RECOMENDAÇÃO N.º 10/A/2008
[artigo 20º, nº1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril]


Entidade visada: Presidente da Câmara Municipal de Ourém


Procº: R-510/07
Área: A1
Data: 10-10-2008


Assunto: obras particulares – afastamento entre edificações – alvará de licença de construção nº 79/2006



I – Da queixa apresentada



1. A e B, reclamaram a minha intervenção junto do município superiormente representado por V.Ex.a., afirmando-se lesados pela construção do edifício em execução na contiguidade da fracção de que são proprietários – (com a licença de utilização titulada por alvará de 15.07.1983) – em contravenção de normas de direito público que os deviam proteger. Trata-se, concretamente, de uma empena que confronta directamente com a varanda de um dos quartos e sobre a qual está aberto o único vão que o serve (uma porta).



2. Em resultado, teria aquele compartimento de habitação ficado irremediável e absolutamente privado de insolação, ventilação e iluminação naturais, sem que as autoridades municipais de Ourém tivessem, em devido tempo, adoptado as necessárias providências. 



II – Descrição das averiguações instrutórias
 


3. Solicitada a pronúncia de V. Ex.a., viria opor, em síntese, que na fracção dos reclamantes tinham sido executadas obras, sem licença municipal, nomeadamente, o encerramento integral da varanda por um telhado em chapa zincada e ainda a colocação de vidros suportados em caixilharia de alumínio na frente e na lateral, no que se convencionou designar ‘marquise’.



4. Essa intervenção – sem licença municipal – contribuiria para a situação de que agora os impetrantes reclamavam, expondo-os agravadamente à empena fronteira.



5. Determinei a visita ao local, em 7.05.2007, por dois colaboradores meus, visita em que a Câmara Municipal se fez também representar.




III – Do acto de licenciamento da obra reclamada



6. Pôde observar-se que a empena do edifício reclamado encosta à parede da edificação dos reclamantes, desenvolvendo-se no acompanhamento de toda a estrema da varanda, até assumir no ponto mais favorável a distância de 4,16 metros. No eixo do vão aberto sobre aquela varanda, mediu-se uma distância à empena de 2,05 metros.



7. O compartimento de habitação que deita para a referida ‘marquise’, encontra-se, privado, em absoluto, de insolação e de arejamento naturais. Isto, por diversos obstáculos:




i. pela colocação de um telhado zincado e caixilharia com vidros encimando a varanda de separação com a fracção vizinha, obra executada na dos reclamantes;


ii. pelo posterior alteamento em alvenaria do mesmo muro de separação entre varandas, obra executada pela vizinha, também ela clandestina;


iii. pela referida empena fronteira reclamada.


8. É certo que o encerramento da varanda pelos reclamantes constitui um acto ilícito, mas não é por este facto que ocorre a privação dos citados elementos ambientais. Ainda que restituíssem a varanda ao seu estado anterior – por remoção do telhado e da caixilharia com vidros que encima o muro construído entre fracções – nem por isso deixariam de se verificar a privação de luz solar e de ventilação natural.



9. As condições urbanísticas de salubridade mostram-se irremediavelmente comprometidas em resultado, não daquelas obras promovidas na fracção dos reclamantes, mas do alteamento em alvenaria do muro de separação entre varandas promovido pela proprietária da fracção contígua e, principalmente, pela empena fronteira, a qual não observou o necessário rectângulo de afastamento imposto pelo art. 73º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto-Lei nº 38.382, de 7 de Agosto de 1951 (RGEU).



10. Com efeito, no citado art. 73º determina-se que os vãos dos compartimentos de habitação fiquem desafogados de qualquer obstáculo fronteiro que se lhes oponha em metade da altura desse mesmo obstáculo (contado acima do nível do pavimento do compartimento). Isto, com um mínimo de três metros. Por outro lado, não pode haver nem de um nem do outro lado do eixo vertical do vão qualquer impedimento à iluminação a distância inferior a dois metros, devendo garantir-se, em toda esta largura, o afastamento mínimo de 3 metros.



11. O que se pretende com estes limites imperativos de afastamento é assegurar que a integração de um novo edifício no conjunto edificado – ou que se prevê edificar – seja feita de modo a não prejudicar a qualidade de vida no interior, garantindo um ambiente urbano sadio e equilibrado. Trata-se, pois, de um interesse público fundamental, na esfera de protecção ambiental da saúde pública, e não apenas de um critério funcional de ordenamento, ditado por motivos de melhor aproveitamento dos solos ou de paisagem urbana.



