RECOMENDAÇÃO N.º 9/A/2008
[artigo 20º, nº1, alínea a), da Lei nº9/91, de 9 de Abril]


Entidade visada: Presidente da Câmara Municipal da Marinha Grande
Proc.º: R-5413/06
Área: A1
Data: 22-09-2008


Assunto: licenciamento de construção – obras de urbanização – caução


 


I
Exposição de motivos


1. Foi requerida a minha intervenção e cumprido o dever de audição prévia de V. Ex.a, a respeito da recusa, por parte da Câmara Municipal da Marinha Grande, em construir um arruamento de acesso à edificação cuja licença se encontra identificada supra, a menos que restituísse ao requerente, ora queixoso, a quantia por este depositada para o efeito.


2. Concluídas as averiguações, resultaram indiciados os seguintes factos:






a) o licenciamento da construção foi subordinado à condição do encargo com as obras de urbanização, a realizar pelo município, nos termos do art. 25º do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro (RJUE);

b) as obras em questão consistiam na extensão de um arruamento e das redes de abastecimento de água e electricidade e de recolha de esgotos;


c) o arruamento e as infra-estruturas servem, igualmente, a propriedade fronteira à visada pela condição;


d) assim, em 10.02.2003, o requerente foi notificado para apresentar um projecto de execução contendo os seguintes elementos:



i. caracterização da situação fundiária, compreendendo o autorização dos proprietários abrangidos pelas cedências necessárias para a implantação do arruamento e dos passeios;
ii. requalificação do caminho, com passeios marginais;
iii. extensão das redes públicas;


e) foi, ainda, determinada a apresentação de um mapa de medições e da estimativa orçamental da totalidade da obra;


f) o requerente apresentou todos os elementos solicitados, com excepção do relativo à caracterização da situação fundiária;


g) tais elementos foram aceites pela Câmara Municipal, assim como o depósito, em 2004, da quantia de € 8.051,44 (que viria a ser reduzida para € 6.766,25, por compensação com o valor de obras entretanto executadas pelo requerente), como caução destinada a assegurar o pagamento da despesa respeitante à futura execução do arruamento;


h) porém, nunca chegou a ser outorgado o contrato previsto no art. 25º, n.º3;


i) nem tão-pouco se procedeu à redução proporcional da quantia a liquidar como taxa pela realização de infra-estruturas urbanísticas (cujo pagamento, aliás, não se encontra documentado);


j) a construção foi licenciada e a licença encontra-se titulada pelo alvará n.º 419/2003;


k) a Câmara Municipal, até hoje, não executou as obras de urbanização estabelecidas, apesar dos pedidos dirigidos pelo requerente, ficando relegadas para a execução do Plano de Pormenor da Garcia ainda em elaboração e que abrangerá a zona em questão;


l) o procedimento de elaboração do plano de pormenor, iniciado em 1999, tem sido afectado por diversas vicissitudes (designadamente, para adaptação aos requisitos de leis sucessivamente entradas em vigor e para esclarecimento de dúvidas sobre a estrutura fundiária), não havendo, ainda, uma previsão quanto à sua entrada em vigor;


m) encontra-se prevista, no entanto, a aplicação de mecanismos perequativos, no âmbito da execução do plano de pormenor.



II
Análise


3. Perante estes factos, suscitam-se as seguintes questões controvertidas:







 §1º – cumprimento da condição aposta ao licenciamento e relevância da omissão do contrato de urbanização;
§2º – dever de execução da obra, por parte da Câmara Municipal;
§3º – revogação da condição e restituição da quantia depositada como caução.



§1º – Cumprimento da condição e relevância da omissão de celebração do contrato previsto no art. 25º, n.º 3


4. A condição visada na queixa funda-se no art. 25º, n.º 1, do RJUE, que estipula o seguinte:



«Quando exista projecto de decisão de indeferimento com os fundamentos referidos na alínea b) do n.º 2 e no n.º 4 anterior, pode haver deferimento do pedido desde que o requerente, na audiência prévia, se comprometa a realizar os trabalhos necessários ou a assumir os encargos inerentes à sua execução, bem como os encargos de funcionamento das infra-estruturas por um período de 10 anos.» (destacado nosso)


5. Esta norma aplica-se, portanto, às situações em que o pedido de licenciamento de uma operação urbanística revele uma sobrecarga para as infra-estruturas gerais existentes, motivando o seu indeferimento, como determina o art. 24º, n.º 4, do mesmo diploma, possibilitando a superação da proposta de indeferimento, desde que o requerente assuma os encargos relativos às infra-estruturas em falta, assegurando, deste modo, a dotação das mesmas.


