RECOMENDAÇÃO N.º 3/A/05
(Artigo 20º, nº 1, alínea a), da Lei nº 9/91, de 9 de Abril)


Entidade visadaPresidente do Conselho Disciplinar Regional do Sul da Ordem dos Médicos
Procº:  R-1239/05 (A6)
Data:  2005/06/30
Assunto:  Exercício do poder disciplinar; princípio da legalidade
Área: A6


Foi-me apresentada uma exposição a respeito do processo disciplinar que, com o n.º 187/03, está pendente nesse Conselho Distrital.


Incide o mesmo sobre o modo como decorreu, dir-se-ia talvez com mais propriedade decorre, a avaliação das provas de doutoramento do Licenciado A, na Universidade Agostinho Neto, em Luanda (República de Angola), por parte dos docentes universitários (e, por acaso, também membros da Ordem dos Médicos portuguesa) Professores Doutores B e C, designados para integrarem o júri, a pedido dessa Universidade, pela Universidade de Lisboa, onde leccionam.


Permito-me, previamente, esclarecer que considerei como desnecessária a audiência prévia de V.ª Ex.ª. Na verdade, incide esta minha tomada de posição exclusivamente sobre questões de direito. No que toca aos factos, tomo aqui como base de análise a aceitação como verídica de todos os que vêm enunciados na acusação formulada, assim não pretendendo contestá-los. Creio firmemente, na verdade, que as conclusões que adiante tirarei não dependem em nada de se provar a correcção, ou, pelo contrário, a incorrecção, do conjunto de factos que determinaram a formulação da acusação em apreço.


Também convirá esclarecer o modo como se explica a intervenção do Provedor de Justiça, como, aliás, de qualquer entidade externa, num processo disciplinar em curso num órgão autónomo de uma associação, por pública que seja.


É precisamente essa natureza pública de uma associação que auto-regula o exercício de certa profissão que autoriza o controlo externo do Provedor de Justiça, quando esteja em causa o cumprimento do basilar princípio da legalidade, num cenário em que intervêm várias posições jurídicas expressamente garantidas pela Constituição,


Assim, não me caberia qualquer palpite na determinação da bondade do acto acusatório, ou de eventual decisão condenatória subsequente, no que à ilicitude, culpa ou imputação causal diz respeito, excepto casos-limite de erro grave ou manifesto.


Todavia, se, como no caso presente, estiver em causa, simplesmente, a análise e aplicação ao caso concreto do regime jurídico que envolve esse órgão, as suas competências e procedimentos, nada permite excluir a intervenção de um órgão externo, neste caso o Provedor de Justiça, exercendo os poderes que lhe estão confiados pela Constituição e pela Lei, atalhando à génese ou continuação de actos manifestamente contrários à legalidade vigente e que a todos obriga.


Sumariando os factos relevantes, aberto o processo disciplinar em apreço em 19 de Agosto p. p., tendo como arguidos o doutorando e os membros acima identificados do júri de doutoramento, foi deduzida, em 9 de Novembro seguinte, acusação contra os mesmos. Escusando-me a transcrever aqui os termos dessa acusação, que exprimem, afinal, o cerne do que V.ª Ex.ª considerou como consubstanciando a existência de responsabilidade disciplinar por parte dos arguidos, convém frisar que aí se considerou:






a) ter um dos arguidos apresentado para obtenção do grau de doutoramento determinada tese;


b) ter o processo de apreciação da mesma sido suspenso, por razões que aqui não interessam;


c) ser de considerar como provado que a verdadeira razão para a suspensão do processo ter sido outra, qual fosse a detecção de plágio, por membros do júri que não os aqui arguidos;


d) ser de admitir como provada a existência de plágio, assim considerando violado pelo arguido doutorando o art.º 12.º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos (CDOM);


e) não poder o arguido Professor B desconhecer o facto, por ser ele o plagiado;


f) não poder o arguido Professor C desconhecer o facto, por ter sido o orientador das teses produzidas por plagiado e plagiador;


g) nestes termos, serem os dois arguidos membros do júri cúmplices na actuação do arguido doutorando;


h) não se mencionando, com autonomia, qualquer norma jurídica, do Estatuto da Ordem dos Médicos (EOM) ou do CDOM, violada, aduz-se, todavia, que os arguidos “envergonharam o País, a Medicina e a Universidade Portuguesa”, assim, todos três, incorrendo na pena de suspensão.


