PARECER


Entidade visada: Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas
Proc.º:
R-4340/06
Data: 2006.09.27
Área: A6
Assessora: Maria Eduarda Ferraz


Assunto: Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas. Cancelamento voluntário da inscrição.



1. Reporto-me à comunicação de V.ª Ex.ª com a data acima assinalada, a propósito do assunto em referência, relativamente à qual importa esclarecer o que segue.



O Decreto-Lei n.º 452/99, de 5 de Novembro, que aprovou o actual Estatuto da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas, revogando o Decreto-Lei n.º 265/95, de 17 de Outubro, que regulava anteriormente o Estatuto dos Técnicos Oficiais de Contas, veio, relativamente a este quadro legal anterior, por um lado dar uma nova designação à Associação – ao mesmo tempo ajustando alguns aspectos do funcionamento desta – e, por outro, estabelecer novas regras para o acesso e exercício da profissão.



De facto, pode ler-se no preâmbulo do diploma em vigor o seguinte:




“(…) Considerando a natureza mista que as associações públicas profissionais revestem – pública na óptica da prossecução das atribuições públicas e privada no contexto da representatividade dos profissionais inscritos – procura-se no presente estatuto conciliar as propostas apresentadas pela comissão instaladora da Associação dos Técnicos Oficiais de Contas com a necessidade de proceder à respectiva revisão em conformidade com os preceitos constitucionais e o regime das demais associações públicas.



Quanto às questões de fundo, ressalta, desde logo, o facto de se ter designado por Associação a pessoa colectiva pública à qual se confiou a representação dos técnicos oficiais de contas e a superintendência em todos os aspectos relacionados com o exercício dessas funções, quando tal designação, por um lado, tende a enfraquecer aquela representatividade, porque é típica de organizações particulares, e, por outro lado, diverge da designação “Câmara”, que foi oficialmente atribuída a organizações semelhantes.


(…)


Tornando-se, pois, indispensável introduzir no Decreto-Lei n.º 265/95, de 17 de Outubro, diversas alterações, optou-se por revogar este diploma e aprovar um novo estatuto com respeito absoluto pelos princípios subjacentes ao anterior estatuto, adaptando-os à realidade vivida pelos técnicos oficiais de contas, melhorando o funcionamento dos órgãos da Associação e a articulação entre os mesmos, ajustando os seus poderes de auto-regulação e credibilizando o exercício da profissão, em conformidade com os preceitos constitucionais e o regime das demais associações públicas”.


A mudança de designação da Associação não afectou a sua natureza de associação pública – na qual continua a ser obrigatória a inscrição para quem queira exercer a actividade de técnico oficial de contas –, nem os poderes, precisamente inerentes à sua natureza de associação pública, que anteriormente já lhe estavam conferidos pelo legislador.



Por outro lado, o diploma que aprova o actual Estatuto estabelece, no respectivo art.º 8.º, que “as regras do novo estatuto não prejudicam a manutenção da inscrição dos membros da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas, como tal reconhecidos à data da sua publicação, independentemente do normativo ou disposição legal ao abrigo da qual se inscreveram” (sublinhado meu).



Deste modo, continuando a ser obrigatória a inscrição na Câmara para o exercício da actividade, é importante sublinhar que cada um dos membros inscritos na antiga Associação transitou automaticamente para a nova Câmara, precisamente na condição em que se encontrava inscrito à data da transição, por exemplo, na condição de membro inscrito efectivamente, ou de membro com inscrição voluntária ou oficiosamente suspensa.



À data da transição de uma para outra legislação, V.ª Ex.ª teria a sua inscrição voluntariamente cancelada na antiga Associação, pelo que é precisamente essa a condição que manteve após a transição – e que mantém actualmente – face à nova Câmara, isto é, a de membro com inscrição voluntariamente cancelada.



As novas regras aprovadas pelo Decreto-Lei n.º 452/99 passaram também a aplicar-se automaticamente aos membros da nova Câmara. Assim sendo, as normas do art.º 22.º, n.ºs 1 e 3, do actual Estatuto, relativas à reinscrição após cancelamento voluntário da inscrição passaram a aplicar-se a todos aqueles que, como V.ª Ex.ª, se encontram na situação de membro da Câmara com inscrição voluntariamente cancelada.



