Reparo / Censura


Entidade visada: Câmara Municipal de Santa Maria da Feira
Proc.º: R-4172/06
Área: A4


Assunto: Contratação de professores de educação física, em regime de avença. Critérios de selecção. Residência e experiência de leccionação no concelho.




Foi apresentada ao Provedor de Justiça queixa onde se contestam os critérios adoptados pela Câmara Municipal de Santa Maria da Feira na selecção das candidaturas à contratação de professores para actividades de enriquecimento curricular na área da educação física e desporto, a prestar nas escolas do 1º ciclo do ensino básico do concelho. Na queixa são visados essencialmente dois critérios:




a) o critério da experiência profissional em actividades do 1º ciclo do ensino básico, com uma ponderação de 60%, porquanto não valoriza a experiência em actividades relacionadas com a educação física, pelo que da sua aplicação poderia resultar que um candidato com experiência naquele ciclo de ensino em área distinta da educação física viesse a ultrapassar um candidato cuja licenciatura lhe confira habilitação própria para leccionar esta disciplina;



b) os critérios da residência no concelho de Santa Maria da Feira e da experiência profissional exercida em escolas do 1º ciclo do mesmo concelho, com ponderação de 20% e 10%, respectivamente, por serem irrelevantes para o exercício da função em causa e, na medida em que discriminam os candidatos residentes noutros locais, ofendem o princípio constitucional da igualdade.


No que concerne ao critério referido em a), esclarece V.Exa. que “apenas foi considerada a experiência em leccionação da disciplina em questão nas escolas do 1º CEB, não tendo ponderação a experiência em outras áreas distintas da educação física“, o que se afigura bastante para afastar as dúvidas suscitadas, neste ponto, na reclamação (1).



Já quanto à crítica dirigida aos critérios enunciados em b), responde V.Exa. que a sua adopção foi justificada “pela simples razão de um melhor cumprimento da assiduidade e da pontualidade dos candidatos relativamente à sua proximidade geográfica com os locais onde prestariam serviços“.



A questão que cumpre apreciar será, pois, a de saber se este motivo constitui fundamento material bastante para a diferenciação de tratamento que resulta da previsão e aplicação de tais critérios de selecção.



Convirá, antes de mais, salientar que o tipo de procedimento escolhido – ajuste directo – dispensa, nos termos da lei, a consulta a vários prestadores de serviços (art. 78º, n.º 7, do Decreto-Lei n.º 197/99, de 8 de Junho). No entanto, essa câmara, em obediência ao princípio do interesse público que sempre deve nortear a actividade administrativa e que, no caso, é dirigido à escolha e contratação dos melhores profissionais, permitiu, por um lado, a apresentação de candidaturas por todos os interessados e, por outro, autovinculou-se à selecção dos candidatos segundo determinados critérios (2).



Assim sendo, estando o procedimento aberto a uma pluralidade de interessados, o princípio da igualdade encontra aqui naturalmente um espaço próprio de aplicação e postula, no que à fixação de critérios de selecção diz respeito, que a diferenciação que estes comportam contenha uma justificação material atendível.



O princípio da igualdade, como é entendimento uniforme do Tribunal Constitucional, “obriga a que se trate como igual o que for essencialmente igual e como diferente o que for essencialmente diferente; não impede a diferenciação de tratamento, mas apenas a discriminação arbitrária, a irrazoabilidade, ou seja, o que aquele princípio proíbe são as distinções de tratamento que não tenham justificação e fundamento material bastante” (3).



Explicam GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA que “as diferenciações de tratamento podem ser legítimas quando: (a) se baseiem numa distinção objectiva de situações; (b) não se fundamentem em qualquer dos motivos invocados no nº 2 [do artigo 13º da Constituição (4)]; (c) tenham um fim legítimo segundo o ordenamento constitucional positivo; (d) se revelem necessárias, adequadas e proporcionadas à satisfação do seu objectivo” (5).



Ora, é desde logo quanto a este último requisito que não podem deixar de se suscitar dúvidas de relevo quanto à admissibilidade dos aludidos critérios.



Na verdade, independentemente de se questionar se é legítimo diferenciar os candidatos a um “concurso” de docentes com o fim de melhor garantir o cumprimento de deveres contratuais, como o dever de assiduidade e de pontualidade, o certo é que, no caso, os dois critérios fixados não são aptos a prosseguir tal fim, ou seja, a diferenciação não se afigura necessária, nem adequada, à satisfação daquele desiderato.