12. Estas normas aplicam-se tanto às construções novas, entre si, como às construções novas relativamente às existentes, devendo ainda ser tidas em atenção quanto aos afastamentos por conta de edificações ainda não construídas nem licenciadas. Isto, porque de normas relacionais se trata.



13. Este entendimento, contrariando posições mais ambíguas adoptadas anteriormente, parece hoje firmado na jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo. Assim, pode ler-se já no Acórdão de 7 de Junho de 1994 (2ª Subsecção, proc. 33.836 (1)):




O art. 73º do RGEU, fixa imperativamente as condições a que deve obedecer a disposição das janelas de uma habitação e a sua distância mínima de muro ou fachada fronteiros.


Ao aprovar o projecto de construção, a Câmara Municipal não dispõe da faculdade de optar entre várias soluções igualmente válidas, antes está, nesse domínio, adstrita à observância desse preceito.


Situamo-nos pois no âmbito da vinculação legal, isto é, a Câmara exerce um poder vinculado(…)


O art. 73º é uma norma destinada a fixar os espaços livres e estes resultam de uma relação, de uma posição relativa das construções.


Não faria por isso sentido que, em nome de interesses como a insolação e o arejamento, se proibisse a abertura de uma janela a menos de 3m da parede fronteira, para logo depois se permitir a construção de um muro ou parede que não respeitasse essa distância.


Porque de norma relacional se trata, a sua observância impõe-se quando do licenciamento de qualquer das construções, seja a que tem os vãos ou a da parede cega.


O preceito é assim aplicável quer às novas construções, quer tendo em atenção as já existentes.



14. Mais recentemente este entendimento foi consolidado por Acórdão de 17 de Junho de 2003 (2ª Sub., proc. 01854/02), nos termos que desenvolvidamente se transcrevem pelo interesse concreto para a questão controvertida:




A preocupação do RGEU é o interesse público na existência de um ambiente urbano sadio e equilibrado, o que passa pela salubridade das habitações, designadamente, no que respeita à iluminação, ao arejamento, à exposição solar e aos espaços livres entre as edificações. O urbanismo e o ambiente estão, de facto, ligados, e hoje ainda mais, pois coabitam intimamente nos espaços rurais e urbanos. O urbanismo qualificou-se, visto que muitas das suas normas se viraram para a defesa do ambiente, para a valorização, protecção e recuperação do património histórico, das paisagens, criação de zonas verdes e o ambiente voltou-se para a cidade, combatendo a poluição, incrementando a qualidade das edificações, criando e valorizando espaços naturais. A própria Constituição da República consagrou esta estreita relação no artº 66º, consagrando um “direito do ambiente urbanístico” ou um “direito do urbanismo ecológico”, com vista à “promoção da qualidade ambiental das povoações e da vida urbana”. (Vide, a este propósito, Prof. Alves Correia, Manual do Direito do Urbanismo, p.77 e seguintes) O RGEU, já em 1951, adivinhava esta evolução e foi um passo importante para a mesma (…).


O que está subjacente às normas do RGEU sobre edificações urbanas é, como resulta do respectivo preâmbulo, evitar que se erijam edificações em terrenos acanhados e de conformação deficiente, é a ideia de que cada edificação deve ser encarada como mera parte de um todo, em que se terá de integrar harmoniosamente, valorizando-o tanto quanto possível, é evitar que os edifícios se aproximem tanto dos limites dos respectivos terrenos, que a qualidade urbana seja prejudicada no seu conjunto, é assegurar uma certa qualidade de vida às populações, é, afinal, o interesse público em garantir o direito a um ambiente urbano minimamente sadio e a um urbanismo ecologicamente equilibrado.


O artº73º situa-se no domínio das restrições impostas pelo direito público ao direito de propriedade, com base no interesse público – da salubridade e estética das edificações (…)


As normas do RGEU salvaguardam interesses mais amplos que os garantidos pelas normas civilistas que protegem o direito à privacidade do proprietário vizinho, na medida em que impõem respeito pela vida e haveres da população e pelas condições estéticas do ambiente local de modo a tornar a vida das populações mais sadia e agradável. Quer dizer, a observância das normas que respeitam à segurança e salubridade das edificações, à estética local, enfim, ao ambiente urbano, acaba por interessar a todos e a cada um. (…)


As normas do RGEU não disciplinam relações de vizinhança, antes tutelam primacialmente os referidos interesses públicos. (…) As normas do RGEU relativas a edificações devem ser interpretadas conjugada e actualisticamente, tendo presente a evolução sofrida pelo direito do urbanismo e pelo direito do ambiente, a sua consagração constitucional e as relações íntimas entre eles.