Repare ainda V.ª Ex.ª que, no âmbito do revogado Decreto-Lei n.º 265/95, com base no qual terá V.ª Ex.ª solicitado o cancelamento da inscrição da antiga Associação, a eventual reinscrição dos técnicos oficiais de contas cuja inscrição tivesse sido cancelada voluntariamente teria, já ao abrigo daquela legislação, de respeitar as normas relativas à inscrição (cf. art.º 16.º do diploma revogado). O que significa que a transição para a nova legislação em nada alterou, em teoria, a situação de um membro com inscrição voluntariamente cancelada, na medida em que já perante a legislação revogada este membro teria de preencher, para uma eventual reinscrição, as normas previstas para a inscrição inicial ou primeira inscrição. Naturalmente que, na prática e em concreto – não sei se será ou não o caso de V.ª Ex.ª –, poderá não ser assim, já que a legislação em vigor terá estabelecido regras distintas das da legislação anterior, designadamente quanto às habilitações académicas exigidas, para a inscrição na Câmara, logo para a reinscrição após cancelamento da inscrição na mesma.



Noto que, em alternativa, podia V.ª Ex.ª ter optado pela mera suspensão voluntária da sua inscrição, assim se aplicando a mera exigência do art.º 22.º, n.º 2, do Estatuto, ou seja, com possibilidade de lhe ser exigido um exame quando a suspensão se tenha prolongado por mais de dois anos, mas já não sendo positivamente exigidos os requisitos, designadamente habilitacionais, previstos para a inscrição e aplicáveis por via do n.º 3 do citado art.º 22.º



2. A segunda questão objecto da reclamação de V.ª Ex.ª insere-se na análise mais vasta da obrigatoriedade de inscrição, para o exercício de uma actividade ou profissão, nas denominadas associações profissionais, tema já amplamente debatido no nosso país em sede doutrinal e mesmo jurisprudencial.



Assim sendo, a questão da filiação obrigatória em ordens profissionais, analisada à luz designadamente da liberdade de escolha de profissão consagrada pela Constituição, no seu art.º 47.º, n.º 1, foi já suficientemente ponderada pela doutrina e decidida pela jurisprudência.



Começando por citar J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, em anotação precisamente ao art.º 47.º da Lei Fundamental (in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 3ª edição revista, Coimbra Editora, 1993), a liberdade de escolha de profissão implica, enquanto direito de defesa, “não ser forçado a escolher (e a exercer) uma determinada profissão” nem “ser impedido de escolher (e exercer) qualquer profissão para a qual se tenham os necessários requisitos, bem como de obter estes mesmos requisitos. Numa dimensão positiva, corresponderá ao “direito à obtenção dos requisitos legalmente exigidos para o exercício de determinada profissão, nomeadamente as habilitações escolares e profissionais, e ao “direito às condições de acesso em condições de igualdade a cada profissão” (p. 261; sublinhado meu).



Acrescentam os mesmos autores que “a liberdade de escolha é independente do estatuto legal de cada profissão, não implicando ela uma garantia institucional das “profissões livres”, não sendo portanto constitucionalmente ilícito, nem a atribuição de um estatuto público a certas profissões, nem, muito menos, a submissão de certas profissões a um estatuto mais ou menos publicamente condicionado ou vinculado (advocacia, medicina, etc.)” (pp. 262 e 263).



Refere ainda um dos mencionados autores, Vital Moreira, que “a liberdade de profissão está longe de ser um direito absoluto. A Constituição admite expressamente restrições a esse direito. Na verdade trata-se de um dos direitos fundamentais submetidos a expressa cláusula de admissão de restrições por via legislativa, o que as permite nos termos do art.º 18º da CRP, isto é, sempre que se tornem necessárias e adequadas para a salvaguarda de outros direitos fundamentais ou princípios constitucionais” (“Administração Autónoma e Associações Públicas”, Coimbra Editora, 1997, p. 468).



A propósito do direito em análise, os autores da Constituição anotada acima identificados afirmam que “a liberdade de escolha propriamente dita só comporta, em geral, as restrições decorrentes da colisão com outros direitos fundamentais; a entrada ou ingresso admite limites mais intensos, podendo a lei estabelecer certos pressupostos subjectivos condicionadores do direito de escolha (ex.: prova de qualificação profissional, provas de concurso) (…); o exercício da profissão pode estar sujeito a limites ainda mais intensos, principalmente quando da regulamentação não resultam quaisquer efeitos sobre a liberdade de escolha (…)” (ob. cit., p. 263 e sublinhado meu).