Finalmente, existindo um terceiro membro do júri envolvido na mesma denúncia, por razões de competência territorial foi remetido o expediente ao Conselho Disciplinar Regional pertinente, com o sucesso a que se voltará adiante.


Disse atrás, e repito, que não me parece minimamente relevante, nem esse papel me cabe, estar aqui a discutir se o plágio existiu ou não (1) , se está ou não correcta a leitura dos acontecimentos ocorridos na reunião do júri de que resultou, contraditoriamente, a decisão mencionada em b), quando, afinal, seria a razão indicada em c) a motivar a decisão, nem tão pouco como três membros do júri portugueses teriam conseguido a proeza de convencer os restantes seis membros do júri a calarem a evidência patenteada na acusação, aprovando todos por unanimidade determinada acta, sem que com isso todos incorressem em idêntico motivo de censura.


Também não me vou deter, por irrelevante, na discussão do que possa representar, aqui, a invocação da figura da cumplicidade, entre acções e omissões, patentes ou presumidas. Tão pouco evocarei a perplexidade que me causa, invocando-se falsidade do motivo declarado na acta, sendo o plágio o verdadeiro motivo do adiamento e não a necessidade de “apuramento” da tese, e não tendo, portanto, sido concedido o grau de Doutor, quem, afinal, provocou a “vergonha” para o País e para a Universidade, sendo certo que, a admitir-se como verdadeiro o plágio , todos os membros do júri teriam concordado em calar, pelo menos naquela acta, o sucedido. Sendo obviamente livres de o fazer, e não cabendo a essa Ordem qualquer papel inspectivo do funcionamento interno dos júris de doutoramento em universidades, portuguesas como estrangeiras, sempre se dirá que a “vergonha” terá antes tido outra causalidade.


Na verdade, importa verificar em que é que se fundamenta a acção disciplinar da Ordem dos Médicos, para se concluir, ou não, pela inclusão de matérias como a presente no seu leque de atribuições.


Assim, o art.º 1.º do EOM estabelece que “a Ordem dos Médicos abrange os licenciados em Medicina que exerçam ou tenham exercido em qualquer regime de trabalho a profissão médica.” O art.º 6.º do mesmo Estatuto indica que a Ordem tem, como uma das suas “finalidades essenciais (…) defender a ética, a deontologia e a qualificação profissional médicas, a fim de assegurar e fazer respeitar o direito dos utentes a uma medicina qualificada”.


O art.º 1.º do Estatuto Disciplinar da Ordem dos Médicos (EDOM) estabelece como âmbito pessoal da sua jurisdição disciplinar “todos os médicos inscritos no momento da prática da infracção”, explicitando no art.º 2.º que “comete infracção disciplinar o médico que, por acção ou omissão, violar dolosa ou negligentemente algum ou alguns dos deveres decorrentes do Estatuto da Ordem dos Médicos, do Código Deontológico, do presente Estatuto, dos regulamentos internos ou das demais disposições aplicáveis .” (sublinhado meu)


Invocando-se, a respeito de um dos arguidos, a violação do art.º 12.º do CDOM, importa também ter presente que o respectivo art.º 1.º define a deontologia médica como “o conjunto de regras de natureza ética que, com carácter de permanência e a necessária adequação histórica na sua formulação, o Médico deve observar e em que se deve inspirar no exercício da sua actividade profissional ”. (sublinhado meu)


O art.º 3.º do CDOM estabelece, por sua vez, que as regras deontológicas se aplicam a todos os Médicos, no exercício da sua profissão .


O citado art.º 12.º, sob a epígrafe “Dignidade”, dispõe que “em todas as circunstâncias deve o médico ter comportamento público e profissional adequado à dignidade da sua profissão”.


Parece-me indisputável que nenhum dos três arguidos, um ao elaborar uma tese de doutoramento e ao apresentá-la, outro ao pertencer a um júri de doutoramento e o terceiro ao orientar aquela tese e, por via disso, também integrar o referido júri, estava no exercício da profissão de médico que, por coincidência , também exercem.


Seja qual for a definição de acto médico e de exercício da medicina a que V.ª Ex.ª se acolha, a natureza puramente científica, especulativa e não aplicada, de um trabalho académico como é a elaboração de uma tese, a sua orientação e a sua discussão e avaliação, afasta completamente a situação do enquadramento, dir-se-ia objectivo, dos fins públicos para que a Ordem dos Médicos foi criada e, mais importante, recebeu do Estado os poderes disciplinares aptos a sancionar os médicos que exerçam em Portugal, assim podendo vedar tal exercício.


