PARECER


Entidade visada: Autoridade da Concorrência
Proc.º: R-3334/06
Área: A2


Assunto: Assuntos económicos. Concorrência. Concentração de empresas. Notificação prévia. Audiência de contra-interessados.



Introdução


1. A queixa apresentada versa sobre a actuação da Autoridade da Concorrência (AdC), no âmbito do procedimento de controlo de duas operações de concentração de empresas (que passarão doravante a ser designadas como operações A e B), nos termos do disposto no artigo 30.º do regime jurídico da concorrência, aprovado pela Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho.  


2. As diligências que foram promovidas pela Provedoria de Justiça junto dessa Autoridade tiveram apenas como propósito esclarecer o procedimento que seguiu em sede de audiência prévia dos interessados no âmbito da operação de concentração B. 


3. Na verdade, todas as restantes questões constantes da queixa apresentada, apesar de terem sido objecto de análise à luz das regras constantes do regime jurídico da concorrência, não legitimam qualquer intervenção da parte do Provedor de Justiça, face ao disposto no respectivo Estatuto (1), uma vez que versam, essencialmente, sobre a oportunidade e o sentido de duas decisões adoptadas pela Autoridade da Concorrência no âmbito das operações de concentração. 


Questão prévia – Jurisdição do Provedor de Justiça sobre a Autoridade da Concorrência


4. A respeito da competência do Provedor de Justiça para apreciar as acções ou omissões imputadas à AdC nesta reclamação, tem vindo a doutrina a admitir que, nos termos do artigo 23.º da Constituição da República Portuguesa e dos artigos 2.º e 29.º da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, dispõe este órgão do Estado de jurisdição sobre as autoridades administrativas independentes, como será o caso da AdC (2). 


5. Contudo, essa jurisdição resume-se a um mero controlo da legalidade das decisões tomadas, sem que caiba ao Provedor de Justiça pronunciar-se sobre o seu mérito. 


6. É que, as decisões adoptadas pela AdC assumem manifesto carácter técnico, e implicam uma especialização no domínio do direito da concorrência e um conhecimento do funcionamento dos mercados de cada um dos sectores económicos, que lhe advêm dos poderes de investigação e de inquirição que legalmente lhe foram atribuídos. 


7. Por isso, e à semelhança do que a Provedoria de Justiça tem vindo a concluir aquando da apreciação de queixas em que os reclamantes contestam as conclusões de relatórios técnicos (por exemplo, quando reclamam contra o teor de relatórios médicos que impossibilitam o deferimento de pedidos de reforma por invalidez), a margem de intervenção deste órgão do Estado nestas matérias restringe-se aos casos de erro manifesto ou ostensivo. 


8. Como ensina o Professor Freitas do Amaral, a respeito da figura da discricionariedade técnica (3): “(…) Casos há em que as decisões da Administração só podem ser tomadas com base em estudos prévios de natureza técnica e segundo critérios extraídos de natureza técnica (…)”


9. Trata-se de uma figura distinta do poder discricionário propriamente dito, pois aqui a Administração não tem liberdade de escolha entre duas soluções igualmente possíveis, mas sim o dever de encontrar a solução acertada, um dever de boa administração. 


10. “(…) Os tribunais, mesmo os administrativos, não podem anular uma decisão da Administração, com o fundamento de que tal decisão não é correcta, ou não é a mais acertada, e muito menos podem substituir decisões técnicas por outras que se lhe afigurem mais convenientes ao interesse público. Não há controle jurisdicional de mérito (…)”.  


11. “(…) Há todavia um caso-limite em que, por excepção a esse princípio geral, a nossa jurisprudência admite – e bem – a anulação jurisdicional de uma decisão técnica da Administração: é a hipótese de a decisão administrativa ter sido tomada com base em erro manifesto, ou segundo um critério ostensivamente inadmissível, ou ainda quando o critério adoptado se revele manifestamente desacertado e inaceitável. Nestes casos, entende-se que a Administração exorbita dos seus poderes e sai abertamente do campo da discricionariedade técnica para entrar no da pura e simples ilegalidade, motivo por que o tribunal administrativo pode anular a decisão tomada pela Administração, embora não possa nunca substituí-la por outra que repute mais adequada (…)”. 


