RECOMENDAÇÃO N.º 6/B/2007
[artigo 20, nº1, alínea b) da Lei nº9/91, de 9 de Abril]



Entidade visada: Secretário de Estado do Ordenamento do Território
Proc.º: P-4/07 (A1)
Área: A1
Data: 14-12-2007


Assunto: Regime jurídico da urbanização e da edificação – alteração do uso – propriedade horizontal


 
I
-Exposição de motivos-



I. Tomo a iniciativa de me dirigir a V.Ex.a., em vista da publicação da Lei n.º 60/2007, de 4 de Setembro, e das modificações introduzidas no Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, ponderando encontrar-se em curso a consequente revisão das normas regulamentares, em especial da Portaria n.º 1110/2001, de 19 de Setembro (elementos a instruir os procedimentos administrativos de controlo das operações urbanísticas).



II. Em numerosas reclamações que me são apresentadas surge controvertida uma questão que, justamente, considero poder ser ultrapassada no quadro regulamentar.



III. Refiro-me à aferição da legitimidade dos promotores de operações urbanísticas em face das normas civis relativas à propriedade horizontal.



IV. Os problemas surgem, normalmente, a respeito de estabelecimentos com actividades incómodas, instalados em fracções autónomas de edifícios multifamiliares e em desconformidade com o título constitutivo da propriedade horizontal. Dir-se-ia, à partida, que o conflito, porque de natureza privada, nada teria a ver com o controlo municipal das operações urbanísticas, mas não é bem assim.



V. São estabelecimentos cuja actividade colide frequentemente com bens jurídicos protegidos por normas de direito público, justificando o controlo municipal sobre o uso previsto para uma nova construção ou para parte de uma edificação já existente. Mesmo que não sejam executadas obras, há em todo o caso de ser obtida autorização para a mudança de utilização.



VI. A salubridade, a segurança e o bem-estar de terceiros são muitas vezes afectadas por diferentes utilizações de fracções autónomas que, não raro, na licença de utilização se prestam a um uso largamente indiferenciado. Reporto-me, nomeadamente a:




i. estabelecimentos de restauração e bebidas com ou sem sala de dança, com ou sem música ao vivo, com ou sem esplanada adjacente;
ii. estabelecimentos de comércio a retalho de géneros alimentares, em especial, talhos, charcutarias, supermercados e outros com ruído dos aparelhos de frio ou das cargas e descargas no fornecimento;
iii. oficinas industriais ou de reparação de veículos como motor;
iv. salões de barbeiro e de cabeleireiro;
v. lavandarias;
vi. ginásios,


VII. O início da actividade encontra-se, quase sempre, sujeito a licenciamento ou autorização e compreende, por norma, obras de instalação, configurando uma alteração do uso licenciado para a fracção.




II
– Apreciação-



VIII. A minha apreciação destas queixas revela que, muitas vezes, as câmaras municipais, na análise dos requerimentos, limitam-se a verificar a observância de prescrições estritamente urbanísticas.



IX. Seria desejável que assim fizessem, não fora o caso de o Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação prever – e continuar a prever, na sua nova versão – um controlo preliminar da legitimidade do interessado, exigindo-lhe «indicação da qualidade de titular de qualquer direito que lhe confira a faculdade de realizar a operação urbanística» (artigo 9.º, n.º 1), pois, de outro modo, o pedido poderá ser indeferido por ilegitimidade, liminarmente ou até à decisão final (artigo 11.º, n.º 5).



X. A apreciação da legitimidade basta-se, não raro, com a apresentação de documento – por norma, certidão da conservatória do registo predial – que indicie a propriedade, usufruto ou outro direito real de gozo na titularidade do requerente. Tratando-se de arrendatário, justifica-se obter do interessado prova da autorização do senhorio.



XI. Já todavia, no caso das relações jurídicas reais de propriedade horizontal constitui prática comum abstrair da autorização do condomínio para introduzir um desvio ao fim adstrito a determinada fracção, de acordo com o título constitutivo da propriedade horizontal.



XII. Tenho, pela minha parte, procurado persuadir as autoridades municipais a efectuarem um mínimo de controlo: verificar se o título constitutivo foi alterado em conformidade, nos termos do artigo 1419.º do Código Civil, ou se, na falta de especificação quanto ao uso de uma fracção, teve lugar a aprovação por maioria representativa de dois terços do valor do prédio, em assembleia de condomínio (artigo 1422.º, n.º 4).