6. Tal obrigação, contudo, deve ser proporcional à sobrecarga efectivamente decorrente da operação urbanística a realizar (art. 25º, n.º 3, do RJUE).


7. O requisito da proporcionalidade da contrapartida é expressamente estabelecido pelo art. 25º, n.º 6, que determina o desconto proporcional na taxa pela realização de infra-estruturas urbanísticas (1). Isto, claro está, nos casos em que essa taxa seja devida. Nos restantes, como o presente, em que a taxa não foi aplicada e os custos não foram reduzidos à partida, a proporcionalidade apenas poderia ser alcançada através da restituição do excedente.


8. Assim, a obrigação de assunção dos encargos com as infra-estruturas, estabelecida no art. 25º, n.º 1, do RJUE, é constituída pelo acto de licenciamento, sob a forma de condição.


9. Esta condição tem-se por verificada com a celebração do contrato antes da emissão do alvará (art. 25º, n.º 3, primeira parte). É deste modo que a lei procura garantir o cumprimento da condição, pelo particular.


10. A formalidade da celebração do contrato não constitui, por isso, requisito de validade do acto – tal requisito consiste na prévia estipulação da assunção, pelo requerente, dos encargos com a realização e manutenção da infra-estrutura em falta. Trata-se, antes, de uma condição integrativa da eficácia do acto, precedendo a emissão do alvará de licenciamento.


11. Assim, a verdadeira fonte desta obrigação de encargo com as infra-estruturas é o próprio acto de licenciamento. Neste caso, o contrato não é o acto constitutivo da situação jurídica mas, apenas, uma formalidade de garantia.


12. É certo que a formalidade contratual poderia ter servido para definir todos os aspectos relacionados com o estabelecimento da condição, começando pelo seu objecto – a execução das infra-estruturas previstas – mas o aspecto essencial, visado pelos artigos 24º e 25º do RJUE, está assegurado pelo depósito da caução.


13. Assim, apesar da omissão da formalidade contratual, o requerente cumpriu a condição legalmente estabelecida para o licenciamento, efectuando o depósito da quantia, o qual foi aceite como tal, pela Câmara Municipal, que procedeu à emissão do alvará.


14. Com a emissão do alvará, o acto de licenciamento adquiriu plena eficácia (art. 74º, n.º 2, do RJUE).


15. Cumprida a condição legalmente estabelecida, através do depósito voluntariamente efectuado pelo requerente, e emitido o alvará, a omissão da formalidade contratual perde toda relevância (2).



§2º – Dever de execução da obra pela Câmara Municipal


16. A condição prevista no art. 25º, n.º 1 do RJUE, porém, não é um simples requisito formal da viabilização de um acto de licenciamento mas, antes, uma medida destinada a assegurar a dotação efectiva das infra-estruturas devidas.


17. Ao determinar-se o encargo de uma infra-estrutura considerada necessária (sem a qual não poderia ter sido concedido o licenciamento), está-se, necessariamente, a determinar a realização dessa infra-estrutura.


18. Não se trata, por isso, de uma condição exclusivamente unilateral, unicamente vinculativa para o requerente: tendo o Município assumido a execução da infra-estrutura e o requerente depositado o pagamento, o Município fica constituído no dever de realizar a prestação que lhe compete.


19. Assim, ainda que não exista uma vinculação contratual formal, determinando os prazos e os termos específicos da obrigação de realizar as infra-estruturas, o requerente do licenciamento tem, no mínimo, um interesse legalmente protegido no cumprimento desse dever.


20. Antes de mais, por ter depositado uma caução para esse efeito, cujos encargos bancários continua a suportar.


21. Mas também como morador no local, titular do direito fundamental à qualidade de vida nos meios urbanos, consagrado no art. 66º, n.º 1, e n.º 2, alínea d), da Constituição, sendo ele o principal prejudicado com a ausência dessa infra-estrutura.


