Assembleia da República – o domínio da reserva de lei”.


O Tribunal Constitucional decide ainda, no mesmo aresto, no sentido da inconstitucionalidade material das mesmas normas:


“No presente caso, os órgãos municipais autárquicos vieram estabelecer, na norma posta em causa, que certos modos de exercício da liberdade de expressão de pensamento – justamente, os relativos à actividade de propaganda político-partidária, quando feita fora dos locais a tanto destinados (…) – ficam dependentes de autorização camarária.


Mas, desta maneira veio-se restringir a liberdade de expressão de pensamento, consagrada no artigo 37.º, n.º 1.


A exigência de uma autorização administrativa para o exercício desse direito vai além do simples condicionamento, que seria ainda – ao menos para certa doutrina (…) – suportável pelo conceito de regulamentação do direito. O que se faz é já comprimir o conteúdo desse mesmo direito”.


Aplicando, ao caso em análise, o regime constitucional, formal e material, constante das normas do art.º 18.º, n.ºs 2 e 3, da Lei Fundamental, legitimador de eventuais restrições aos direitos, liberdades e garantias, e concluindo no sentido de que as restrições operadas pelo regulamento municipal em causa não eram legítimas, acrescenta ainda aquele Tribunal, no mesmo Acórdão:


“Era preciso – para além de outros requisitos que, aqui, não interessa considerar – que a restrição constasse de lei parlamentar ou parlamentarmente autorizada (artigo 18.º, n.º 2) – o que não acontece, como já se viu; como essencial era também que ela tivesse expressa autorização constitucional (artigo 18.º, n.º 2); e ainda que revestisse carácter geral e abstracto (artigo 18.º, n.º 3) e se limitasse ao necessário para salvaguardar aqueles valores estéticos, paisagísticos e de salubridade [que pretendiam justificar, no caso, a autorização prévia e a delimitação dos locais em que a afixação de propaganda não era proibida] (artigo 18.º, n.º 2).


(…)


A exigência de uma autorização prévia retira logo à restrição todo o carácter de generalidade, uma vez que a mesma terá ou não lugar, conforme a autorização que a condiciona seja concedida ou denegada. Ao que acresce que, não se achando, sequer, a Câmara vinculada a qualquer fim determinado de ordem pública, para recusar a autorização, actuando no exercício de um poder discricionário, e podendo, assim, consentir ou impedir, caso a caso, a manifestação do pensamento, então, com uma possibilidade de restrição assim, abre-se a porta ao arbítrio, indo-se muito além de qualquer ideia de necessidade. (…) A restrição é, assim, constitucionalmente ilegítima, havendo, pois, violação do artigo 37.º, n.º 1, da Constituição”.


Finalmente, ainda no mesmo Acórdão, rematou o Tribunal Constitucional desta forma:


“Não se diga ex adverso que não houve, no caso, o propósito de restringir o direito à liberdade de expressão de pensamento, sim e tão-só o de criar meios que permitam à autarquia desincumbir-se das suas obrigações no tocante à defesa daqueles valores paisagísticos, estéticos e de salubridade”.


É que, ‘leis’ restritivas não são apenas aquelas que se dirijam especialmente à restrição dos direitos, liberdades e garantias; são-no, antes – repetindo uma ideia já antes exposta –, todas as que afectam o conteúdo desses direitos, liberdades e garantias.


(…)


A autorização camarária aqui questionada, porque prévia e com os efeitos apontados, viola também o artigo 37.º, n.º 2, que preceitua que o “exercício [da liberdade de informação] não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura”.


Pois é, de facto, ao conceito de censura prévia que, ao cabo e ao resto, se reconduz um sistema que condiciona, em certos casos, a propaganda político-partidária à obtenção prévia de uma autorização camarária”.


4. A jurisprudência do Tribunal Constitucional acima citada – em alguns dos casos, impulsionada por iniciativa do Provedor de Justiça –, é suficientemente clara e inequívoca no sentido de considerar inconstitucionais, por razões de natureza orgânica e material, as normas regulamentares que obrigam a um licenciamento ou autorização prévios a afixação de mensagens de propaganda.