XIII. Só pode dar-se como verificada a legitimidade, mesmo em termos abstractos, quando estes pressupostos estejam observados, pelo menos, no sentido que se encontra no enunciado do artigo 9.º, n.º 1, do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação: indicação de ser titular de um direito que compreenda a faculdade de executar a operação visada.



XIV. Não se trata de endereçar às câmaras municipais o encargo de conferirem a situação jurídica do interessado à luz do título constitutivo, mas sim, de a confrontar com as normas imperativas do Código Civil que impõem condicionantes à livre disposição das fracções autónomas, designadamente, o disposto no artigo 1422.º, n.º 3 e n.º 4 – autorização da assembleia de condóminos, por maioria qualificada, para «obras que modifiquem linha arquitectónica ou o arranjo estético do edifício» ou para alteração ao uso de certa fracção autónoma, mesmo quando o título constitutivo nada disponha sobre o fim a que se encontra adstrita.



XV. Por outro lado, há-de reconhecer-se às normas sobre propriedade horizontal natureza parcialmente pública, como o deixa antever a sua imperatividade sobre a autonomia convencional dos proprietários.



XVI. É por imperativos de ordem pública urbanística que «só podem ser objecto de propriedade horizontal as fracções autónomas que, além de constituírem unidades independentes, sejam distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública» (artigo 1415.º).



XVII. O mesmo se diga de algumas disposições contidas no Decreto-Lei n.º 268/94, de 25 de Outubro, designadamente, nos seus artigos 10.º e 11.º, em que se articula, de algum modo, a esfera das relações jurídicas administrativas como feixe das relações privadas interiores ao condomínio (1).



XVIII. Mas, mais ainda. Com a redacção concedida pelo Decreto-Lei n.º 267/94, de 25 de Outubro, ao artigo 1418.º, n.º 3, do Código Civil, e na esteira de anterior jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, quebrar-se-ia o princípio da natureza estritamente pública da licença municipal, ao cominar-se com a nulidade o título constitutivo da propriedade horizontal que vier a mostrar-se incompatível «com o projecto aprovado pela entidade pública». Quer isto dizer que, na eventualidade de ser licenciada ou autorizada uma alteração ao uso de certa fracção autónoma – por exemplo, de comércio para serviços – mesmo contra a maioria dos condóminos, o título constitutivo cede, malogrando a defesa dos interesses legalmente protegidos dos condóminos opositores.



XIX. Regressemos ao Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, cujo desenvolvimento regulamentar, por portaria a fixar os elementos que devem instruir o pedido de licença ou autorização, assim como a comunicação prévia, me parece poder contribuir para a unidade da ordem jurídica.



XX. Muito embora se consagre, nos termos do artigo 11.º do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação (RJUE), a presunção de que, não ocorrendo rejeição liminar ou convite a corrigir ou a completar o pedido nos prazos previstos, o requerimento se encontra correctamente instruído, tal presunção é apenas de juris tantum. Como tal, dispõe-se no n.º 6, como se viu, que o presidente da câmara municipal deve conhecer a qualquer momento do procedimento qualquer questão que prejudique o seu andamento normal ou impeça a tomada da decisão, nomeadamente a ilegitimidade.



XXI. Parece implícito nesta norma o desiderato de prevenir a conflitualidade, mas também e, fundamentalmente, de obstar a uma clivagem entre direito público e direito privado que se mostra incompreensível para a generalidade dos cidadãos. Se a resolução de conflitos de natureza privada cabe, em última análise, aos tribunais, não deve a Administração Pública descurar a sua prevenção, concorrendo, deste modo, para a consolidação da paz social.



XXII. Recorde-se que, na dúvida, o presidente da câmara municipal determina a suspensão do procedimento até que o tribunal competente dirima a questão controvertida (artigo 11.º, n.º 7), na linha de disposição análoga contida no artigo 31.º do Código do Procedimento Administrativo.



XXIII. Não devem as câmaras municipais deixar de atender às relações de interdependência dos condóminos no uso e fruição do prédio e às suas repercussões para a comodidade e tranquilidade do condomínio e segurança do edifício.



