RECOMENDAÇÃO N.º 13/A/2002
[Art. 20º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril]


Entidade visada: Comissão de Assuntos Científicos da Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa
Nossa Ref.ª – Proc.º: R-2277/02
Data: 2002/12/26


Assunto: Provas de doutoramento de M.



1. Com referência ao processo e assunto mencionados em epígrafe, agradeço, antes de mais, a V.ª Ex.ª, as comunicações dessa Comissão prontamente enviadas após cada pedido de esclarecimento feito por este Órgão do Estado, cujo teor permitiu a análise do objecto da presente queixa e a consequente formulação das considerações e recomendações que a seguir se explicitam.


2. No âmbito da situação de excepção resultante do processo de sindicância à Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa, a Comissão de Assuntos Científicos tem hoje assento legal no Despacho do Reitor daquela Universidade n.º 14.232-A/2001, publicado no Diário da República, II Série, de 06 de Julho, com as competências aí definidas, que incluem, designadamente, as previstas no art.º 25.º dos respectivos Estatutos para o Conselho Científico da Faculdade de Arquitectura.


Assim sendo, é a essa Comissão que é dirigido, ao abrigo do disposto no art.º 4.º, n.º 1, do Regulamento dos Doutoramentos da Universidade Técnica de Lisboa, aprovado pela Deliberação do Senado n.º 2/UTL/93, o requerimento para a realização das provas de doutoramento.


3. Foi o que fez, em 23 de Fevereiro de 2001, a Licenciada M.


Na referida data, o orientador da doutoranda encontrava-se a cumprir uma pena disciplinar – de inactividade por um período de dois anos, iniciado em Junho de 2000 -, razão pela qual não admitiu a Comissão de Assuntos Científicos que o mesmo fizesse parte do júri das mencionadas provas, nem aceitou o relatório final que aquele havia elaborado a propósito da dissertação da ora reclamante.


De facto, de acordo com o Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 24/84, de 16 de Janeiro, a pena de inactividade consiste no afastamento completo do funcionário ou agente do serviço durante o período da mesma, implicando, para o que aqui interessa, o não exercício do cargo ou função, e a perda, para efeitos de remuneração, antiguidade e aposentação, do número de dias coincidente com o da suspensão, isto é, a suspensão do vínculo funcional durante o período de cumprimento da pena (cf. art.ºs 11.º, n.º 1, alínea d), 12.º, n.º 3, e 13.º, n.ºs 5 e 7, do mencionado Estatuto).


Esclareça-se que o orientador da dissertação terá de ser professor ou investigador de um estabelecimento de ensino, nos termos preceituados no art.º 11.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto Lei n.º 216/92, de 13 de Outubro, que disciplina a obtenção dos graus de mestre e de doutor – o mesmo normativo refere-se à possibilidade de um especialista na área da dissertação, reconhecido como idóneo pelo órgão competente da instituição que confere o grau, poder ser orientador de uma dissertação, mas esta não era decididamente a situação do orientador no caso de que nos ocupamos.


É certo que tal solução normativa apenas surge explicitamente dirigida à orientação de dissertação de mestrado e não de doutoramento. Fará sentido, contudo, por maioria de razão, que tal exigência seja aplicada também num nível mais exigente, como é o do doutoramento.


Que assim é, corrobora-o a aceitação desta solução no art.º 3.º, n.ºs 1 e 2, do já citado Regulamento dos Doutoramentos da Universidade Técnica de Lisboa.


Por tudo o que fica exposto, é forçoso concluir que o orientador da doutoranda M. não reunia, à data em que esta terá entregue a tese e efectuado o pedido para a realização das provas, os requisitos necessários ao exercício das funções em apreço. Aliás, nos termos legais atrás expressos, não seria nunca possível ao mencionado orientador cumprir o patrocínio de qualquer dissertação, no período abrangido pela pena de inactividade.


4. À partida, pelo que acima fica dito, poderia parecer que a actuação da Comissão de Assuntos Científicos, no caso aqui em discussão, estaria isenta de reparo. Assim não acontece, conforme se explicitará de seguida.


Primeiramente, refere o art.º 19.º, n.º 2, do já citado Decreto-Lei n.º 216/92, que do requerimento de candidatura ao doutoramento “deve constar, para além do curriculum vitae, o domínio a investigar, o professor que escolheu para orientador e a aceitação deste (sublinhado meu).


Prossegue o n.º 3 do mesmo normativo com a indicação de que quem se encontrar nas condições definidas no n.º 2 do art.º 18.º do mesmo diploma, isto é, quem seja detentor de um currículo científico, académico e profissional que ateste capacidade para a habilitação ao grau de doutor, apreciado pelo órgão competente da universidade que confere o grau, “pode apresentar-se a provas de doutoramento sob sua exclusiva responsabilidade (sublinhado meu).