Não só a qualidade de médico não é necessária para a apresentação a provas de doutoramento em Medicina, mas tão somente a licenciatura, em certas condições, ou o mestrado (reporto-me à lei portuguesa, naturalmente), como também a mesma qualidade é irrelevante para o exercício das funções de orientador ou de membro do júri, aqui valendo a posse do grau de Doutor (geralmente em Medicina), para além, como é evidente, do consentimento da Universidade em causa.


O mesmo se passa, como é bem de ver, nas demais profissões regulamentadas face à habilitação académica que lhes serve eventualmente de base, de que dou exemplo evidente com o caso do Direito face à Ordem dos Advogados.


Não tem essa Ordem qualquer competência no que toca à concessão de graus académicos, em Portugal ou no estrangeiro, seja qual for o grau em causa, de licenciado, mestre ou doutor, estando-lhe, aliás, vedada, no nosso ordenamento jurídico-constitucional, qualquer intervenção nessa matéria, pela autonomia científica de que gozam as universidades, conforme expressamente preceituado no art.º 76.º, n.º 2, da nossa Lei Fundamental.


Assente que está não ter nenhum dos alegados factos, comissivos ou omissivos, ocorrido no exercício da profissão médica, resta apurar em que circunstâncias, pessoais ou subjectivas e não objectivas, pode eventualmente defender-se a aplicação do art.º 12.º do CDOM a condutas praticadas por médicos, sim, mas na sua vida pessoal ou, como é o caso presente, noutras profissões que simultaneamente desempenhem.


Parece-me implícita, nesse art.º 12.º, uma representação da Ordem dos Médicos como entidade tutelar do prestígio da classe médica, não deixando sem castigo actos praticados pelos seus membros que, ainda que fora do exercício da profissão médica, pelo conhecimento da qualidade de médico do seu autor possa acarretar um juízo negativo, potencialmente sobre a generalidade dos médicos.


Não contesto esta possibilidade. Se a Ordem dos Médicos não deve nem pode ser uma entidade sindical, construída a partir de uma ideia de benefício comum dos seus membros, é de admitir que há ainda um interesse público, daqueles que justificam a existência dos poderes de autoridade devolvidos à Ordem, na manutenção da confiança e boa imagem públicas na generalidade da classe, como esteio primeiro da possibilidade de exercício, em condições mínimas, da ciência-arte curativa.


Todavia, se admito tal retaguarda sancionatória, sem que em si mesma viole o princípio constitucional do non bis in idem , já não posso considerá-la como aceitável enquanto manifestação primária de um juízo de censura.


Explicitando o que atrás fica, não estando em causa a formulação de juízos sobre a conduta profissional médica do arguido, única para a qual julgo primariamente competente a Ordem dos Médicos, só compreendo a tomada de conhecimento e a eventual sanção de comportamentos exteriores à medicina, do foro pessoal ou não, se provados e censurados por entidade terceira, ela sim, primariamente competente para tanto.


Veja V.ª Ex.ª o caso de uma circunstância da vida pessoal do médico, por exemplo, o entregar-se de modo habitual (mas fora da medicina) à prática de burlas. Sem dúvida que se trata de conduta incompatível com a dignidade exigida pelo art.º 12.º do CDOM. Mas atrever-se-á esse Conselho, em caso semelhante, a julgar os factos, a considerá-los provados e a aplicar uma pena, fundamentando-a com os factos que integram o crime de burla, sem que antes um tribunal judicial o tenha feito?


Do mesmo modo, admitindo que certo médico também exerce, por estar a tanto habilitado, a profissão de advogado. Inexistindo crime, mas sim violação dos deveres estatuídos na regulamentação própria desta última profissão, iria esse Conselho actuar antes do órgão próprio da Ordem dos Advogados ter considerado existir responsabilidade disciplinar?


Iria a Ordem dos Médicos censurar, ainda que mediatamente, uma pessoa pela prática de factos enquanto advogado, quando a Ordem dos Advogados se recusava a fazê-lo? Iria a Ordem dos Médicos censurar a mesma pessoa, pela prática de ilícitos penais, quando ela tinha sido absolvida pelo tribunal, órgão de soberania que julga em nome do povo e cujas decisões vinculam todas as entidades, públicas e privadas?