22. O dever de execução das infra-estruturas pagas pelo requerente decorre, ainda, do princípio da boa fé da Administração Pública, consagrado nos art. 266º, n.º 2, da Constituição, e no art. 6º-A do Código do Procedimento Administrativo: não pode o Município, por um lado, exigir o custeio de infra-estruturas que considera necessárias, assumindo a tarefa de as executar, para, depositada a caução pelo particular, deixar as infra-estruturas por realizar.


23. O particular fica duplamente prejudicado, pois suporta os encargos financeiros e, por outro lado, permanece lesado na sua qualidade de vida pela ausência da infra-estrutura devida.


24. Na falta de uma definição expressa dos prazos para início e conclusão das infra-estruturas a executar pela autarquia, deve ter-se em consideração o prazo estabelecido, pela própria, para a execução da obras licenciadas, uma vez que a finalidade que preside a ambas é a mesma: possibilitar a criação de uma habitação em condições de ser utilizada.


25. Tal integração resulta da aplicação do princípio da boa fé da Administração Pública, considerando o objectivo comum visado pela estipulação desses trabalhos (art. 6º-A, n.º 2, alínea b), do Código do Procedimento Administrativo).


26. Parece-me, pois, indiscutível que o Município de Marinha Grande deve executar (deveria ter já executado) a infra-estrutura em falta, que fora prontamente paga pelo requerente.


27. Acresce o dever de redução proporcional do encargo, nos termos expostos nos pontos 4 a 7 do § 1º.



§ 3º- Revogação da condição e dever de devolução da caução


28. Sem prejuízo das conclusões acima alcançadas, quanto à validade e eficácia do licenciamento da construção e ao dever de execução da infra-estrutura em falta, não se pode deixar de ter presente a circunstância de estar, actualmente, prevista a remodelação desse mesmo projecto de infra-estruturas, por força da integração no Plano de Pormenor da Garcia.


29. Tal situação pode justificar o protelamento da execução da estrada, de modo a que esta venha a ser enquadrada na execução do referido plano.


30. Neste sentido, depõem os princípios da racionalidade e da eficiência, inerentes à prossecução do interesse público, consagrados artigos 266º, n.º 1, e 267º da Constituição: não faz sentido executar-se uma estrada (ainda para mais, a expensas do particular), para se refazer tudo de seguida, no âmbito da execução do plano de pormenor.


31. A execução da infra-estrutura no âmbito do plano de pormenor permitirá, aliás, assegurar a justa repartição dos custos dessa infra-estrutura, através dos mecanismos de perequação legalmente previstos.


32. No entanto, ao relegar a execução da infra-estrutura para aquele momento, a Câmara Municipal está, necessariamente – ainda que de forma implícita – a revogar a prestação imposta ao reclamante, no acto de licenciamento da construção, substituindo-a pela realização das infra-estruturas do plano de pormenor.


33. Trata-se de uma revogação por substituição, nos termos do art. 147º do Código do Procedimento Administrativo (CPA).


34. A condição imposta pelo acto de licenciamento da construção do reclamante, nos termos do art. 25º, n.º 1, do RJUE, encerrava duas obrigações distintas:



a) a obrigação de custear a infra-estrutura, a cargo do requerente;
b) a obrigação de executar a infra-estrutura, a cargo do Município (que confere ao requerente um interesse legalmente protegido).


35. No que respeita à prestação do requerente, verificou-se que a condição é ilegal, por não observar a medida da proporcionalidade.


36. A revogação da condição inicialmente estabelecida, com substituição pela execução da estrada no âmbito do plano de pormenor, permite assegurar o cumprimento do dever assumido pela autarquia – não afectando, assim, o interesse legalmente protegido do particular – corrigindo, por outro lado, o vício de proporcionalidade da prestação imposta ao requerente: este, em lugar de custear integralmente a infra-estrutura, passa a pagar apenas a parte que lhe couber no cálculo perequativo do plano de pormenor.


37. Tal revogação parcial, por substituição, é permitida, desde logo, pelo art. 140º, n.º 2, do CPA, pois trata-se de eliminar a parte do acto desfavorável ao titular do direito, salvaguardando o interesse legalmente protegido inerente à execução dessa infra-estrutura, no âmbito do plano de pormenor (3). 



