RECOMENDAÇÃO N.º 7/A/2006
[artigo 20º, nº1, alínea a), da Lei nº 9/91, de 9 de Abril]





Entidade visada: Presidente da Câmara Municipal de Celorico da Beira
Proc.º: R-3295/05
Data: 07-09-2006


Assunto: Obras públicas – distribuição de energia eléctrica em baixa tensão – acordo de colaboração – culpa in contrahendo – responsabilidade civil – princípio da boa fé – igualdade na repartição com os encargos públicos


§1.º Dos factos



1. Procedemos à audição de V.Ex.a. acerca de reclamação apresentada sobre a comparticipação nas despesas com infra-estruturas de distribuição de energia eléctrica por parte de moradores no lugar de Mortórios, freguesia de Linhares da Beira.



2. Confrontados com a indisponibilidade financeira do município para custear integralmente as benfeitorias necessárias ao fornecimento domiciliário de energia eléctrica, alguns moradores aquiesceram na comparticipação com os custos – orçados em € 27.923, 45 – assumindo o erário municipal os encargos com o posto de transformação.



3. Suscitada a questão de um eventual locupletamento indevido por parte de terceiros, os comparticipantes entenderam que sempre haveria lugar ao ressarcimento, asseverando-lhes a Câmara Municipal que os pedidos de ligação para fornecimento – por terceiros – seriam sempre do conhecimento municipal.



4. Minutadas as cláusulas de um acordo entre os interessados, ora reclamantes, e o município, aqueles vieram a prestar a quantia necessária, em 2003.



5. Todavia, instada a pronunciar-se acerca da licitude do acordo, a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional – Centro viria a suscitar objecções e a EDP, SA, concessionária, opinaria, em 18.05.2006, que por se tratar de rede pública, não poderia recusar a ligação requerida por outros proprietários, dentro de certos limites da potência a instalar, limitando-se os custos a designado PFE BT, vulgo, baixada.



6. A questão controvertida no plano especulativo viria a revelar-se de interesse actual, logo que um terceiro logrou beneficiar da ligação à rede eléctrica sem comparticipar nos custos.



7. Interpelada a Câmara Municipal presidida por V.Ex.a., foi-lhes retorquido não ter este órgão como impedir ou condicionar o acesso de terceiros nem sequer como liquidar a participação nos encargos. Mais oporia a Câmara Municipal que o acordo firmado com os reclamantes não possuiria valor jurídico, pois não fora objecto de deliberação pelo executivo.



8. Pretendem os reclamantes alcançar o ressarcimento integral das despesas efectuadas, considerando injusto terem de suportar isoladamente o encargo, mas o município contrapõe não dispor de receitas que lhe permitam fazê-lo. 



§2.º Do enquadramento normativo



1. De acordo com o disposto no artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 344-B/82, de 1 de Setembro, compete aos municípios proverem pelas necessárias infra-estruturas de distribuição de energia eléctrica em baixa tensão, podendo optar pela exploração directa ou por outorgarem contrato de concessão.



2. O município de Celorico da Beira deu de concessão à EDP, SA, a distribuição de energia eléctrica, seguindo os termos das cláusulas contratuais gerais enunciadas na Portaria n.º 454/2001, de 5 de Maio.



3. No quadro das obrigações próprias do serviço público de distribuição de energia eléctrica em baixa tensão – cujas redes compreendem os postos de transformação, as linhas, os ramais, as instalações de iluminação pública e os equipamentos acessórios (Decreto-Lei n.º 29/2006, de 15 de Fevereiro (1)) – fixam-se garantias de universalidade, segurança, regularidade e qualidade do fornecimento.



4. Todos têm direito de ligação à rede, contanto que sejam cumpridos os requisitos técnicos e regulamentares, obrigando-se a concessionária, nos termos do artigo 10.º n.º 1, do modelo de contrato, aprovado pela citada portaria, a fornecer energia eléctrica a quem o requisite.



5. Pode, porém, o requisitante ter de participar nos custos das acções necessárias – imediatas ou de execução diferida – se a potência a contratar exceder determinado valor (artigo 10.º, n.º 2).



6. Não há previsão alguma de gratuitidade nas ligações à rede, dispondo-se no artigo 38.º do citado Decreto-Lei n.º 29/2006, que a ligação da rede de transporte, das instalações de produção e de consumo às redes de distribuição – e destas entre si – há-de mostrar-se economicamente adequada, de acordo com o Regulamento de Relações Comerciais e com o Regulamento da Rede de Distribuição.



7. Os operadores estão obrigados a proporcionar aos interessados – sem discriminação – o acesso às redes, com base no tarifário geral, de acordo com o Regulamento de Acesso às Redes e às Interligações, ao passo que os consumidores se encontram investidos no direito de acederem às redes e de serem informados dos seus direitos.