Jorge Miranda corrobora o mesmo entendimento, afirmando que “as associações públicas profissionais não acarretam uma diminuição da liberdade de profissão. Muito pelo contrário, correctamente entendidas na perspectiva do Estado de Direito, representam uma garantia reforçada dessa liberdade – porque à filiação necessária na ordem ou na câmara profissional corresponde o direito, com todos os seus corolários, de inscrição por parte dos que reunam as condições legais e porque a filiação confere ao profissional a possibilidade de participar na formação e na aplicação da disciplina da profissão colegiada e, em geral, em toda a vida sócioprofissional” (“Manual de Direito Constitucional”, Tomo IV, 2ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, 1993, p. 446).



No âmbito, por sua vez, da jurisprudência sobre a matéria, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 497/89, de 13 de Julho (publicado no Diário da República, II Série, de 01 de Fevereiro de 1990, pp. 1138 e seguintes), dá plena resposta à questão em análise, reportada no caso à Ordem dos Advogados.



Refere aquele aresto, em primeiro lugar, não poder recusar-se que, “pela sua (…) natureza, e pela sua directa inserção no “processo” social e institucional da realização e da administração da justiça, a advocacia é uma profissão cujo exercício não dispensa uma apurada regulamentação, no tocante, quer às condições e requisitos exigidos para esse mesmo exercício, quer ao controlo da sua verificação, quer à necessidade da obediência, por parte dos respectivos profissionais, a um estrito código deontológico, quer ainda, finalmente, à tutela disciplinar da observância de tal código” (p. 291).



Pode ainda ler-se no mesmo Acórdão que “é a própria Constituição (…) que directamente faculta ao legislador (art.º 47º, n.º 1, quando prevê restrições legais à liberdade de escolha de profissão, impostas pelo interesse colectivo) a possibilidade de impor condições ou limites ao exercício de certas profissões – e entre tais condições, requisitos ou limites não se vê que não possa estar justamente o da inscrição obrigatória dos profissionais em causa numa associação pública “representativa” de todos eles”. Acrescenta o Tribunal que “também sob o ponto de vista agora considerado não vai aí, por certo, nada de desproporcionado ou intolerável – desde, evidentemente, que essa inscrição fique aberta a todos os interessados que preencham os pressupostos legais, e não dependente do puro critério discricionário do órgão ou órgãos associativos competentes para a admissão e o registo dos membros da associação; e, desde, por outro lado, que os que pretendam sê-lo disponham de garantias adequadas (inclusive de natureza jurisdicional) contra o eventual “arbítrio”, nessa matéria, do mesmo órgão ou órgãos (…)” (pp. 292 e 293).



Concluiu aquele Tribunal no sentido de que “a obrigatoriedade de inscrição na Ordem dos Advogados de todos os que pretendam exercer a actividade profissional da advocacia não é uma exigência inconstitucional” (p. 293).



3. A argumentação expendida pelo Tribunal Constitucional aplica-se, com as necessárias adaptações, à Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas.



De facto, o reconhecimento da natureza pública da função dos técnicos oficiais de contas justificará e imporá mesmo a regulamentação legal a que o exercício da profissão está neste momento sujeito. Conforme se pode ler no preâmbulo do já revogado Decreto-Lei n.º 265/95, de 17 de Outubro, que aprovava o Estatuto daqueles profissionais, “os técnicos de contas devem orientar a sua acção por critérios de verdade fiscal e de ética profissional. Nesta medida, é-lhes atribuído um papel relevante junto da administração fiscal, como interlocutores credíveis entre ela e o contribuinte, e o exercício de uma importante acção pedagógica em relação aos operadores económicos em geral e, em especial, junto dos empresários, que têm toda a conveniência em conhecer, com fidelidade, os seus impostos, a fim de poderem efectuar uma rigorosa gestão dos seus negócios”.



Verifica-se assim a existência, no que ao exercício da profissão de técnico oficial de contas diz respeito, de um “interesse público suficientemente consistente” – na expressão utilizada no Acórdão do Tribunal Constitucional acima mencionado – que justifica a admissibilidade de uma associação do tipo da que está aqui em discussão, e desde logo a admissibilidade de inscrição obrigatória na mesma para quem queira exercer efectivamente a actividade.



4. Por tudo o que acima fica dito, não se mostrará viável a adopção, pelo Provedor de Justiça, de qualquer medida a propósito do objecto da queixa de V.ª Ex.ª.