Sem dúvida, que o artº 73º é uma norma relacional (neste sentido, entre outros, o Ac. STA de 07.06.94, rec.33 836), ou seja, atende à posição relativa das construções confinantes, exigindo a observância de determinadas distâncias mínimas entre elas, por razões que se prendem com a necessidade de assegurar as condições de iluminação, arejamento e insolação a que se alude na norma geral do artº 58.


E, por assim ser, tais normativos aplicam-se quer às construções novas entre si, quer às construções novas relativamente às já existentes. Nem, com o devido respeito, faria sentido que fosse de outro modo (…).


Sendo irrelevante, dado o interesse público em jogo, já referenciado, que a edificação a construir seja uma empena cega (sem aberturas), pois não está aqui em causa a devassa do prédio vizinho. Como irrelevante é que a construção prejudicada já exista, pois já vimos que estamos perante normas relacionais.



15. E não parece ajustado arguir, em defesa da obra reclamada, que por via da exigida bilateralidade, então também o vão de compartimento de habitação aberto na fracção dos reclamantes – e que deita para a varanda confinante – deveria ter observado o rectângulo de afastamento à estrema exigido pelo sempre citado art. 73º do RGEU.



16. É que, se tenho por certo que a construção da ‘marquise’ não merece protecção legal – por ter sido levada a cabo clandestinamente – não disponho de elementos que me permitam extrair a mesma conclusão relativamente ao vão de compartimento de habitação – porta de varanda do quarto – que para ela deita, pelo que presumo que o mesmo consta da licença municipal de construção.



17. Não deixo, a este propósito, de fazer notar que o poder de indeferimento concedido às câmaras municipais pelo art. 15º, n.º 1, alínea d), do Regime Jurídico do Licenciamento Municipal de Obras Particulares à data em vigor (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 166/70, de 15 de Abril), era já então, como agora, um poder vinculado, estando, portanto, os órgãos autárquicos obrigados a recusar o licenciamento de obras que se revelassem desconformes com as normas legais aplicáveis à construção.



18. Não o tendo feito, admito que o acto de licenciamento que permitiu a abertura do vão – sem deixar espaço para sua defesa e protecção – e agora lesado pela obra nova fosse também ele inválido, por consentir uma distância à estrema inferior à exigida pelo art. 73º do RGEU. Não se verificava, contudo, que imediata e irremediavelmente ficasse comprometida a defesa do interesse público na salubridade das edificações, desde logo, porque, à data, não se previa nenhum obstáculo fronteiro.



19. Faltando, pois, razões de ordem pública que aconselhem cominá-lo com desvalor mais gravoso, como é o da nulidade, entendo que o acto de licenciamento da abertura daquela porta de varanda se encontra, há muito, sanado pelo decurso do tempo, por força do regime geral da anulabilidade dos actos administrativos inválidos.



20. A situação de facto constituída sob a referida licença é, portanto, merecedora de protecção.



21. Idêntica conclusão quanto ao valor jurídico negativo do acto que licenciou a construção que se lhe opõe (titulado pelo alvará n.º 79/2006, de 24 de Fevereiro) poderia retirar-se, caso fosse a inobservância do art. 73º do RGEU, nos exactos termos presenciados, o único vício de que padecesse, o que, como veremos infra não é, todavia, o caso.



22. Na verdade, apesar de o licenciamento reclamado ter consentido numa lesão não despicienda às condições de habitabilidade do imóvel vizinho, elas não se estenderam ao restante fogo, que apresenta boas condições de salubridade.



23. Por seu turno, sempre poderia ser realizada obra de ligação daquele compartimento ao que lhe é contíguo, assegurando, assim, por meio da ventilação transversal (artigo 72.º do RGEU), as condições para uma ventilação e exposição à luz solar adequadas.