XXIV. A modificação no destino da fracção autónoma pode implicar, bem assim, a alteração da correspondente disposição do título constitutivo da propriedade horizontal, pelo que sempre pressupõe a anuência do condomínio (artigo 1419º do Código Civil).



XXV. Ora, sem que o requerente apresente documento comprovativo da autorização dos condóminos quanto à utilização projectada, designadamente a acta da assembleia de condóminos que aprovou a alteração da utilização, não dispõe a câmara municipal de elementos que asseverem a legitimidade do requerente, pelo que o pedido não deve ser admitido (2).



XXVI. Na verdade, ainda que o requerente, comproprietário das partes comuns, seja titular de um direito que abstractamente lhe confere legitimidade, a verdade é que, atentas as limitações decorrentes das relações de interdependência características da propriedade horizontal, ele não pode, em concreto, exercer a actividade pretendida (3).



XXVII. Diferente entendimento, que se baste com a exibição de documento que titule a posse exercida sobre a fracção autónoma, sujeita os condóminos às consequências da alteração do uso da fracção, sem deliberação válida da assembleia de condóminos.



XXVIII. Como tal, consubstancia a subversão da escritura da propriedade horizontal, por deliberação camarária e emissão de licença de utilização.



XXIX. Nestes casos, a aprovação administrativa priva os condóminos da faculdade de se oporem ao novo uso, afectando incondicionalmente os direitos de terceiros. Quebra-se, deste modo, o princípio de que a autorização ou licença urbanística é concedida sob reserva de direitos de terceiros, os quais vêem a sua esfera jurídica, designadamente os direitos que lhe são conferidos por normas jurídico-privadas ou por contrato entre particulares, preteridos pela aprovação.




III
-Conclusões-



XXX. Em face do exposto, não posso deixar de advertir para a necessidade de serem acautelados os direitos dos condóminos em procedimentos de alteração de uso de fracções autónomas (4).



XXXI. Neste sentido, pondero que a regulamentação prevista no artigo 9º, nº4, do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, possa determinar que, entre os elementos instrutórios do pedido de autorização de alteração do uso, cujo objecto coincida com edifício constituído em regime de propriedade horizontal, deva ser junta prova de autorização pela assembleia do condomínio ou, sendo caso disso, da modificação do título constitutivo.



XXXII. Na verdade, o regulamento em vigor (Portaria nº1110/2001, de 19 de Setembro), limita-se a exigir documento comprovativo da qualidade de qualquer direito que confira a faculdade de realização da operação (n.º 15, alínea a), o que pouco mais faz do que reproduzir o enunciado da lei.



XXXIII. Ora, é possível observar na prática administrativa uma tendência quase generalizada das câmaras municipais para deixar à margem a apreciação da conformidade dos pedidos de licença e autorização disciplinados pelo Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação com as disposições de natureza civil relativas à propriedade horizontal.  


XXXIV. As câmaras municipais apenas verificam mostrar-se indiciada a propriedade do edifício ou a titularidade de outro direito real de gozo, prescindindo da apreciação do fim previsto na escritura de propriedade horizontal e, por maioria de razão, da autorização do condomínio à alteração do uso requerida.



XXXV. A asserção de que as licenças e autorizações urbanísticas estão sujeitas ao controlo de regras de direito de urbanismo – a sua concessão é efectuada sob reserva de direitos de terceiros – não obsta à consideração de algumas regras de direito privado, atendendo a que a Administração tem o dever de averiguar as normas que se relacionam directamente com a legitimidade O procedimento de licenciamento ou autorização não se reconduz a uma relação entre a autoridade administrativa e a requerente, dele emergem várias relações em que se interpenetram interesses públicos e privados conflituantes, merecedores de uma cuidadosa ponderação. (v. Fernanda Paula Oliveira, ob. cit. p.4).



XXXVI. Como avisadamente expõe Gomes Canotilho (5), o titular de uma autorização administrativa deve poder confiar no resultado jurídico que as normas atribuem ao acto administrativo autorizativo. Se um acto administrativo autorizativo exclui a ilicitude no âmbito do direito administrativo, ele deverá também ser considerado como causa justificativa da ilicitude no domínio jurídico-civil.



Se nem sempre é assim, parece desejável, no domínio da propriedade horizontal, que se dêem passos nesse rumo.