Tal resulta, desde logo, da constatação de que a residência no concelho onde se situa o estabelecimento escolar não implica necessariamente uma maior proximidade entre este e a residência do futuro docente. Bastará, para tanto, que a distância entre a escola e um dos concelhos limítrofes seja menor do que a que separa a escola de outros pontos do concelho onde esta está situada. E, considerando o número de estabelecimentos escolares do 1º ciclo existentes no concelho de Santa Maria da Feira, dispersos pelas diversas freguesias, é hipótese que necessariamente não se pode afastar (6).



Por outro lado, este critério, porque deve ser aferido à data da apresentação das candidaturas, discrimina os candidatos residentes em outros concelhos que, muito legitimamente, podem prever a mudança de residência para o concelho de Santa Maria da Feira, no caso de virem a celebrar contrato de avença com o município.



Já quanto ao critério da experiência profissional em escolas do 1º ciclo do concelho, não se vislumbra que relação possa ter com o cumprimento dos deveres de assiduidade e pontualidade. Não será irrazoável admitir que os candidatos com esta experiência possam, à data da apresentação das suas propostas, residir em concelho distante dos locais de leccionação. Nem se vê, de outra parte e ainda que tal não tenha sido invocado expressamente por essa câmara, que as escolas do ensino básico de Santa Maria da Feira – inseridas no parque escolar de âmbito nacional e, portanto, integradas no Ministério da Educação – apresentem especificidades de relevo que justifiquem erigir tal critério como modo de garantir uma melhor adaptação à função.



Donde se conclui que, não sendo demonstrável a relação de necessidade e adequação entre os critérios de diferenciação estabelecidos e os fins que os mesmos procuram atingir, não lhes subjaz fundamento material bastante, o que os torna fonte de tratamento discriminatório.



Tem-se presente, no entanto, que o procedimento em causa já chegou ao seu termo, até porque se destinava à contratação de docentes para actividades de enriquecimento extra *-curricular a desempenhar no presente ano lectivo. Segundo informação obtida junto dos Serviços de Educação dessa Câmara, a ordenação dos candidatos foi realizada antes do início do ano lectivo e todos os candidatos que preenchiam os requisitos habilitacionais vieram a celebrar contratos de avença, uma vez que alguns docentes inicialmente contratados rescindiram entretanto os seus contratos.



Crê-se, assim, que a correcção da classificação, mediante a eliminação dos critérios postos em causa, não comportaria efeitos úteis de relevo, antes seria geradora de perturbação indesejável e desaconselhável por razões de interesse público.



Em face de todo o exposto, cumpre-me chamar a atenção de V.Exa. para a ilegalidade verificada e para a necessidade de evitar que, em procedimentos de natureza concursal e com objecto similar, sejam fixados critérios de selecção idênticos ou outras formas de diferenciação sem fundamento material atendível.



 


Notas de rodapé:


(1) Esclarece-se, ainda, que foi respeitado o art. 12º do Regulamento aprovado pelo Despacho da Ministra da Educação n.º 12591, de 26.5.2006, publicado no DR, II, de 16.6.2006, que determina que os professores de actividade física e desportiva, a contratar no âmbito do programa de generalização de actividades de enriquecimento curricular no 1º ciclo do ensino básico, devem possuir habilitações profissionais ou próprias para a docência da disciplina de educação física do ensino básico ou serem licenciados em desporto ou áreas afins.


(2) Adoptou-se, pois, uma figura de natureza híbrida que, fazendo apelo a elementos típicos do concurso público (a aceitação de propostas dos potenciais interessados, em clima de concorrência, mediante a sujeição a factores de diferenciação preestabelecidos), não se vincula, no entanto, a um determinado procedimento formal destinado à escolha dos contratantes.


(3) Cfr. Acórdão n.º 1007/96, de 8.10.96, disponível em www.tribunalconstitucional.pt.


(4) E, também, no caso da actividade administrativa, art. 5º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo.


(5) Constituição da República Portuguesa, Anotada, 3ª edição revista, Coimbra Editora, 1993, pág.128.


(6) Por exemplo, as escolas situadas na freguesia de Canedo estão mais próximas da periferia do concelho de Gondomar do que das freguesias situadas a Sul do concelho de Santa Maria da Feira. Muitos outros exemplos se poderiam indicar.



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