24. Todavia, nem por isso, deixa o Município de Ourém de ser responsável pela desvalorização patrimonial da fracção em causa que ficou privada de um dos compartimentos de habitação e, por conseguinte, diminuída na sua capacidade de utilização, nem pelas obras necessárias ao seu reaproveitamento. Isto, de par com a responsabilidade pelo ressarcimento dos danos morais sofridos pelos reclamantes resultantes da perda de bem estar, das preocupações e do sofrimento pela constatada degradação do património e do esforço suportado na busca de elementos para fazerem valer a sua pretensão – entendimento que se estriba na doutrina afirmada no Acordão do Supremo Tribunal Administrativo de 9.02.2005 (2). Se o município de Ourém mal andou ao licenciar a edificação dos reclamantes com um compartimento de habitação demasiado exposto a obstáculos, pior fez ao ter posteriormente admitido a empena da construção reclamada a uma distância inferior à dos padrões mínimos de salubridade das edificações.



25. E é ao Município de Ourém que incumbe assumir, em primeira linha, a responsabilidade pelo ocorrido, pelos danos consequentes destes actos, em face do regime da responsabilidade civil extracontratual contido no Decreto-Lei n.º 48.051, de 21 de Novembro de 1967 (3).



26. Aqui se prevê, que possa(m) o(s) prejudicado(s) fazer valer o seu direito ao ressarcimento pelos danos sofridos em consequência de actos (ou omissões) ilícitos, causados culposamente, por órgãos ou agentes administrativos, no exercício das suas funções e por causa desse exercício.



27. Considera o art.º 6º do citado Decreto-Lei n.º 48.051, de 21 de Novembro de 1967, como ilícitos: “os actos jurídicos que violem as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis e os actos materiais que infrinjam estas normas e princípios ou ainda as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração“.



28. Tem vindo a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo a entender, que a obrigação de indemnizar, dependerá da verificação cumulativa dos seguintes pressupostos: facto, ilicitude, culpa, nexo de causalidade e dano, isto por referência ao que se dispõe no art. 483º do Código Civil (4).



29. No que respeita à ilicitude, a conduta do agente geradora do dano tanto pode consistir num comportamento positivo como numa omissão, ou seja, desde que exista o dever concreto de garantia (vigilância, fiscalização, controlo), a omissão dos actos devidos pode justificar a reparação do dano imputado.



30. A ilicitude da conduta do município de Ourém residiu no licenciamento da obra reclamada em desrespeito pela norma do 73º do RGEU, com as consequências que se conhecem.



31. Com referência à culpa, o artigo 4º do Decreto-Lei n.º 48.051 de 21 de Novembro de 1967, remete expressamente para o critério estabelecido no artigo 487º do Código Civil. A culpa é apreciada “pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso” (n.º 2), competindo ao lesado “provar a culpa do autor da lesão salvo havendo presunção legal de culpa” (n.º 1).



32. A culpa, segundo o mais autorizado ensino (João Antunes Varela (5)), significa actuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito. E essa conduta será reprovável quando o agente em face das circunstâncias concretas da situação “podia e devia ter agido de outro modo“.



33. Aponto, neste particular, para a doutrina que dimana do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 4.12.2003 (Proc.º 557/03): “perante a noção de ilicitude que consta do artigo 6º (6) – sobretudo na parte final – fica, neste domínio, reduzido o campo de operatividade autónomo do conceito de culpa“.



34. Ou seja, entende-se que, na ausência de uma relevante justificação, será reprovável e por conseguinte culposa, a conduta da Administração que se apresente como violadora da lei.



35. Isto porque, encontrando-se os órgãos da Administração Pública sob uma especial obrigação de actuar em obediência à lei (de acordo com o princípio da legalidade inscrito no art. 3º do Código do Procedimento Administrativo), o elemento culpa dilui-se na ilicitude, quando, através da prática de um acto administrativo ilegal, é violado o dever de boa administração.



36. E não se descortina dos elementos do processo instrutor que haja ocorrido justificação atendível para o afastamento tolerado pela Câmara Municipal de Ourém.



37. Desde logo, não pode a Câmara Municipal alegar desconhecimento da situação, pois, já em 19.07.2005, a Senhora Chefe da Divisão de Ordenamento do Território se pronunciara sobre o projecto de arquitectura do edifício reclamado nos seguintes termos: “o projecto não apresenta cotas de afastamento ao edifício existente na parcela vizinha confinante (Norte). Contudo é possível concluir que não cumpre o RGEU no que respeita ao afastamento do edifício solicitado à fachada posterior do edifício existente na parcela vizinha“, e concluiu pela emissão de informação desfavorável.



38. E, em 23.07.2005, o Senhor Director do Departamento do Ambiente, Ordenamento do Território e Obras, em despacho de concordância com esta mesma informação, concluiu que “a pretensão não deverá ser autorizada“.