8. Uns e outros, todos se encontram vinculados a agir de boa fé (artigo 6.º-A, do Código do Procedimento Administrativo) o que não pode deixar de compreender os deveres acessórios próprios da formação dos negócios jurídicos e cuja preterição determina a designada culpa in contrahendo e a responsabilidade civil pré-contratual associada (artigo 227.º do Código Civil).



§3.º Da aplicação do direito



1. É plausível admitir que os queixosos, quando da formação do acordo com o município, contavam com o seu ulterior ressarcimento, num investimento que ultrapassava o interesse directo e pessoal de cada um, caso viessem terceiros a fruir de ligação à rede.



2. De outro modo, mal se compreenderia que tivessem pago a quantia que pagaram, não a título de liberalidade, mas a título de cooperação entre os seus interesses e o interesse geral protagonizado pelo município.



3. Por seu turno, nada os levaria a fazer supor que a Câmara Municipal se absteria de aprovar o contrato outorgado, uma vez que não hesitou em arrecadar a receita obtida junto dos proprietários, ora reclamantes.



4. Ao proceder deste modo, o município, através do seu órgão executivo, agiu de forma contraditória, frustrando a legítima confiança depositada pelos queixosos no acordo celebrado com o município.



5. Com efeito, o município prestou a soma obtida à concessionária e a obra veio a ser executada, mas actuou em desconformidade com aquilo que ficara assente entre as partes e que, de resto seria razoável esperar do seu procedimento, o que é dizer que faltou ao princípio da boa fé na leitura comum que dele faz a jurisprudência administrativa, v.g. no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, 1ª Sub., de 18.06.2003 (proc.º 1188/02).



6. O serviço público em questão pertence às atribuições municipais, motivo por que, melhor do que ninguém, era a Câmara Municipal que deveria conhecer os termos em que poderia, ou não, acordar com um grupo de proprietários a sua cooperação, não lhe sendo lícito opor supervenientemente nem o facto de o contrato jamais ter sido aprovado formalmente nem tão-pouco o de não poder obstar à ligação de terceiros sem custos.



7. De há muito que o princípio da boa fé é visto pela dogmática civil como um complexo de deveres para as partes, designadamente de protecção, de informação e de lealdade (2). Tratando-se de uma pessoa colectiva pública, estes deveres são qualificados, pois surgem de par com o princípio da legalidade e com os princípios da justiça e da protecção dos direitos e interesses legalmente protegidos dos administrados (artigo 266.º, n.º 2, da Constituição).



8. Sem a colaboração dos particulares, não teria o município de Celorico da Beira prosseguido as suas atribuições, mas nada o obrigava a proceder como procedeu. Bastar-lhe-ia opor aos reclamantes que, não tendo como evitar que terceiros se locupletassem das estruturas criadas, teriam estes de assumir isoladamente o encargo. Futuros requisitantes de ligação à rede estariam vinculados apenas moralmente, a título de obrigação natural, na repartição dos custos por igual. Não o fez, porém.



9. O dano sofrido pelos reclamantes é um dano tipicamente negativo, no sentido que lhe reconhece o Supremo Tribunal Administrativo no acórdão da 2ª Subsecção, de 23.09.2003 (Proc.º 1527/02), o que importará repor o seu património no estado em que se encontrava se não tivessem entabulado as negociações preliminares e não tivessem suportado os encargos que suportaram.



10. É sustentado que, em outros lugares, os particulares que tomaram a iniciativa jamais reclamaram contra a ligação sem custos por terceiros. Este argumento não pode ir mais longe do que a disponibilidade de cada um na gestão dos seus próprios direitos e interesses. Porventura sentiram-se lesados, mas não reagiram ou talvez se tenham conformado, animados por propósitos altruístas que, no entanto, não é legítimo presumir da conduta típica das partes num negócio oneroso.







Em conclusão, entendo dever o município de Celorico da Beira, uma vez que não lhe é lícito condicionar o acesso de terceiros à rede de distribuição de energia eléctrica em baixa tensão, no lugar de Mortórios, freguesia de Linhares da Beira, mas que criou decisivamente condições para uma injusta repartição com os encargos públicos, restituir aos proprietários o quinhão destes na execução da obra de melhoramento, o que RECOMENDO a V.Ex.a., Senhor Presidente, nos termos do disposto no artigo 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril (Estatuto do Provedor de Justiça).



Permita-me chamar a atenção para o dever que incumbe à Câmara Municipal presidida por V.Ex.a. de me transmitir, nos próximos 60 dias, a deliberação que vier a proferir (artigo 38.º, n.º 2, idem).



O Provedor de Justiça,



H. Nascimento Rodrigues


 


 





Notas de rodapé:


(1) Bases Gerais da Organização e Funcionamento do Sistema Eléctrico Nacional.
(2) v. por todos, António Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, I, Coimbra, 1984, p. 577.


[voltar atrás]