* * * * *



Considerando, assim (a) o dever de a Administração Pública conferir a legitimidade do requerente, (b) o fim de interesse público subjacente ao regime da nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal desconforme com o projecto aprovado pelo município e (c) os inconvenientes que a viabilização de um uso não habitacional, não autorizado pelo condomínio, necessariamente acarreta para a qualidade de vida dos moradores e para a paz social, devo exercer o poder que me é conferido pela disposição compreendida no artigo 20.º, n.º1, alínea b), da Lei nº9/91, de 9 de Abril, e, como tal, RECOMENDAR a Vossa Excelência:







que, na revisão das normas regulamentares da Lei nº60/2007, de 4 de Setembro, sejam estabelecidas disposições apropriadas a determinar a inclusão, entre os elementos instrutórios a acompanhar os pedidos de licença ou autorização e as comunicações prévias, quando esteja em causa a alteração do uso de fracções autónomas, de documento que indicie a autorização pela assembleia de condomínio ou a modificação do título constitutivo da propriedade horizontal.



Queira Vossa Excelência, em cumprimento do dever consagrado no artigo 38.º, nº2, do Estatuto aprovado pela Lei nº9/91, de 9 de Abril, dignar-se informar sobre a sequência que o assunto venha a merecer.




O Provedor de Justiça,
H. Nascimento Rodrigues


 


 


 


Notas de rodapé:


(1) Assim, pode ler-se no artigo 10.º do Decreto-Lei nº268/94, de 25 de Outubro: «Celebrado contrato-promessa de compra e venda de fracção autónoma a constituir, e salvo estipulação expressa em contrário, fica o promitente-vendedor obrigado a exercer as diligências necessárias à constituição da propriedade horizontal e à obtenção da correspondente licença de utilização.» E, por sua vez, no artigo 11.º: «Para efeitos da aplicação do disposto nos artigos 9.º, 10.º, 12º e 165.º do Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto-Lei nº38 382, de 7 de Agosto de 1961, é suficiente a notificação do administrador do condomínio».
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(2) Fernanda Paula Oliveira sustenta dever ser rejeitado o pedido de licenciamento ou autorização «quando o requerente não faça prova da legitimidade, quando resulte claramente dos documentos entregues que ele não é, efectivamente, o titular do direito que invoca, ou se faz, no procedimento, prova disso; ou quando o direito que se invoca não permite realizar a operação em causa, que é o que acontece nas situações em que, por exemplo, o requerente invoca a qualidade de arrendatário, mas o pedido de licenciamento diz respeito a obras que necessitam do consentimento do senhorio; o requerente é proprietário do terreno, mas na certidão do registo predial que apresenta está registada uma servidão de passagem exactamente no local para onde se projecta a obra que pretende realizar; o requerente é proprietário de uma fracção autónoma, mas a obra necessita do consentimento do condomínio; o requerente é proprietário, mas é apresentado perante a Administração um documento válido pelo qual o requerente se comprometeu perante o vizinho a não construir naqueles termos, etc.» (in A Legitimidade nos procedimentos urbanísticos, Revista «O Municipal» n.º 265, Fevereiro 2003, p.4).
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(3) Enquanto que, de acordo com o regime do Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, o requerente deveria invocar a qualidade de proprietário, usufrutuário, arrendatário, titular do direito de uso e habitação, etc, o actual regime reporta-se a um direito que permita realizar a operação urbanística em causa. Sobre este ponto, sustentando que quando estas situações de ilegitimidade são detectadas após a concessão da licença ou autorização, deve declarar-se a nulidade da decisão, por ausência de um elemento essencial da mesma, constituindo a legitimidade um pressuposto procedimental subjectivo, veja-se Direito do Urbanismo e Autarquias Locais, ob. colectiva, CEDOUA-FDUC-IGAT, p. 128.
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(4) Neste sentido, in Direito do Urbanismo e Autarquias Locais, afirma-se que a administração autárquica deve actuar “de forma a evitar, in concreto, contradições normativas e a lesão do princípio da protecção da confiança“, concorrendo para a unidade do sistema jurídico (p. 126).
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(5) Actos Autorizativos Jurídico-Públicos, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. LXIX, Coimbra 1993, p. 24.
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