39. Dos elementos que V. Ex.a. nos fez chegar, não encontro motivos que aconselhassem desvalorizar o indeferimento proposto pelos técnicos. Nem quando da visita realizada ao local em 7.05.2007, o Vereador José Manuel Moura Rodrigues e a autora do citado parecer de 19.07.2005 (Arq.. Maria Olímpia Santos), interpelados para o efeito pelos meus colaboradores, souberam explicá-las.



40. Concluo, assim, que o caso em tudo preenche o requisito da dupla ilicitude – de conduta e de resultado – que a mais recente jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo considera determinante para a aplicação do citado artigo 6º do Decreto-Lei n.º 48.051, de 21 de Novembro de 1967:




A lei não se basta com a produção causalmente adequada da ofensa dos direitos de terceiros ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses (artigo 3º do DL 48 051, de 1967.11.21). Exige a violação de normas jurídicas ou princípios ou a infracção de regras técnicas e/ou do dever geral de cuidado, como dimensão ineliminável de um comportamento ilícito, significando que a ilicitude não está centrada exclusivamente no resultado danoso – ilicitude de resultado – e que, igualmente, está sempre na dependência do desvalor de um determinado comportamento – ilicitude de conduta (vide, neste sentido, na doutrina Gomes Canotilho, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 125º, p. 84; Marcelo Rebelo de Sousa, Responsabilidade dos Estabelecimentos Públicos de Saúde: Culpa do Agente ou Culpa da Organização? “, in Direito da Saúde e Bioética, Ed, AAFDL, 1996, p. 172 e Margarida Cortez, Responsabilidade Civil da Administração por Actos Administrativos Ilegais e Concurso de Omissão Culposa do Lesado, pp. 50/53 e na jurisprudência deste Supremo Tribunal, por exemplo, o acórdão de 1998.03.17 – Recº 42 505).



41. Vale a pena, do lado dos civilistas, recordar ainda, o que escreveram Pires de Lima e Antunes Varela, em anotação ao art. 563º do Código Civil (7):




A disposição deste artigo, pondo a solução do problema na probabilidade de não ter havido prejuízo se não fosse a lesão, mostra que se aceitou a doutrina mais generalizada entre os autores – a doutrina da causalidade adequada – que o Prof. Galvão Teles formulou nos seguintes termos: «Determinada acção ou omissão será causa de certo prejuízo se, tomadas em conta todas as circunstâncias conhecidas do agente e as mais que um homem normal poderia conhecer, essa acção ou omissão se mostrava, à face da experiência comum, como adequada à produção do referido prejuízo, havendo fortes probabilidades de o originar.



42. Em face do que antecede, não tenho senão como concluir pela responsabilidade civil do Município de Ourém pelos danos patrimoniais e morais que a privação do desafogo no seu quarto de dormir causou aos reclamantes, por virtude da licença outorgada à obra (alvará n.º 79/2006, de 24 de Fevereiro).




IV – Da desconformidade com as especificações contidas no alvará da licença de loteamento


43. Decorre do alvará de loteamento urbano com obras de urbanização n.º 4/88, de 28.01.1988 que titulou o licenciamento da divisão jurídica do prédio onde veio a ser construído, no lote n.º 1, o edifício reclamado – que os parâmetros para a construção “são os indicados no quadro grelha do projecto de loteamento” (sic) – ponto 5.1, condição 1ª. E declara-se que as plantas anexas fazem dele parte integrante – ponto 11 (8).



44. Analisada a planta de loteamento que V. Ex.a. nos facultou, pude observar faltar a necessária coincidência entre a representação desenhada e o Quadro Resumo da Proposta que a visa interpretar. Isto no que respeita, designadamente, aos afastamentos mínimos da construção principal aos limites laterais.



45. Com efeito, enquanto que o desenho apresenta o encosto dos lotes entre si e ao edifício contíguo habitado pelos reclamantes, o Quadro Resumo da Proposta indica o afastamento, de todos, aos limites laterais, de três metros, e aos limites a tardoz de seis metros.



46. O desenho, desprovido de definição por coordenadas geodésicas, assume a mera função de representação do conceito global da operação urbanística de loteamento. A sua concretização, definição, detalhe e condicionamentos encontra, pois, o lugar próprio, no Quadro Resumo da Proposta que o interpreta e precisa, e, por conseguinte, a ele se sobrepõe em caso de discordância entre eles.



