PARECER


Entidade visada: Ministra da Educação
Proc.º: R-3191/06


 Assunto: Acesso ao ensino superior. Aproveitamento de nota dos exames de Química e Física da 2.ª fase para ingresso na 1ª fase do concurso nacional de ingresso no ensino superior.


 
Como Vossa Excelência seguramente poderá supor, a recente decisão tomada por esse Ministério, através do Senhor Secretário de Estado da Educação (em documento adiante designado por Despacho), motivou a apresentação de várias queixas ao Provedor de Justiça, por parte de vários alunos e encarregados de educação, formulando-se pretensões nem sempre entre si concordantes.


Tendo por pano de fundo os alegados maus resultados verificados nas provas de exame da 1.ª fase nas disciplinas de Química e Física (códigos 642 e 615), admitiu tal Despacho a possibilidade de melhoria dessas notas nos exames realizados na 2.ª fase, consistindo a excepcionalidade deste tratamento na permissão de utilização da nota eventualmente melhorada ainda na 1.ª fase do concurso nacional de ingresso no ensino superior para o ano de 2006/2007.


Na sequência de indagação feita pelo Governo, por decisão singular do Senhor Presidente da Comissão Nacional de Acesso ao Ensino Superior foi “aprovada” a Deliberação n.º 6/2006 (adiante Deliberação), imputada pelo próprio texto à CNAES, no seu todo, na mesma se estabelecendo, nos n.ºs 1 e 2, a extensão a todas as disciplinas do regime constante do Despacho, para, logo de seguida, se condicionar a eficácia de tal decisão à concordância (não obtida) do Ministério da Educação. Formulam-se, ainda, algumas sugestões para esta hipótese negativa, designadamente de alargamento a outras provas do âmbito de aplicação do Despacho.


Nas queixas recebidas, mimetizando o debate nacional que a comunicação social retratou, as mais variadas soluções foram apontadas como correspondendo, pelo menos como aproximação, ao ideal de justiça e igualdade de oportunidades que deve presidir a momento tão importante e decisivo para o futuro de dezenas de milhar de jovens, como é a atribuição, por concurso, de um número finito e limitado de vagas no ensino superior público.


Tratando-se de um concurso e não de simples aferição de mérito absoluto para a frequência do ensino superior, a conflitualidade dos vários interesses particulares em presença é evidente, o que, expresso de outro modo, se traduz na impossibilidade de se tomar como neutra qualquer modificação nas regras que moldam o complexo sistema de determinação do direito a certa vaga num par curso-estabelecimento.


Qualquer modificação das regras, designadamente das que estão aqui em causa, certamente que ocasionará uma modificação da lista graduada de candidatos, que será distinta daquele que hipoteticamente se poderia traçar no quadro normativo ex ante.


Ora, não discutindo, nem tal sendo relevante para a perspectiva que afirmo, a bondade da apreciação que pelo Despacho foi feita da realidade evidenciada pelos resultados das provas de exame em questão, creio que a postura a assumir pelas entidades públicas a quem cabe, nas suas várias vertentes, a condução deste processo tem que se basear, essencialmente, num critério basilar de protecção da confiança.


Dependendo a seriação dos candidatos de uma série vasta de classificações, naturalmente que não se pode considerar como imutável, v .g. ao longo do percurso de um aluno no ensino secundário, o conjunto de regras que fazem a sua tradução para um certo lugar na lista ordenada para colocação.


Todavia, em cenário tão complexo e melindroso, é notória a preocupação, justa, que se tem tido com a aquisição de estabilidade propiciadora de um adequado planeamento por parte dos interessados, por exemplo na antecedência com que são fixadas as condições de acesso a cada par curso-estabelecimento, designadamente em termos de provas de ingresso.


Essa estabilidade, geradora da previsibilidade indispensável à adequada conformação de condutas pelos particulares, deve ser especialmente acarinhada e intransigentemente defendida quando se entra em fase tão decisiva como é a realização de exames e a obtenção das respectivas classificações.


Estabelecido que esteja certo conjunto de regras, modificando-se as mesmas após o início da realização das provas é seguro que a solução final alcançada será certamente diversa da solução hipoteticamente verificável na ausência de tal alteração. Isso traduz-se na modificação de posições relativas o que, no limite, poderá significar que determinado aluno obtenha a colocação que antes caberia a outrem.


Não existe neutralidade numa decisão deste tipo, como afirmei, e o desejo de se obter, casuisticamente e num acompanhamento da realidade exibida pelas provas de exame, uma rigorosa equidade confunde-se com a criação de uma bicéfala situação de insegurança e potencial arbitrariedade.