Não parecendo decorrer das normas regulamentares em apreciação que a comunicação a que se refere o art.º 2.º, n.º 1, constitua, na prática, um verdadeiro licenciamento ou uma autorização prévia para a afixação, a mesma comunicação não poderá, em quaisquer circunstâncias, ser motivo para a remoção das mensagens que venham a ser afixadas sem o seu cumprimento.


De facto, e como se disse já, tal comunicação não encontra arrimo na Lei n.º 97/88, pelo que, a representar uma limitação ao exercício da actividade de propaganda, constituiria sempre uma restrição ilegítima para efeitos da aplicação da mencionada jurisprudência do Tribunal Constitucional.


A Lei n.º 97/88, permitindo a remoção de mensagens quando verificado o tipo de condições previstas no seu art.º 4.º, n.ºs 1 a 3 – que as autarquias locais apenas podem regulamentar, – não admite qualquer outro condicionalismo, prévio ou posterior, à afixação da propaganda, já que o princípio é o do livre exercício das actividades de propaganda. Diferentemente, o que a Lei n.º 97/88 estabelece é que se promova tal exercício através da disponibilização, pelas câmaras municipais, de estruturas que permitam essa afixação.


Assim sendo, o eventual não cumprimento da comunicação pretendida pelo Regulamento não pode fundamentar, por si, a remoção de mensagens de propaganda afixadas. No caso de não cumprimento desta comunicação, e na situação em que não há motivo, do elenco permitido pelo art.º 4.º, n.ºs 1 a 3, da Lei n.º 97/88, para a remoção da mensagem, poderá, por exemplo, a Câmara Municipal contar o prazo para a remoção a partir do momento em que tem conhecimento da existência da propaganda, mas não remover ou ordenar a sua remoção.


O controlo do exercício das actividades de propaganda está unicamente enquadrado pelo conjunto de critérios a que alude o art.º 4.º, n.ºs 1 a 3, da Lei n.º 97/88 – reproduzido em parte pelos art.ºs 7.º e 8.º do Regulamento –, verificadas as condições aí elencadas, desencadeando a eventual obrigatoriedade de remoção dos anúncios, conforme previsto na mesma Lei, tendo em vista a conciliação possível entre o exercício da liberdade de expressão e os direitos à propriedade, ao património e ao ambiente.


O tipo de requisito previsto no art.º 2.º, n.º 1, do Regulamento, referente à comunicação prévia aí desenhada, não faz parte desse elenco.


5. Aproveito para sublinhar, a propósito dos critérios que podem fundamentar a remoção obrigatória das mensagens, previstos no art.º 4.º, n.ºs 1 a 3, da Lei n.º 97/88, que a sua aplicação terá de ser feita de forma casuística, isto é, partindo do enquadramento concreto de cada mensagem de propaganda afixada, não servindo naturalmente para legitimar uma proibição genérica da colocação deste tipo de mensagens, a título ilustrativo, em toda uma rua ou avenida, com fundamento, por exemplo, na existência de múltiplos sinais de trânsito, o que redundaria numa ilegítima definição prévia dos locais de afixação.


Finalmente, importa mencionar que, no âmbito de um eventual elenco regulamentar dos critérios que possibilitam a remoção da propaganda colocada em violação da lei – no caso de não se optar pela simples remissão para o art.º 4.º, n.ºs 1 a 3, da Lei n.º 97/88 –, as normas regulamentares devem cuidar de enunciar concretamente os edifícios e zonas históricas, como tal classificados nos termos da lei, que possam constituir locais proibidos para a colocação de propaganda, conforme permitido pela referida Lei.


6. Por tudo o que fica acima exposto, ao abrigo do art.º 20.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, recomendo a V.ª Ex.ª que sejam promovidas:


a) A clarificação, no âmbito do Regulamento sobre Propaganda em vigor no Município do Funchal, no sentido de que as propagandas política e eleitoral não carecem de licenciamento ou de qualquer outro acto de autorização prévia para que possam ser exercidas;


b) A aplicação da norma do art.º 2.º, n.º 1, do Regulamento, por forma a que o eventual incumprimento da comunicação prévia na mesma prevista não constitua fundamento para a remoção da mensagem colocada nessas condições.


O Provedor de Justiça,


H. Nascimento Rodrigues