47. Aliás, se dúvidas houvesse, quanto aos parâmetros de ocupação que haveriam de ser tomados por referência, as mesmas logo ficariam sanadas pela remissão do próprio alvará de loteamento e obras de urbanização para o quadro-grelha do projecto de loteamento.



48. Verificou-se, por seu turno, que o projecto de arquitectura do lote n.º 1 (processo de autorização de construção n.º 1493/2005) – prevendo o encosto àquela fachada confinante – está também em desacordo com o que consta do citado Quadro Resumo da Proposta, porquanto admite o aumento da profundidade da implantação do edifício em mais dois metros.



49. Foi-nos dado verificar, bem assim, que o mesmo Quadro Resumo da Proposta define para o Lote n.º 1, 24 apartamentos com a tipologia T3, ao passo que o alvará da licença de construção n.º 79/2006, de 24.02.2006, identifica a seguinte tipologia: 8 T1 + 4 T2 + 8 T3.



50. Pedidas explicações ao Senhor Vereador José Manuel Moura Rodrigues e à Senhora Arq. Maria Olímpia Santos, quando da visita ao local, em 07.05.2007, sobre as incongruências entre a licença de loteamento e a licença de construção, nada adiantaram quanto a esta matéria, nem explicaram a razão por que, na informação da Divisão de Ordenamento do Território, de 6.6.2005, se tomaram por referência as inscrições contidas no Quadro Resumo da Proposta, designadamente, quanto aos limites de afastamento a tardoz e à tipologia dos apartamentos, mas se postergou o que nele se prescrevia em sede de afastamentos laterais.


51. Pudemos observar que, em 2.9.2005, o requerente do licenciamento da construção reclamada afirmou que: “em relação ao afastamento apenas se refere que o loteamento é claro e está a ser respeitado“. Desde então, a questão dos afastamentos não mais é referida nos documentos que a Câmara Municipal de Ourém conserva e nos exibiu.



52. Não posso, pois, senão concluir pela desconformidade entre as especificações da licença de loteamento (alvará n.º 4/88, de 28 de Janeiro) e a licença de construção (alvará n.º 79/2006, de 24 de Fevereiro).



53. Ora, no art. 68º, alínea a), do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação – RJUE (9), fulmina-se com a nulidade o licenciamento de operações que violem o disposto em licença de loteamento em vigor. E o acto nulo é, por definição, insusceptível de produzir efeitos jurídicos sólidos, já que a nulidade pode ser arguida a todo o tempo e oficiosamente declarada também a todo o tempo, por qualquer órgão administrativo ou por qualquer tribunal (10).



54. Pedro Gonçalves e Fernanda Paula Oliveira, em estudo dedicado à nulidade dos actos de gestão urbanística (11), maxime das licenças, chamam a atenção, contudo, para a necessidade de uma rigorosa ponderação na aplicação deste regime:




O princípio da improdutividade jurídica dos efeitos típicos do acto não elimina (…) toda a sua produtividade, já que não se trata apenas de uma aparência de acto administrativo. E isto é particularmente evidente quando os actos administrativos em causa são actos de gestão urbanística que investem o particular no poder de realizar operações urbanísticas pois, ao abrigo deles, mesmo que nulos, tais operações podem consolidar-se efectivamente: podem ser operações de loteamento e respectivas obras de urbanização que se efectivam, construções que se edificam e que se consolidam, passando a ser utilizadas pelos titulares das respectivas licenças ou por terceiros adquirentes”.



55. Poderá, com efeito, a solução não ser a declaração de nulidade das licenças concedidas, com a consequente sujeição da obra reclamada ao regime das obras ilegais (susceptíveis de vir a ser objecto de ordem de demolição) por poder haver outros modos de proceder à reintegração da legalidade urbanística, na defesa dos interesses públicos subjacentes à operação construtiva já iniciada e cujos trabalhos se encontravam já em fase adiantada, em 7.5.2007.



56. Não se trata de defender a solução do facto consumado, antes de apelar para a ponderação de todos os inconvenientes e benefícios que tal decisão comportaria para a esfera dos interesses públicos urbanísticos que se pretendem acautelar.



57. Ou seja, entendo que haverá, antes do mais, que averiguar se a disciplina de organização territorial imposta para a zona pelo Regulamento do Plano Director Municipal de Ourém – entretanto ratificado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 148-A/2002, de 30 de Dezembro – admite ocupação nos termos da licença de construção concedida, considerando-se, em caso afirmativo, a necessidade de promover a alteração das prescrições contidas na licença de loteamento, por forma a obter a necessária correspondência.



