RECOMENDAÇÃO N.º 4/A/2003
(Artigo 20º, nº 1, alínea a), da Lei nº 9/91, de 9 de Abril)



Entidade visada: Presidente do Governo Regional dos Açores
Data: 2003/04/07
Nossa Ref.ª – Proc.º: R-1324/03 (Aç)
Área: Açores (A4)


Assunto: Senhora D. …; funcionário putativo



I – INTRODUÇÃO


Com a presente Recomendação pretende a Provedoria de Justiça obter o reconhecimento, nos termos do disposto no nº 3 do artigo 134º, do Código do Procedimento Administrativo, da legitimação jurídica pelo decurso do tempo da situação de facto em que, no quadro da Direcção Regional da Educação da Secretaria Regional da Educação e Cultura, esteve investida a Senhora D. ….


Tendo sido ponderada, por um lado, a urgência da intervenção do Provedor de Justiça (até no interesse da própria Direcção Regional da Educação, na hipótese do acatamento da presente sugestão) e, por outro, a desnecessidade do cumprimento do disposto no artigo 34º, da Lei nº 9/91, de 9 de Abril (porquanto a situação em apreço está exaustivamente descrita em documentos cuja cópia foi facultada a este órgão do Estado), partiu-se para a imediata formulação de Recomendação, nos termos que a seguir se expõem com maior detalhe.


Com efeito, no seguimento das acções de averiguação subjacentes à elaboração do Relatório de Auditoria – Processo nº 5-FC/2001 (Direcção Regional da Educação), a Secção Regional dos Açores do Tribunal de Contas concluiu que o acto de nomeação da Senhora D. … foi nulo por falta de um dos pressupostos essenciais, a saber, o exercício de funções na Direcção Regional da Educação, em situação irregular, em 10 de Janeiro de 1996, ou entre esta data e 26 de Julho do mesmo ano.


Uma vez que a matéria que tenha sido apreciada, e valorada, pelo Tribunal de Contas constitui um domínio que se quer subtraído da intervenção do Provedor de Justiça, a presente diligência partiu da aceitação da nulidade do acto de nomeação da Senhora D…., a qual operou ex tunc (i.e., desde o momento da emanação do acto declarado nulo) a destruição dos respectivos efeitos.


Contudo, a formulação da presente Recomendação resultou da circunstância de este órgão do Estado ter discordado – após ter analisado o desempenho de funções da interessada na Direcção Regional da Educação (iniciado em 1 de Abril de 1997) e, bem assim, da actuação dos Serviços da Administração envolvidos – das medidas que foram tomadas em ordem à resolução da situação da Senhora D. … depois da declaração de nulidade do vínculo jurídico que a ligava à Administração Regional. Atente-se que, em face da posição do Tribunal de Contas, a Administração Regional dos Açores limitou-se a comunicar à interessada a sua imediata cessação de funções e nem mesmo a circunstância de a Senhora D. … ter vindo a desempenhar funções há mais de cinco anos motivou que fosse ponderada a atribuição de quaisquer efeitos – resultantes do decurso do tempo ou, até, “efeitos putativos ligados a outros factores de estabilidade das relações sociais, como os da protecção da confiança, da boa-fé, do suum cuique tribuere, da igualdade, do não locupletamento, e até da realização do interesse público” (1) – à situação declarada nula.


E, do mesmo passo, também não foi suscitada a responsabilidade civil e disciplinar dos dirigentes máximos dos serviços e organismos da Administração Pública a qual, nos termos do disposto no respectivo artigo 10º, deverá impender sobre quem tiver incumprido as disposições do Decreto-Lei nº 195/97, de 31 de Julho, em termos de respeito pelas formalidades e pelos requisitos prévios à integração nos funcionários nos quadros, como se verificou ter acontecido no caso da interessada.


Ou seja: no caso em apreço, a única consequência retirada do Relatório de Auditoria do Tribunal de Contas foi o “despedimento” da Senhora D. …



II – EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS


Considera a Provedoria de Justiça que a validade da actuação da Administração Regional, perante a nulidade da nomeação da Senhora D. …, mostra-se afectada, na exacta medida em que não foram atendidos os efeitos putativos derivados do decurso do tempo e, em conformidade, foi decidido formular a Vossa Excelência, Senhor Presidente do Governo Regional dos Açores, a presente Recomendação no sentido de ser reposta a legalidade da situação e, ao mesmo tempo, ser salvaguardada a justiça na actuação da Administração.