Estando em crer que a resposta de V.ª Ex.ª não pode deixar de ser negativa, resta apenas aplicar este entendimento, que julgo ser o único passível de salvar a constitucionalidade do art.º 12.º do CDOM (diploma, aliás, que merece, por razões orgânicas e formais, bastas dúvidas neste particular, quando não certezas, como já tive ocasião, em tempo, de fazer sentir ao Senhor Bastonário), ao caso vertente.


Como pode a Ordem dos Médicos, através desse Conselho, seriamente alegar que os arguidos “envergonharam” a Universidade portuguesa quando tenho em minha posse, e julgo que idêntica documentação estará também junta ao processo, várias comunicações, da Universidade de Lisboa, da Universidade Nova de Lisboa e da Universidade de Coimbra , que negam à evidência tal “vergonha”? Como pretende, pois, a Ordem dos Médicos, através do seu Conselho Disciplinar Regional do Sul, desmentir a Universidade, no que só à Universidade, instituição velha de 700 anos e com uma tradição de autonomia que importa cultivar e respeitar, incumbe quando esta, livremente, formula um juízo científico sobre a conduta dos seus docentes? Acaso alguma norma autoriza essa Ordem a tutelar, contra a vontade da própria Universidade, aquilo que a esta mais convém, como seja a manutenção da sua dignidade para mais bem merecer a estima pública?


Não estando em dúvida a capacidade científica da Ordem dos Médicos e dos seus órgãos próprios, no que ao exercício da medicina diz respeito, nem sendo minha intenção negar o papel relevantíssimo da mesma na certificação dos médicos e da sua capacitação profissional, não tem contudo a mesma a mínima capacidade, evidentemente em sentido jurídico, para se pronunciar sobre actos académicos, pelo menos para além da simples opinião, que, certa ou errada, cada um é livre de ter.


Tão errada seria uma sanção académica, aplicada a docente de Medicina por factos da profissão médica ocorridos fora da docência, sem que a Ordem dos Médicos os tivesse previamente determinado como ilícitos, como é uma sanção profissional que, não só não espera pela decisão universitária, como consciente, deliberada e pertinazmente vai contra o que pela mesma foi estabelecido.


Análogo raciocínio é aplicável ao Licenciado A, enquanto discente universitário, com a agravante, se possível fora, de se tratar aqui de uma Universidade estrangeira.


Aplaudo, assim, o que muito bem decidiu, na parte final do seu acórdão de 10 de Janeiro p. p., o Conselho Disciplinar Regional do Centro.


Ao pretender que seja decidido sobre matéria inteiramente estranha às atribuições da Ordem dos Médicos, pois coberta que está, prima facie , pela autonomia universitária, incorre o despacho de acusação no vício de nulidade, pela existência da chamada incompetência absoluta (cf. art.º 133.º, n.º 2, b), do Código de Procedimento Administrativo).


Esta nulidade, nos termos gerais, é de conhecimento oficioso e pode ser declarada a todo o tempo, nunca se sanando. Idêntica sanção mereceria eventual decisão final no processo disciplinar em causa.


No quadro das minhas competências constitucionais de prevenção e reparação de ilegalidades, mas também no sentido de contribuir para a inexistência de aplicação errada de esforços no exercício da acção disciplinar, em situação tão carecida como a consabidamente existente, recomendo a esse Conselho, na pessoa de V.ª Ex.ª, nos termos do art.º 20.º, n.º 1, a), da Lei 9/91, de 9 de Abril,








Que seja declarada a nulidade da acusação formulada contra os docentes universitários portugueses Doutores B e C, bem como ao Licenciado A, discente de Doutoramento na Universidade Agostinho Neto, por acaso também membros da Ordem dos Médicos, por incompetência absoluta desse órgão para conhecer do cumprimento ou não dos deveres funcionalmente ligados ao exercício das funções académicas, bem como de todo o processado posteriormente, arquivando-se o processo disciplinar em causa.


Ciente da óbvia e indisputável autonomia desse Conselho Disciplinar, não quis todavia deixar de dar conhecimento desta Recomendação ao Senhor Bastonário da Ordem dos Médicos, por me parecer que a relevância da questão interessa a toda esta meritória Associação Pública.


O Provedor de Justiça,
H. Nascimento Rodrigues


 


 


Notas de rodapé:


(1) Embora, aplicando aqui a lâmina de Ockham, sempre seria mais provável a um cúmplice plagiado, de conluio com um cúmplice orientador, conhecendo melhor do que ninguém a tese plagiada, desenvolver aspectos da mesma em benefício do doutorando plagiador.
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