Tendo em consideração que não foi com base no art.º 18.º, n.º 2, do diploma em referência, que a reclamante apresentou a sua candidatura, mas antes ao abrigo do respectivo n.º 1, alínea a), e interpretando a contrario a norma contida no art.º 19.º, n.º 3, daquele Decreto-Lei, conclui-se que se revelará sempre obrigatória, na situação específica da reclamante, a indicação, na candidatura ao doutoramento, de um orientador.


Ou seja, não poderá a ora reclamante prescindir – ao contrário do que sucede com os candidatos que preenchem as condições previstas no art.º 18.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 216/92 – da orientação da sua dissertação por uma pessoa legalmente habilitada a cumprir tal tarefa.


Tal obrigatoriedade esgota-se com a entrega da tese, já que as funções de orientação se reconduzem, no essencial, à supervisão e apoio na preparação da mesma. O facto de os diplomas legais e normativos aplicáveis estabelecerem depois a necessidade de audição do orientador ou a sua participação no júri são aspectos que transcendem já a esfera em que tem intervenção a candidata, cabendo apenas aos órgãos administrativos dar-lhes cumprimento.


Não será, nestes termos, viável a um candidato à obtenção do grau de doutor, que se encontre em situação semelhante à da ora reclamante, a apresentação de requerimento para a prestação das provas de doutoramento sem que, nesse momento, esteja devidamente patrocinado por um orientador.


Muito menos se torna possível a aceitação, por parte da entidade a quem tal requerimento é dirigido, desse pedido, nas circunstâncias referidas, por falha de um requisito expressamente exigido por lei.


No entanto, a ora reclamante requereu a prestação de provas e o seu pedido foi aceite, sem que se mostrasse preenchido o referido requisito, imposto pela legislação mencionada.


5. Argumenta essa Comissão com o teor do Despacho de 04 de Setembro de 2000, do Senhor Reitor da Universidade Técnica de Lisboa, através do qual veio este determinar que os processos de mestrado e de doutoramento nos quais interviesse, na qualidade de orientador ou de membro de júri, o orientador da reclamante, decorressem sem a participação deste.


O Despacho é elaborado tendo em conta designadamente que “os processos de Mestrado e de Doutoramento em curso não poderão sofrer o protelamento correspondente ao período de aplicação da pena, de modo a não causar grave prejuízo aos candidatos”.


Percebe-se a razão de ser desse despacho, adoptando uma solução que menos prejudicaria os candidatos, que não tinha sido alvo de qualquer punição, evitando o protelamento excessivo das provas para obtenção do grau pretendido.


Creio, contudo, que fez essa Comissão de Assuntos Científicos má leitura e má aplicação do referido despacho reitoral.


Este despacho, como é natural, não pode violar disposições legais imperativas, tal como a que exige, como acima se explicitou, o acompanhamento da elaboração da tese, até à sua entrega, por orientador.


Se dúvidas houvesse a este respeito, sempre se diria ser imprescindível a redução do objecto do despacho àqueles processos de mestrado e doutoramento em que as funções legalmente basilares do orientador estavam concluídas, isto é, àqueles casos cuja dissertação ou tese já estiveste entregue e requeridas as respectivas provas, tudo no quadro de uma operação qualificável como de interpretação conforme à lei, salvando-se a validade do despacho.


Não é necessário, contudo, tal operação. Se V.ª Ex.ª atentar bem no 4.º inciso da fundamentação do despacho reitoral de 4 de Setembro de 2000, é patente que a decisão consubstanciada no mesmo se reporta aos processos em que, “com a entrega das teses e dissertações ficam esgotadas as funções de orientador”.


Assim sendo, sempre se dirá que o teor do mencionado despacho não contende, nem poderia, com a imperatividade legal, no caso concreto da reclamante, da supervisão de um orientador, desde a candidatura ao doutoramento, até, pelo menos, à data do pedido para a realização das provas públicas, inclusive.


Conjugando tudo o fica dito, conclui-se que nos processos de doutoramento em que o orientador da reclamante assumia estas funções de orientador, uma de duas situações poderia verificar-se, face ao Despacho em questão:








a) a substituição, por outro orientador, no caso dos doutoramentos que estivessem, à data do impedimento legal do primeiro, em fase anterior à da entrega da dissertação e do requerimento para realização das provas para a sua discussão;


b) a sua possível não substituição (a substituição seria sempre admitida), no caso dos doutoramentos com as dissertações já entregues, naturalmente que sem a possibilidade de o orientador não substituído fazer parte do júri das provas, enquanto durasse a sua sanção.



A situação da reclamante integra-se, sem sombra de dúvidas, no primeiro daqueles dois grupos. Assim sendo, perante a impedimento legal do orientador da reclamante, deveria esta ter requerido a sua substituição, o que não aconteceu.