Deve notar-se que, nos termos do disposto no nº 3 do artigo 134º do Código do Procedimento Administrativo, a circunstância de o “acto nulo [ser] juridicamente impotente, ab initio, para produzir efeitos jurídicos” (2), não prejudica a possibilidade de atribuição de certos efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de actos nulos, por força do decurso do tempo, de harmonia com os princípios gerais do direito e, como sintetiza REBORDÃO MONTALVO (3), este “nº 3 acolhe a possibilidade de situações de facto decorrentes de actos nulos gerarem, ao longo de certo período de tempo, efeitos merecedores de protecção jurídica. É o caso dos chamados agentes putativos, isto é, de funcionários nomeados ou providos por decisões nulas, que, desempenhando de modo público, pacífico e continuado as suas funções durante um longo período de tempo, recebem da ordem jurídica o reconhecimento do direito ao lugar em que foram providos”.


É neste contexto normativo que a figura do agente putativo, ou de facto, vem servindo de auxílio, doutrinal e jurisprudencial, na resolução das situações dos indivíduos que, pese embora a circunstância de terem sido investidos irregularmente em funções administrativas, foram assegurando o cumprimento das tarefas inerentes ao exercício de determinados lugares, de modo pacífico, contínuo e público, durante determinado período de tempo.


Aliás, como se verificou através do Decreto-Lei nº 413/91, de 19 de Outubro (criado para os casos particulares das admissões de pessoal para lugares do quadro dos municípios), também o Legislador chegou a visar directamente a regularização da situação dos funcionários e agentes da Administração Pública admitidos a coberto de actos nulos ou juridicamente inexistentes.


Para que o exercício de funções administrativas permita a constituição de agentes putativos ou de facto – com a consequente atribuição de efeitos jurídicos -, tem sido defendida (4) a necessidade do próprio desempenho profissional ter tido, necessariamente, carácter:



i. pacífico;
ii. contínuo;
iii. público.


A estes requisitos poderiam acrescentar-se, ainda, a efectividade e a normalidade da actuação, elementos estes que, para alguns Autores, estão consumidos nas características atrás mencionadas sendo redundante, por isso, autonomizá-las. No caso em apreço e em face dos contornos particulares da situação da Senhora D. … a discussão desta questão é totalmente dispensável, uma vez que o desempenho profissional da interessada respeitou, integralmente, todas aquelas (três ou cinco) características. Assim, não será por desrespeito de algum daqueles elementos que os pretendidos efeitos jurídicos deixarão de ser atribuídos.


A possibilidade prevista no artigo 134º, nº 3, do Código do Procedimento Administrativo, apenas poderá ser concretizada na eventualidade de o desempenho administrativo pelo funcionário de facto ter decorrido durante um período prolongado de tempo, uma vez que os efeitos putativos previstos naquela norma são, somente, os que se impõem “por força do decurso de tempo”.


Relativamente ao período mínimo de tempo necessário para a atribuição de efeitos jurídicos às situações de facto, entendo que deve evitar-se a excessiva simplificação por vezes notada nas posições que condicionam a possibilidade da convalidação da situação de facto em situação de direito ao decurso de 10 anos ininterruptos no exercício de funções. Na verdade, embora sabendo que aquele prazo tem sido (por vezes) erigido como elemento integrador objectivo – argumento pretensamente retirado do disposto no artigo 1298º, alínea b), do Código Civil –, não posso considerar aceitável que um qualquer período temporal seja tomado como critério determinante, ou mesmo único, sem que, ao mesmo tempo, ele seja relacionado com outros elementos de facto que confiram relevância a um determinado prazo. Do mesmo passo, julgo que, mesmo que se atendesse ao disposto no artigo 1298º do Código Civil, não bastaria o decurso de um prazo (longo) de 10 anos para que se possa concluir, necessariamente, ser aquela a (única) condição objectiva para que um funcionário de facto passe a ser funcionário de direito.