12. Apesar de ter presente que a jurisdição do Provedor de Justiça é distinta daquela que os tribunais exercem sobre as entidades administrativas, neste domínio da discricionariedade técnica não pode também ir mais além do que aferir se as questões que lhe são colocadas pelos particulares são susceptíveis de integrar a prática de erro manifesto ou ostensivo.


Operação de concentração A 


13. Nos termos do disposto no artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 10/2003, de 18 de Janeiro, que aprovou os Estatutos da AdC, esta Autoridade dispunha de um prazo de decisão máximo de 60 dias, contado a partir da data da recepção da notificação, valendo a ausência de decisão no referido prazo como não oposição à operação de concentração. 


14. Em 11 de Junho seguinte (do ano de 2003) foi aprovado o regime jurídico da concorrência que vincula a AdC a novos prazos no âmbito do procedimento de controlo das operações de concentração de empresas, designadamente : 



– 30 dias – nos termos do artigo 34.º, para completar a instrução do procedimento respectivo;
– 90 dias – nos termos do artigo 36.º, para proceder a diligências complementares que considere necessárias.  


15. Sucede, porém, que, de acordo com o n.º 3 do artigo 34.º e o n.º 2 do artigo 36.º do regime jurídico da concorrência, tais prazos suspendem-se sempre que a AdC solicite a entidades públicas ou privadas as informações que considere convenientes para a decisão da operação. 


16. Certo é, também, que cabe a essa Autoridade decidir, no âmbito do seu poder discricionário, a utilidade ou a conveniência de tais elementos adicionais ou a necessidade de diligências de investigação complementares. 


17. Finalmente, previu o legislador um meio de defesa relativamente a eventuais atrasos da parte da AdC, designadamente a presunção de deferimento tácito (artigos 35.º, n.º 4 e 37.º, n.º 3). 


18. Nestes termos, e resultando claramente da queixa que foram pedidos diversos e complexos elementos adicionais aos intervenientes nesta operação de concentração, será de aceitar, como defendeu a AdC, que os prazos supra descritos tenham sofrido uma suspensão legalmente admissível. 


19. De todo o modo, caso a notificante discordasse deste entendimento poderia ter reagido judicialmente contra o indeferimento do pedido de reconhecimento da formação de um acto tácito positivo (deferimento tácito), o que não fez.


20. Quanto às condições que foram impostas pela AdC para que esta operação pudesse ser admitida, ao contrário do que parece resultar da queixa, não se julga que a actuação desta Autoridade esteja confinada ao mero controlo em abstracto de uma operação de concentração, já que legalmente (cfr. artigo 1.º, n.º 2 dos respectivos Estatutos) lhe compete assegurar a aplicação das regras de concorrência em Portugal, no respeito pelo princípio da economia de mercado e da livre concorrência, “(…) tendo em vista o funcionamento eficiente dos mercados, a repartição eficaz dos recursos e os interesses dos consumidores (…)”.  21. Ou seja, não estará vedada à AdC a possibilidade de impôr quotas de mercado e de restringir a aquisição de participações de capital de outras empresas, como condição para a aprovação de uma operação de concentração, desde que tais medidas sejam justificadas pelos objectivos de funcionamento eficiente dos mercados, da repartição eficaz dos recursos e da protecção dos interesses dos consumidores. 


22. No caso em apreço, terá a AdC considerado que a operação de concentração A só permitiria garantir a liberdade de concorrência no mercado, desde que essa Autoridade pudesse continuar a acompanhar de perto a quota de mercado da empresa (…) e as suas participações noutras empresas do mercado do cimento, de forma a garantir que esta operação de concentração não viria a dar origem a práticas proibidas nos termos do regime jurídico da concorrência, designadamente a abuso de posição dominante ou abuso de dependência económica. 


23. Trata-se, é certo, de medidas de natureza preventiva, mas a legislação aplicável autoriza o exercício deste poder de prevenção à AdC, quando lhe atribui, em sede de operações de concentração de empresas, a faculdade de “imposição de condições e obrigações destinadas a garantir o cumprimento de compromissos assumidos pelos autores da notificação com vista a assegurar a manutenção de uma concorrência efectiva” (cfr. artigo 35.º, n.º 3 da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho).  24. Por outro lado, a obrigação de respeito por uma quota de mercado ficaria sujeita a revisão em função das condições concorrenciais efectivas e das aquisições de participações em empresas do sector sujeitas a autorização prévia da AdC, pelo que as condições não tinham sequer um carácter definitivo ou irreversível durante o período imposto. 