Pode esse Ministério defender a decisão tomada com base em múltiplos critérios e perspectivas de análise dos resultados dos exames, tomados isolada ou comparativamente. Não discuto, minimamente, a bondade das motivações que conduziram à prolação deste Despacho. O que, todavia, certo é e não sofre dúvida é que a decisão no mesmo contida enxerta-se temporalmente num processo já em curso e sem ter qualquer arrimo normativo anterior que lhe conferisse sustentação.


Assim fazendo, tomou o Ministério uma decisão que é uma de entre várias decisões igualmente justificáveis, no limite a inicialmente proposta pela CNAES e que só não terá sido aceite por motivos logísticos, aliás compreensíveis.


Todavia, diga-se que mesmo essa conversão da excepção em regra representaria, ainda assim, uma modificação das regras no meio de um concurso, potencialmente correspondendo a inversão de posições relativas. Pense-se, por exemplo, na situação de um candidato que, na 1.ª fase, tinha obtido 20 valores em certo exame. Decerto que a sua situação, em termos de colocação na lista seriada, só poderá piorar com a possibilidade dada aos outros candidatos, contrariamente às regras estabelecidas prévia e atempadamente, de realizarem uma segunda prova. O mesmo sucederá com os alunos que na 1.ª fase tinham obtido boas classificações, na prática estando a permitir-se aos demais uma hipótese adicional à ultrapassagem daqueles.


Tal nada teria de errado se constasse das regras do jogo. Mas, por mais justa que possa parecer a sua modificação, a certeza do Direito e a segurança e confiança que os cidadãos nele devem ter também correspondem a impulsos primários de justiça.


Contrapor-se-á que, em situações excepcionais, se devem encontrar respostas excepcionais. Naturalmente que não sendo possível tudo prever, há oportunidade de atempadamente se estabelecerem mecanismos de correcção.


Dando um exemplo concreto, não é adequado invocar-se como fundamento para a diferenciação objectiva que foi agora estabelecida entre os candidatos que se apresentaram a exame na 1.ª fase e aqueles que, confiando nas regras estabelecidas, optaram por se apresentar na 2.ª fase, a vantagem comparativa que para estes constituiu o conhecimento oportuno do enunciado da prova de exame da 1.ª fase.


É que, por um lado, todos os alunos puderam, em tempo, optar por beneficiar dessa vantagem comparativa, no limite optando todos por se apresentar directamente na 2.ª fase e conhecer assim o enunciado da 1.ª Essa vantagem, que é verdade existe para os alunos que assim fizeram, não é, desta forma, ilícita nem viola a igualdade de oportunidades que para todos deve ser estritamente mantida.


Por outro lado, e aqui entra já a responsabilidade de previsão desse Ministério, uma forma justa e adequada de diminuir ou eliminar essa vantagem comparativa, sem menoscabo das expectativas ou mesmo dos direitos de ninguém, seria a elaboração de provas-modelo, que, atempadamente divulgadas, permitiriam aos candidatos que pretendessem aceder à 1.ª fase conhecer que tipo de prova seria apresentada.


Num outro nível, ainda que não ficando provada qualquer deficiência ou irregularidade na concepção de provas de exame ou no decorrer da sua realização ou correcção, como no caso parece ter sucedido ou, pelo menos, não é aceite pelo Ministério da Educação como pressuposto da decisão contida no Despacho, é possível verificarem-se situações como as que alegadamente ora ocorreu, de grandes diferenças de valores médios face a resultados ocorridos em anos anteriores ou face a provas diversas da mesma disciplina.


A resposta justa à injustiça potencial que estes indicadores revelam não é, certamente, a adopção de critérios de decisão que não estejam anteriormente bem definidos e delimitados. Se a previsão desses critérios pode licitamente ocorrer para um universo indeterminável de beneficiários, o risco de a equidade se confundir com o casuísmo e a arbitrariedade é imenso, isto ao tomarem-se semelhantes decisões quando esse universo já é conhecido e perfeitamente determinado.


Dito de outra forma, há decerto métodos de padronização de classificações que, a serem adoptados em tempo útil, poderão ser defendidas como aptas a eliminar as contingências que ocasionam tais anomalias.


Nada impedindo que, antes da realização das provas, ficassem fixados esses critérios de padronização, também não repugnaria que ficasse alternativamente estabelecido, uma vez mais, atempadamente, que a verificação de certos condicionalismos, perfeitamente objectivados, ocasionasse a aplicação de regra similar àquela que consta do Despacho.