De facto, não só a circunstância de terem ocorrido desempenhos profissionais durante períodos muito longos não deve significar, por si só, que o ordenamento jurídico lhes quer atribuir efeitos jurídicos (pondere-se um caso em que, 12 anos após uma determinada nomeação, era revelado que a admissão a concurso fora nula porque o funcionário era irmão de um membro do júri, não tinha a habilitação académica necessária e apresentara documentos falsos no processo) como, também, a circunstância de as situações de facto terem sido de duração mais curta não lhes retira, necessariamente, a possibilidade de produzirem efeitos jurídicos (como deveria acontecer, creio, numa situação em que fosse detectado, 8 ou 9 anos após a nomeação, que a admissão de um funcionário fora nula somente porque o Aviso de Abertura do respectivo concurso não cumpriu a formalidade essencial da publicação na II série do Diário da República). De facto, parece evidente que o Legislador não quis estipular um prazo certo que configurasse o mínimo tempo necessário para a atribuição de efeitos jurídicos a determinada situação de facto e optou, conscientemente, pela fórmula, vaga, do reconhecimento de que alguns efeitos acabam por ser merecedores de protecção jurídica “por força do decurso de tempo”.


Na verdade, é ao prudente arbítrio do julgador que incumbe decidir, em cada caso, se se verificam as condições em que o funcionário de facto deve passar a ser funcionário de direito.


Em consequência, será de aceitar que, por vezes, se exija um prazo superior aos 10 anos para atribuir efeitos jurídicos derivados do decurso do tempo e, em outras ocasiões, menos tempo de actividade titulada, pacífica, contínua e pública possa bastar para justificar a regularização. O que importará, sempre (e essa é, sem dúvida, a principal condição sine qua non), é uma cuidada análise da situação concreta que levou à criação do quadro factual desconforme ao direito e ponderar, também casuisticamente, se são respeitados os requisitos cujo preenchimento é necessário para a produção de efeitos jurídicos putativos.


Em diversos casos, designadamente naqueles em que as nulidades resultaram da precedência de concursos públicos nos actos de nomeação de funcionários, tem sido defendido, doutrinal e jurisprudencialmente, que é exigível “o exercício de funções por um período mínimo de dez anos” (5); contudo, deve referir-se que, naquelas situações, a exigência de um período temporal mínimo de 10 anos encontrou justificação no facto de estarem a ser convertidos em provimentos de direito alguns provimentos irregulares surgidos por razões que eram, em absoluto, desconhecidas. Naquelas situações, não se sabendo se os funcionários de facto criaram (ou ajudaram a criar), com astúcia ou premeditação, as situações cuja regularização, depois, era visada, compreende-se que, prudentemente, se exigisse “o exercício de funções por um período mínimo de dez anos”.


Diferentemente, porém, no caso em apreço não são obscuras nem, tão pouco, desconhecidas, as razões que levaram à admissão da Senhora D. … e, mesmo que, agora, se reconheça a existência da nulidade invocada pelo Tribunal de Contas, sabe-se que a interessada não procurou qualquer benefício ilegítimo, nem a Administração pretendeu desrespeitar as normas e princípios aplicáveis.


Com efeito, os motivos subjacentes à irregular aplicação à situação da interessada do regime da regularização de pessoal em situação de emprego precário que foi definido nos Decretos-Lei nºs 81-A/96, de 21 de Junho, 103-A/97, de 28 de Abril, e 195/97, de 31 de Julho, e Resolução do Conselho de Ministros nº 23-A/97, de 14 de Fevereiro – adaptada à Administração Regional Autónoma dos Açores pela Resolução nº 59/97, de 3 de Abril -, é conhecida e consistiu, em suma, no facto de a “situação que o Serviço pretendeu regularizar [ter sido] constituída muito depois do termo do período relevante, tendo [tido] início em 1 de Abril de 1997” (6), na medida em que se deu relevância ao desempenho anterior na Junta de Freguesia de Fontinhas.


Importará notar, também, que a totalidade dos factos integradores da situação da interessada – e, bem assim, todos os elementos documentais agora apreciados pelo Tribunal de Contas – eram do conhecimento da Direcção Regional da Educação e da Direcção Regional de Organização e Administração Pública, já em 1997, pelo que apenas se alterou a qualificação, e valoração, que os mesmos mereceram, estando definitivamente afastadas as alegações de astúcia da interessada ou de favorecimento pela Administração.


Assim sendo, importará ponderar, neste caso concreto, se o exercício de funções pela Senhora D. … se prolongou pelo período de tempo mínimo que é exigível para que se justifique defender que a situação de facto se converteu, verdadeiramente, em situação de direito – ou, dito de outra forma, que a interessada deixou de ser uma mera “agente de facto” e passou a ser uma “agente de direito”.


Deve ser destacado que o período temporal relevante deve ser aferido, como ficou dito, em face das características particulares da situação e segundo um critério de prudente arbítrio.