Não obstante não ter a reclamante requerido tal substituição, a dissertação da reclamante e o seu pedido de prestação de provas foram admitidos pela Comissão de Assuntos Científicos, nos termos supra mencionados, ao arrepio da lei e com base em interpretação errada do Despacho acima mencionado.


Sublinha-se, mais uma vez, que não é o Despacho Reitoral que se mostra contrário à lei, mas a aplicação que do mesmo foi feito à situação específica da doutoranda M., atendendo a que o respectivo teor não terá sido devidamente integrado pelas disposições legais sobre a matéria, acima explicitadas.


6. Entendendo-se como imperioso o patrocínio de um orientador na fase da entrega da tese e do requerimento para a prestação de provas públicas, nenhum tipo de consideração, mesmo que aparentemente benéfico para o candidato, poderá afastar o requisito exigido por lei.


Diga-se, a este título, que a presença do orientador de uma tese de doutoramento, no júri das provas de discussão da mesma, representará, à partida, para o candidato, uma mais valia não despicienda no âmbito da matéria em análise.


O mesmo se refira quanto ao parecer final que normalmente é feito pelo orientador da dissertação do doutorando. No caso concreto de que nos ocupamos, tal parecer foi elaborado por dois dos elementos do júri constituído para a discussão da tese da Arquitecta M. – aliás, não sendo possível apurar a base legal da solução em apreço, presume-se que ter-se-á recorrido, bem ou mal, à criação de “norma que o próprio intérprete criaria, se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema” (cfr. art.º 10.º, n.º 3, do Código Civil).


Sendo certo que tais pareceres se revelam abonatórios da tese, a verdade é que mesmo assim não poderão naturalmente elucidar sobre o desempenho total da doutoranda durante o processo de elaboração da mesma.


Diga-se também que não serve o objectivo da lei a inclusão posterior do orientador da doutoranda no júri das provas, conforme foi feito através do Despacho do Senhor Reitor de 11 de Julho de 2002. De facto, mostrar-se-á da mesma forma e pelas mesmas razões, contrário à lei o aparecimento e desaparecimento, sem substituição, do orientador de um candidato à obtenção do grau de doutor no âmbito de um processo deste tipo.


7. Perante o que fica exposto, e tomando em consideração a obrigatoriedade legal – por via da conjugação dos art.ºs 19.º, n.ºs 2 e 3, e 18.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 216/92 -, da presença de um orientador, no âmbito de um processo de doutoramento, desde a apresentação da candidatura até, pelo menos, à entrega da tese e do pedido de prestação de provas públicas, deveria a ora reclamante ter solicitado a substituição do seu orientador à data em que este veio a revelar-se impedido de exercer essas funções.


Não o tendo feito, não poderia nunca a Comissão de Assuntos Científicos ter aceite, como fez, o pedido para realização de provas da doutoranda M.


Conforme já referido, entendendo-se que se mostrará imperativo, no caso concreto da ora reclamante, o patrocínio de um orientador naquela mesma data, o mencionado requisito não poderá ser preterido a nenhum título e sob qualquer pretexto, mesmo que favorável à reclamante.


8. Nestes termos, não posso deixar de levar à consideração de V.ª Ex.ª a necessidade de a situação em análise ser reconstituída de acordo com as exigências legais sobre a matéria, designadamente através do reconhecimento da ilegalidade da aceitação da tese e do deferimento do pedido para a efectivação das provas.


Tal medida implicará naturalmente a nulidade de todo o processado posteriormente.


Nada obstará a que, então, a interessada cumpra com a Lei, propondo novo orientador e, a seu tempo, requerendo a realização de provas e fazendo entrega da sua tese, devidamente acompanhada pelo orientador legalmente necessário.


9. Deste modo, ao abrigo do disposto no art.º 20.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 9/91, de 09 de Abril, e pelas razões atrás explicitadas, recomendo a V.ª Ex.ª








que seja considerada como ilegal a decisão da Comissão de Assuntos Científicos relativa ao deferimento do pedido para a realização das provas de doutoramento de M., e a consequente notificação da candidata para que, querendo, proceda à nomeação de orientador e à apresentação de novo requerimento para os efeitos consignados no art.º 4.º, n.º 1, do Regulamento dos Doutoramentos da Universidade Técnica de Lisboa, seguindo depois o processo a sua tramitação normal, expressa nos art.ºs 4.º e seguintes do referido Regulamento.



10. Tendo presente a intervenção do Senhor Reitor da Universidade Técnica de Lisboa neste processo, permiti-me, desde já, dar-lhe conhecimento da presente Recomendação.


Mais me permito solicitar a V.ª Ex.ª que a análise e resposta à presente recomendação seja efectuada com a urgência que a situação concreta da interessada impõe.



O Provedor de Justiça,
H. Nascimento Rodrigues