58. Releva em abono da solução que proponho, o facto de se prever no artigo 106º, n.º 2, do RJUE, quase um dever sobrestar a decisão de demolição, sempre que se conclua pela possibilidade de legalização do edificado.



59. Entendeu, pois, o legislador que a demolição só deve ser ordenada se não for possível a legalização, com ou sem a realização de trabalhos de correcção ou alteração. A demolição de obras ilegais é, pois, tida como o último recurso para a reposição da legalidade urbanística.



60. E as licenças de loteamento não são instrumentos definitivos, porquanto se prevê expressamente na lei a possibilidade da sua alteração (seguidos os trâmites e observadas as condicionantes que constam do art. 27º do RJUE).



61. Por isso, em face do carácter irreversível que tem a demolição da construção, a nível da afectação da situação do titular da licença, julgo que deverá guardar-se a recomendação de prática de acto com este conteúdo e alcance para as situações em que se conclua pela impossibilidade de assegurar a satisfação do interesse público de reintegração da legalidade urbanística por outra via.



62. Isto por referência ao princípio constitucional da proporcionalidade (artigo 266.º, n.º 2, da Constituição) que postula não deverem ser impostos sacrifícios aos cidadãos quando não existam razões de interesse público que o possam justificar ou quando um meio menos ablativo permita obter uma reparação aproximada.



63. Aliás, chamado a pronunciar-se sobre esta questão, tem o Supremo Tribunal Administrativo, em entendimento constante, defendido que o poder de escolha entre a demolição e a legalização de obras levadas a cabo sem o necessário licenciamento prévio ou em desconformidade com ele, por parte da câmara municipal ou do seu presidente, será discricionário quanto ao tempo da decisão, mas vinculado no sentido de que a demolição só pode ter lugar se se houver previamente concluído pela inviabilidade da legalização das obras, por estas não poderem satisfazer aos requisitos legais e regulamentares de urbanização, estética, segurança e salubridade (12).



64. Não me repugna admitir, por conseguinte, que a situação, como está, se mantenha até se estudarem com profundidade os termos da legalização.



65. Mas, isto, sempre sem prejuízo das conclusões que acima retirei quanto à responsabilidade do Município de Ourém pelo ressarcimento pelos danos causados aos reclamantes.



V – Conclusões


I – O acto de licenciamento municipal, titulado pelo alvará n.º 79/2006, de 24 de Fevereiro, ao abrigo do qual se executou a obra reclamada é nulo por contrariar o disposto nas especificações do alvará de loteamento urbano com obras de urbanização n.º 4/88, de 28.01.1988.



II – A imediata declaração de nulidade do acto, porque determina ipso jure serem tratadas as obras como ilegais, deve porém ser sopesada, verificados os interesses em contraponto e ponderada a possibilidade de se encontrarem outras soluções aptas a garantir a reintegração da legalidade urbanística.



III – Incumbe, de todo o modo, ao município de Ourém garantir, em primeira linha, a satisfação do direito de reparação aos munícipes prejudicados, porquanto não logrou provar, como lhe competia, não se encontrarem reunidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, por danos causados por acto de gestão pública. Isto, sem prejuízo de poder reagir contra o reclamado particular: o construtor.



IV – Deverão, assim, ser os reclamantes ressarcidos dos danos patrimoniais que sofreram em consequência do acto nulo de licenciamento da construção, na parte em que a empena fronteira os priva da luz solar e da ventilação natural.



V – Para esse efeito, pondera-se que o município de Ourém possa assumir o encargo das obras de alteração a promover no interior da fracção dos reclamantes, por forma a estabelecer a ligação entre o compartimento de habitação prejudicado e aquele que imediatamente lhe é confinante, a fim de garantir uma ventilação e exposição à luz solar adequadas (solução que deverá obter a sua prévia aprovação).



VI – Isto, sem embargo de indemnização no remanescente, a calcular, pela perda do valor da fracção dos reclamantes, consequente à diminuição do número de compartimentos de habitação que resulta da obra sugerida supra.


VII – Deverão ser também os reclamantes ressarcidos dos danos morais sofridos em consequência do acto ilícito de licenciamento.