Friso, uma vez mais, que se trata, sempre, do momento em que se toma a decisão e não do teor concreto da mesma, sendo certo que a sua justiça e legalidade também dependem da sua inserção cronológica no processo concursal.


Num outro nível, será de expressar aqui a minha discordância com a forma seguida, quer na emissão do Despacho, quer na da Deliberação, muito embora esta última extravase o âmbito desse Ministério. Assim, existindo regra legal clara a propósito da possibilidade de utilização ou não da classificação da 2.ª fase dos exames na 1.ª fase do concurso (cfr. art.º 42.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 296-A/98, de 25 de Setembro, na sua versão actual), é manifestamente ilegal uma decisão administrativa que frontalmente a contraria, qualquer que seja a fundamentação invocada.


Do mesmo modo, estranha-se a Deliberação ter sido decidida apenas pelo Presidente do órgão em causa, não se mostrando, nem estar prevista na Lei competência para estabelecer regras a este propósito, aliás uma vez mais contrariando o sentido do citado art.º 42.º, n.º 2 , nem estar estabelecida a possibilidade da delegação dessa competência no Presidente da CNAES.


Acredito que, precisamente por via das certezas que a este respeito se terão entretanto formado, tenha sido esta flagrante ilegalidade a occasio da alteração que foi aprovada pelo Conselho de Ministros de 27 de Julho p. p. ao Decreto-Lei n.º 296-A/98. Citando o comunicado oficial, esta alteração visaria “permitir que a classificação final do ensino secundário utilizada na primeira fase do concurso de acesso e ingresso no ensino superior possa integrar melhorias de classificação obtidas na segunda fase dos exames nacionais, em certas circunstâncias excepcionais verificadas no processo de avaliação e que sejam fundamentadamente reconhecidas como susceptíveis de prejudicar gravemente os candidatos ou de pôr em causa o princípio da igualdade entre as candidaturas”.


Desconhecendo, neste momento, o teor concreto deste diploma, admito que estabeleça o mesmo, de modo suficientemente balizado, critérios de actuação em futuras situações deste género, assim respondendo ao que atrás se argumentou.


Todavia, é ainda de lamentar se, como presumo, esteja explícita ou implícita no seu texto a vontade de se aplicar ao caso presente. Mesmo partindo do princípio que o diploma é imediatamente enviado para promulgação, que obtém a necessária sanção de Sua Excelência o Presidente da República e que é publicado no mais curto lapso, dificilmente estará o mesmo publicado antes do final da apresentação de candidaturas à 1.ª fase do concurso.


Mencionando agora um outro cenário hipotético, o respeito do termo final do prazo constitucional para o assentimento presidencial à decisão de legislar tomada pelo Governo levaria a que a publicação só se alcançasse praticamente quando estivessem para ser revelados os resultados dessa primeira fase de candidatura.


Tal significa, com toda a probabilidade, que a Administração vai executar os procedimentos concursais com base no Despacho, ilegal, contando com a suposta sanação do vício pela posterior entrada em vigor, plausivelmente com efeitos retroactivos, do Decreto-Lei ora aprovado.


Especialmente se assim for, mas em todo este processo, uma vez mais se revela uma característica que, infelizmente, muitas vezes se tem detectado no Ministério da Educação, qual seja a da preterição do princípio da legalidade (1). Na verdade, como em 30 de Dezembro de 2002, pelo meu ofício n.º 17198 (2), tive ocasião de exprimir ao antecessor de Vossa Excelência, notei então, a propósito de certo procedimento, “o desrespeito frontal do princípio da hierarquia de fontes normativas, induzindo pela via regulamentar, indubitavelmente mais simples, o contorno de obrigações criadas por lei, tudo num movimento que tenta, sem conseguir, iludir a questão da ilegalidade da situação assim criada.”


Como então escrevi, “num Estado de Direito, o procedimento correcto seria sempre o de alteração da norma legal, para, então sim, em execução da nova norma, se tomarem as providências administrativas adequadas.” Em solução em tudo transponível para a articulação que hoje se pode fazer entre o Despacho e o recém-aprovado Decreto-Lei, notei que “à altura da emissão da circular em apreço, nada permitia considerar como segura a entrada em vigor do que mais tarde se chamou Decreto-Lei 209/2002. Assim, muito embora essa medida pudesse corresponder já à vontade política de Vossa Excelência, existia a hipótese de não ser essa a vontade do Conselho de Ministros ou a do Presidente da República, sendo certo que o veto de decretos do Governo é absoluto.”