25. Acresce ainda que, como resulta do artigo 12.º, n.º 2, alínea c) do regime jurídico da concorrência, um dos critérios na apreciação das operações de concentração consiste, exactamente, na respectiva análise em termos de concorrência potencial, isto é, dos efeitos que a aprovação da operação possa vir a ter, a curto, a médio ou a longo prazo, em termos concorrenciais, no mercado a que se dirige.  


26. Esta análise rejeita assim quaisquer indícios de cometimento de erro ostensivo ou manifesto que pudesse justificar um juízo de censura por parte do Provedor de Justiça, no que se refere às condições impostas pela AdC para admitir esta operação de concentração. 

27. De resto, caso tivesse prosseguido com a notificação da operação de concentração, poderia a notificante ter reagido contra uma eventual decisão de oposição da AdC, uma vez que foi prevista na lei uma instância de recurso para o membro do Governo responsável pela área da economia, com possibilidade de impugnação judicial junto do Tribunal de Comércio de Lisboa (cfr. artigos 34.º e 38.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 10/2003, de 18 de Janeiro, que aprovou os Estatutos da Autoridade da Concorrência e artigo 54.º da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho).


Operação de concentração B 


28. No que se refere à alegada demora da parte da AdC na apreciação desta operação, reitera-se o que se referiu supra sobre a suspensão dos prazos de decisão e o deferimento tácito: as diligências complementares suspendem a contagem dos prazos de decisão, competindo à notificante, caso discordasse desse entendimento, reclamar junto da AdC a formação de um acto tácito positivo. 

29. No que diz respeito às condições que foram impostas à empresa (…) para que a operação fosse aceite, de igual modo se julga ser aqui de repetir o que se defendeu a propósito da outra operação de concentração, designadamente, quanto à faculdade que assiste legalmente à AdC quanto à imposição de condições e obrigações destinadas a garantir o cumprimento dos compromissos assumidos com vista a assegurar uma concorrência efectiva. 


30. Porém, não haverá como negar que o acatamento dessas condições será prejudicial para a (…) – porque impediu a (…) de adquirir cimento à (…) durante um período de dois anos – o que, à partida, obrigaria a AdC a ouvir esta empresa antes de tomar a decisão final de não oposição, nos termos do disposto no artigo 38.º da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho. 

31. Por esse motivo, e como se começou por dizer, foi a AdC questionada, no âmbito da instrução deste processo, a respeito dessa pretensa inobservância do dever de audiência dos interessados.  

32. Contudo, os esclarecimentos que tal diligência permitiu obter dissipam qualquer dúvida que pudesse subsistir a respeito da legalidade do procedimento seguido pela AdC.


33. De facto, seguindo uma doutrina administrativista que se julga irrepreensível (4), defendeu a AdC que o dever de audiência dos interessados considera-se cumprido quando o instrutor lhes deu a possibilidade de se pronunciarem e não com a sua efectiva pronúncia. 

34. Ora, nos termos do disposto no artigo 33.º da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho, “no prazo de 5 dias contados da data em que a notificação produz efeitos, a Autoridade promove a publicação em dois jornais de expansão nacional, a expensas dos autores da notificação, dos elementos essenciais desta, a fim de que quaisquer terceiros interessados possam apresentar observações no prazo que for fixado, o qual não pode ser inferior a 10 dias”.


35. Quanto à operação de concentração em causa, terá a Autoridade da Concorrência procedido à publicação de um aviso no “Diário de Notícias” e no “Jornal de Negócios”, ambos de … de … de …, tornando público o recebimento, em … de … de …, da notificação prévia de concentração entre as sociedades (…)/(…), assim como, notificando todos os terceiros interessados a produzirem quaisquer observações sobre a operação em causa no prazo máximo de 10 dias úteis, dando-lhes assim a oportunidade de se virem a constituir como contra-interessados no âmbito da mesma operação de concentração.