III
Conclusões




I. A licença de construção é plenamente válida e eficaz;


II. A condição estabelecida com o licenciamento, apesar de se mostrar desproporcionada diante da prestação imposta ao requerente, foi por este cumprida, vinculando a autarquia ao dever de executar a prestação aí assumida;


III. Encontrando-se prevista a redefinição e a execução, no âmbito do Plano de Pormenor de Garcia, da infra-estrutura objecto da condição estabelecida no acto de licenciamento em questão, é legítima a substituição do projecto inicial pelo projecto que vier a ser definido no referido plano de pormenor;


IV. Deve, no entanto, a Câmara Municipal proceder em conformidade, revogando a condição estabelecida no acto de licenciamento e determinando, expressamente, a realização desse projecto no âmbito da execução do plano de pormenor;


V. Revogada a condição, deve ser restituída a quantia depositada a título de caução;


VI. Caso, no entanto, a Câmara Municipal entenda executar a obra imediatamente, deve repor a proporcionalidade do financiamento cobrado ao requerente;


VII. Na falta de mecanismo específico, a reposição da proporcionalidade terá de ser assegurada através da devolução do excedente;


VIII. Deve, por fim, ficar assegurada, em regulamento municipal, a previsão da redução proporcional das taxas devidas pela realização de infra-estruturas urbanísticas, estipulada pelo art. 25º do RJUE. 



Recomendação


Nos termos do disposto no artigo 20º, n.º1, alínea a), da Lei n.º9/91, de 9 de Abril, e em face das motivações precedentemente expostas, recomendo à Câmara Municipal de Marinha Grande:







I. A revogação da condição imposta ao requerente do licenciamento da construção acima identificada;


II. A restituição, ao requerente do licenciamento, da totalidade da quantia por este despendida para efeitos de cumprimento da referida condição, deduzidas as despesas relativas aos trabalhos já realizados pela autarquia;


III. A determinação da realização da infra-estrutura em questão no âmbito da execução do Plano de Pormenor da Garcia, assegurando a substituição da prestação assumida pela Câmara Municipal e, desse modo, a protecção do interesse legalmente protegido do requerente;


IV. A aplicação, no âmbito do Plano de Pormenor da Garcia, dos mecanismos de perequação legalmente previstos;


Recordo, por fim, a V. Ex.a. o ónus contido no art. 38º, nº2, do citado Estatuto do Provedor de Justiça, para o qual me permito pedir a melhor atenção.



O Provedor de Justiça,
H. Nascimento Rodrigues


 


 


Notas de rodapé:


(1) Só deste modo é possível garantir uma distribuição, por todos os beneficiados, dos custos de infra-estruturas de uso comum suportados exclusivamente por um dos proprietários: aquele que custeia inicialmente a infra-estrutura (investindo conforme a sua conveniência), pode beneficiar de um desconto proporcional desses custos; os restantes, que venham posteriormente a aproveitar as infra-estruturas realizadas, pagarão a taxa na íntegra. A concretização desta norma depende, contudo, da sua regulamentação municipal. Segundo apuramos, no Município de Marinha Grande, o Regulamento Municipal das Edificações Urbanas, publicado através do Aviso n. º 1450/2002 (2ª Série), do DR, II Série, n.º 48, de 26.02.2002, não regula esta matéria.


(2) Trata-se de uma figura conhecida como formalidade não essencial, desenvolvida pela doutrina e pela jurisprudência a propósito da validade dos actos administrativos mas aplicável, também, à eficácia: a omissão de uma formalidade prescrita por lei pode prejudicar a validade ou a eficácia do acto sobre que incide, quando a finalidade visada com a exigência dessa formalidade seja atingida de outro modo, sem lesão relevante para o interesse público ou para os direitos do particular. Mas, de todo o modo, à luz do disposto nos artigos 184º e 185º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, a preterição da forma escrita do contrato apenas teria como valor negativo a anulabilidade (art. 135º) e, por conseguinte, há muito que já ocorrera a sua convalidação pelo decurso do tempo (art. 141º).


(3) A violação da regra da proporcionalidade, imposta pelo art. 25º, n.º 3. do RJUE, seria susceptível de causar a anulabilidade dessa condição. Não tendo havido revogação nem anulação dentro do prazo legalmente devido, a invalidade ficou sanada. Aplica-se, por esta razão, o regime da revogação de actos válidos constitutivos de direitos ou interesses legalmente protegidos.


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