Finalmente, em observação que julgo pertinente reiterar, “mais do que um atropelo ao princípio da legalidade e, evidentemente, ao do Estado de Direito, trata-se de um exercício antipedagógico, em matéria de cidadania e de respeito pelas normas que a todos devem vincular, precisamente por parte de um serviço do Estado que mais preocupações devia ter nesse domínio.”


Acresce que não é líquido que produza o Decreto-Lei ora aprovado os efeitos pretendidos, no que ao concurso em causa diz respeito. Reservando por ora qualquer apreciação que só face ao seu teor exacto seria possível e faria sentido, muito embora não exista constitucionalmente qualquer proibição genérica da retroactividade das normas, tal não as exime do confronto com princípios constitucionais, tais como o da protecção da confiança e da igualdade, aqui especificamente invocáveis.


Têm razão em se considerar lesados, muito embora, em concreto, possam não o ser, os alunos que, podendo ou não usufruir das possibilidades abertas pelo Despacho, confiaram nas regras a este propósito estabelecidas. Pelo menos é essa confiança que podem considerar como vulnerada.


Já não posso, todavia, acompanhar as queixas recebidas no que diz respeito ao pretendido alargamento do âmbito do Despacho. Para além das questões de ordem material já invocadas, importantes mas eventualmente não determinantes, concordar com tal alargamento seria contradizer tudo o que atrás escrevi. Também não é conceptualmente correcto afirmar-se que o alargamento da possibilidade de repetição de exames reconstituiria uma situação ideal de igualdade, já que não se poderia afirmar que a lista seriada final seria a mesma caso se tivesse escrupulosamente cumprido o que a este respeito estava normativamente determinado.


De fora, sempre ficariam aquelas pessoas que maiores razões de queixa porventura terão, os alunos que optaram por ir apenas à 2.ª fase. No modelo proposto pela Deliberação e apoiado por várias queixas que me foram apresentadas, mas que rejeito, nos termos facilitistas enunciados, estes alunos só alcançariam uma pretensa igualdade, ainda assim menorizando eventualmente os danos causados, se para os mesmos fosse disponibilizada uma 3.ª fase, cenário que nem sequer valerá a pena esmiuçar.


Apesar das considerações que atrás deixo, não posso também aceder a outro conjunto de queixas recebidas e que exigiam a revogação do Despacho e o cumprimento estrito do disposto no art.º 42.º, n.º 2, citado. É que, bem ou mal, as provas da 2.ª fase já foram realizadas pelos alunos que confiaram na decisão administrativa traduzida nesse Despacho.


Não contestando que tal facto possa ser juridicamente inoperante, o que plausivelmente só se dilucidaria devidamente em tribunal, não entendo pertinente recomendar a Vossa Excelência o que me era pedido, entendendo que outras vias existirão para corrigir esta situação, sem prejuízo dos interesses legítimos dos particulares envolvidos, todos eles numa fase crucial da sua vida.


Desta forma, manifestando claramente o meu desacordo com a introdução de soluções casuísticas a meio do decurso do processo de exames e chamando uma vez mais a atenção para a necessidade de ser estritamente cumprido o princípio da legalidade, sugiro a Vossa Excelência que, atempadamente, seja estudado o conjunto de soluções que, normativamente fixadas em tempo útil, permitam acorrer, caso seja necessário, a situações como a presente.


Mais uma vez reafirmando que não quero pôr em causa a bondade da argumentação em que se estriba o Despacho e os seus intuitos, certamente louváveis, é necessário que o Ministério da Educação se dote em tempo dos instrumentos normativos que permitam, com clareza e transparência, adoptar critérios de correcção de resultados anómalos obtidos em provas de exame.


Tais critérios, por esse procedimento claro e atempado, obterão certamente o respeito da comunidade educativa, se não concordando com o seu teor, pelo menos aceitando a legitimidade da decisão.


No que toca ao concurso do presente ano, sugiro vivamente a Vossa Excelência que, a pretender-se aplicar a doutrina do Despacho, eventualmente recolhida pelo diploma legal ora aprovado, tal actuação seja feita sem menoscabo dos alunos que legitimamente iniciaram a prestação de provas de exame confiando no Estado. Para tanto, sem lesão do interesse de particulares, o recurso às normas, já existentes, que permitem a criação de vagas adicionais, quando tal se mostre necessário para correcção de irregularidades imputáveis ao Estado (como é o presente), pode, em articulação com a CNAES e as instituições de ensino superior, ser uma resposta justa à injustiça ora sentida.


 


 






Notas de rodapé:


(1) Reporto-me, como é evidente, apenas às questões relacionadas com a regulação do sistema de ensino.


(2) Cfr. Relatório por mim apresentado à Assembleia da República referente ao ano de 2002, na pg. 846.


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