36. Contudo, segundo informou a AdC, a (…) não se constituiu contra-interessada no processo, nada tendo vindo a alegar dentro do prazo para tanto estabelecido pela Autoridade da Concorrência.


37. Por outro lado, repare-se que o artigo 38.º do regime jurídico da concorrência restringe a noção de contra-interessados àqueles que, no âmbito do procedimento, se tenham oposto à concentração.


38. Ou seja, não cabe à AdC, enquanto conhecedora do mercado, elencar quais as empresas que possam deter interesses contrários aos da concentração proposta, devendo essas empresas vir ao processo manifestar tais interesses, formalizando a respectiva oposição, para que a mesma possa ser tida em conta aquando da decisão final.


39. Não se tendo a (…) constituído como contra-interessada, dentro do prazo fixado pela AdC – que se contem dentro da previsão legal – não pode agora, uma vez concluído esse processo, vir a invocar essa qualidade para se opôr à operação de concentração nos ternos em que foi admitida, por não ter sido previamente ouvida.


Conclusões


40. Perante o que acima foi referido, é possível sistematizar as seguintes conclusões :



a) a jurisdição do Provedor de Justiça abarca a actuação da AdC, mas,


b) as decisões adoptadas pela AdC no âmbito das operações de concentração enquadram-se no âmbito da discricionariedade técnica de que gozam as entidades administrativas, pelo que,


c) só podem ser censuradas pelo Provedor de Justiça (assim como anuladas pelos tribunais) em caso de erro ostensivo ou manifesto;


d) os prazos de decisão relativamente às operações de concentração suspendem-se sempre que são pedidos elementos instrutórios adicionais, como foi o caso;


e) caso a notificante discordasse deste entendimento poderia ter reagido judicialmente contra o indeferimento do pedido de reconhecimento da formação de um acto tácito positivo (deferimento tácito), o que também não fez;


f) a imposição de condições para a aprovação das operações de concentração não denuncia erros ostensivos da parte da AdC que pudessem justificar a intervenção do Provedor de Justiça;


g) na apreciação das operações de concentração a AdC pode adoptar medidas preventivas destinadas a garantir a concorrência no mercado após a respectiva aprovação (concorrência potencial);


h) as decisões da AdC em matéria de operações de concentração de empresas são susceptíveis de recurso extraordinário para o Ministro da Economia e de impugnação judicial junto do Tribunal de Comércio;


i) foi dada à (…) a possibilidade de se pronunciar sobre a operação de concentração;


j) não tendo usado da faculdade de se constituir como contra-interessada no âmbito do procedimento, não estaria a AdC obrigada a ouvi-la em sede de audiência dos interessados, antes de proferir a decisão final. 


41. Assim sendo, considera-se que não deve o Provedor de Justiça, dadas as competências constantes do seu Estatuto e o disposto no regime jurídico da concorrência e nos Estatutos da Autoridade da Concorrência, ter qualquer tipo de intervenção ou emitir qualquer juízo de censura quanto ao procedimento seguido por essa Autoridade no âmbito das operações de concentração objecto de queixa. 


42. Com base nesta proposta foi determinado o arquivamento do processo.


 


 


Notas de rodapé:


(1) Aprovado pela Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, que foi revista pelas Leis n.ºs 30/96, de 14 de Agosto e 52-A/2005, de 10 de Outubro.


(2) Cfr. Vital Moreira in “O Cidadão, o Provedor de Justiça e as Entidades Administrativas Independentes”, 2002, págs. 113 a 116: “(…) A jurisdição do Provedor de Justiça abarca necessariamente as entidades/autoridades administrativas independentes, por um lado porque ela abrange constitucionalmente toda a esfera administrativa, por outro lado, porque as referidas entidades pertencem ao domínio da Administração, tanto objectivamente (pela sua actividade), como subjectivamente (por integrarem a Administração Pública)”.


(3) In “Direito Administrativo”, vol. II, 1988, págs . 174 e ss.


(4) Cfr. Mário Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves e J. Pacheco de Amorim in ” Código do Procedimento Administrativo Comentado”, 2.ª Edição, 1997, pág. 454.


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