Por outro lado, qualquer que fosse a conclusão a alcançar, ela não seria susceptível de afectar a decisão do Tribunal de Contas que, enquanto órgão de legalidade com funções de auditoria, limita-se a reconhecer, como o fez, a nulidade da nomeação e o facto de ela operar ex tunc a destruição dos efeitos e, consequentemente, também de todo o percurso posterior da funcionária.


Do mesmo passo, é inquestionável que, no exercício das respectivas funções, a interessada agiu pacífica, contínua e publicamente, durante quase seis anos e, como o Senhor Secretário Regional da Educação e Cultura declarou, em 17 de Fevereiro de 2000, assegurando a satisfação de necessidades permanentes dos Serviços.


Assim sendo, estou em crer que a circunstância de o acto de nomeação da Senhora D. … ter sido nulo, por falta de um pressuposto essencial, não invalida a circunstância de dever considerar-se que o desempenho de funções desde 1 de Abril de 1997 até 26 de Fevereiro de 2003, produziu efeitos jurídicos. De facto e em suma, uma vez que a interessada “exerceu as funções correspondentes titulada, pacifica, continua e publicamente durante um período de tempo representativo segundo um critério de prudente arbítrio, a situação de agente de facto deve considerar-se convertida em direito, adquirindo, assim, o direito ao lugar” (7).


Devo acrescentar, ainda, que a Direcção Regional da Educação poderia, sempre no respeito devido pela posição da Secção Regional dos Açores do Tribunal de Contas, ter mantido em funções a Senhora D. … e, para além dos efeitos putativos favoráveis à particular reclamante deveriam aqueles efeitos ter sido assacados, também, no próprio interesse da Administração.


Importa referir, finalmente, que deve a Administração Regional dos Açores revogar o acto, de 26/02/2003, da Senhora Directora Regional da Educação, que determinou a imediata cessação de funções da interessada, e substituí-lo por outro que reconheça, ao mesmo tempo e por um lado, que a anterior nomeação é nula mas, por outro lado, que a Senhora D. … tem, ao abrigo do disposto no nº 3 do artigo 134º do Código do Procedimento Administrativo e na qualidade de funcionária putativa, direito ao lugar em que esteve provida.



III – CONCLUSÕES


Pelas razões que deixei expostas e no exercício do poder que me é conferido pelo disposto no artigo 20º, nº 1, alínea a), da Lei nº 9/91, de 9 de Abril, recomendo a Vossa Excelência:







 A. Que seja revogado o acto da Senhora Directora Regional da Educação, de 26/02/2003, que determinou a imediata cessação de funções da Senhora D. …;


B. Que seja produzido novo acto que, declarando nula a anterior nomeação por falta de um requisito essencial reconheça, ao mesmo tempo, que a Senhora D. … tem direito ao lugar em que esteve provida no quadro da Direcção Regional da Educação, ao abrigo do disposto no nº 3 do artigo 134º, do Código do Procedimento Administrativo, e na qualidade de funcionária putativa.


Permito-me lembrar a Vossa Excelência a circunstância de a formulação da presente recomendação não dispensar, nos termos do disposto no artigo 38º, nºs 2 e 3, da Lei nº 9/91, de 9 de Abril, a comunicação a este órgão do Estado da posição que vier a ser assumida em face das respectivas conclusões.



O Provedor de Justiça,


H. Nascimento Rodrigues


 


 
 
 





Notas de rodapé:


(1) Oliveira, Mário Esteves, Código do Procedimento Administrativo – Comentado, 2ª edição (reimpressão), Almedina, Coimbra, 1998, p.655 (nota IV ao artigo 134º, nº 3).
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(2) Ibidem, p.652 (nota I ao artigo 134º, nº 1).
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(3) Código do Procedimento Administrativo Anotado – Comentado e Legislação Complementar, Almedina, Coimbra, 1992, p. 213 (nota 2 ao artigo 134º).
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(4) Vide, por todos, o parecer do Conselho Consultivo da P.G.R., de 26/01/89, homologado, em 21/03/89, pelo Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Educação.
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(5) cfr., por todos, o Acórdão do S.T.A., de 19/10/89, no processo nº 27112.
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(6) Vide, Tribunal de Contas, Secção Regional dos Açores, Relatório de Auditoria – Processo nº 5 – FC/2001 (Direcção Regional da Educação), p.27.
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(7) Parecer do Conselho Consultivo da P.G.R., publicado no DR, II série, nº 142, de 22/06/79, p.3770, referido em http://www.dgsi.pt/pgrp.
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