VIII – De par, deverá ser determinada a remoção de todas as obras ilegais executadas nas varandas a tardoz, designadamente, as promovidas na fracção onde residem os reclamantes e naquela que lhe é contígua, verificada a insusceptibilidade de legalização.




VI – RECOMENDAÇÃO



Assim, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril (Estatuto do Provedor de Justiça), RECOMENDO ao município de Ourém, superiormente representado por V.Ex.a. o seguinte:







A – Assumir a reparação pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelos reclamantes em consequência do acto ilícito de licenciamento da construção que impugnam, titulado pelo alvará n.º 79/2006, de 24 de Fevereiro, através do pagamento de indemnização, em montante a calcular, de par com a execução das obras no interior da fracção, que se revelem necessárias ao aproveitamento do compartimento de habitação irremediavelmente prejudicado (se obtido o consentimento dos reclamantes/lesados);


B – Determinar a remoção das obras ilegais de fecho das varandas a tardoz, designadamente, as que se observam na fracção dos reclamantes e fracção vizinha, observada a insusceptibilidade de legalização.


C – Averiguar, de imediato, da possibilidade de alteração das prescrições contidas na licença de loteamento, à luz do preceituado no Regulamento do Plano Director Municipal de Ourém, seguindo-se-lhe a prática dos actos necessários a conformar as licenças de loteamento e de construção concedidas com as normas nele inscritas, e determinando, se necessário for, para a correspondência destas com a obra executada, a promoção de trabalhos de alteração e/ou correcção.







Dignar-se-á V.Ex.a comunicar-me, para efeitos do disposto no artigo 38.º, n.º2, da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril (Estatuto do Provedor de Justiça), a sequência que a presente Recomendação vier a merecer.




O Provedor de Justiça,
H. Nascimento Rodrigues


 


 


 


 


 


Notas de rodapé:


(1) Publicado no Apêndice ao Diário da República, de 31.12.1996, Vol. III (Junho), págs. 4621 e segs Neste mesmo sentido, Acórdão do STA, 1ª Sub., de 8.07.1999, Proc. 044785, publicado no Apêndice ao Diário da República, de 9.09.2002, págs. 4708 e segs; Acórdão do STA, 2ª Sub., de 17.06.2003, Proc. 01854/02.
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(2) 3ª Subsecção do CA, Proc.º 941/04.
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(3) Responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas no domínio dos actos de gestão pública.
Aplicável ao caso em apreço, não obstante a entrada em vigor da Lei nº 64/2003, de 23 de Agosto, por via do princípio geral de aplicação de leis no tempo inserto no art. 12º nº 2 do Código Civil (a contrario sensu).
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(4) Acordão do STA, 1ª Subsecção do CA, de 04.12.2003, Proc. 557/03; Acordão do STA, 3ª Subsecção do CA, de 19.01.2005, Proc. 1325/03.
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(5) Das Obrigações em Geral, Vol. I, 6ª ed. Pag. 531 e segs..
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(6) do Decreto-Lei nº 48.051, de 21 de Novembro de 1967.
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(7) Código Civil Anotado, Vol. I, 2.ª edição.
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(8) art. 47º do Decreto-Lei nº 400/84, de 31 de Dezembro.
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(9) aprovado pelo Decreto-Lei nº 555/99, de 16 de Dezembro. Alterado pelo Decreto-Lei nº 177/2001, de 4 de Junho
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(10) artigos 134, n.º 1 e n.º 2, 137, n.º 1, e 139, n.º 1, a), todos do Código do Procedimento Administrativo.
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(11) O regime da nulidade dos actos administrativos de gestão urbanística que investem o particular no poder de realizar operações urbanísticas, in Revista do Centro de Estudos de Direito do Ordenamento, do Urbanismo e do Ambiente, 1999 (2), p. 17.
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(12) Acordão STA, 2ª Subsecção do CA, de 19 de Maio de 1998, Proc. 43433; Acordão STA, 1ª Subsecção do CA, de 12 de Novembro de 1998, Proc. 43643; Acordão STA, 1ª Subsecção do CA, de 26 de Abril de 2001, Proc. 46802; Acordão STA, 3ª Subsecção do CA, de 9 de Abril de 2003, Proc. 09/03; Acordão STA, 3ª Subsecção do CA, de 2 de Fevereiro de 2005, Proc. 633/04; Acordão STA, 2ª Subsecção do CA, de 1 de Março de 2005, Proc. 761/04; Acordão STA, Pleno da Secção do CA, de 29 de Novembro de 2006, Proc. 633/04.
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