INFORMAÇÃO



Processo n.º: 963/11 (A2)


Entidade visada: Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo


Assunto: Infracção tributária – Código Aduaneiro Tributário. RGIT. Inexistência de recurso hierárquico do acto de levantamento de auto de notícia.



 


A – Questões colocadas:



O Reclamante, na qualidade de declarante aduaneiro, vem colocar diversas questões relacionadas com inexactidões no preenchimento de declarações aduaneiras (DAU), de que não resulta prejuízo para a receita tributária e que, ainda assim, são punidas a título de contra-ordenação.


Apresenta, em concreto, a situação referente à DAU n.º 204345 37, de 29/01/2009, da Alfândega de Lisboa, em que declarou uma partida de mercadorias cujo valor vinha expresso em reais, a que aplicou uma taxa de câmbio diversa da que se encontrava então em vigor, punida com coima de € 175,50, de cuja decisão não pode recorrer hierarquicamente.


Segundo o Reclamante, a possibilidade de ser deduzido recurso hierárquico contra a decisão de aplicação da coima, justificar-se-ia pelos seguintes motivos:



1. A liquidação da dívida aduaneira é efectuada oficiosamente, por processos informatizados, não relevando a inexactidão da declaração para o apuramento da mesma, pelo que, apesar da irregularidade cometida, nunca haverá prejuízo efectivo para a receita tributária;


2. Na situação concreta que apresenta, tendo a DAU sido conferida pela funcionária que a recebeu e permitiu que a mesma seguisse para “aceitação” e subsequente liquidação da dívida aduaneira, não se justificaria o levantamento de auto de notícia, por haver “pareceres internos da DGAIEC, segundo os quais não são de sancionar erros declarativos que não relevam para o cálculo da dívida aduaneira”;


3. Os autos de notícia/participações evoluem rapidamente para processos de contra-ordenação e há funcionários que “fazem destas participações sistemáticas de contra-ordenações um modo de vida”, porque têm participação no produto das coimas;


4. Para que o auto de notícia não dê origem à instauração de processo de contra-ordenação, o declarante é convidado a pagar a coima reduzida, cujo valor é inferior à taxa de justiça paga pelo recurso judicial da decisão condenatória, não o justificando economicamente;


5. Os operadores económicos “quando ganham consciência da habitualidade do procedimento [da verificação das inexactidões e levantamento dos autos de notícia], provocam a deslocalização das declarações para outros portos ou aeroportos (…) onde se trabalha com inteligência”;


6. Por todas as razões indicadas considera o Reclamante aconselhável que “a mera possibilidade de recurso hierárquico deste tipo de decisões, à semelhança do que existia nos idos anos 80 e anteriormente, bastaria para extirpar esta perversão”.



 


B – Enquadramento jurídico:



1. A liquidação da dívida aduaneira



a) – A liquidação da dívida aduaneira é efectuada em obediência às disposições do Código Aduaneiro Comunitário (CAC), aprovado pelo Regulamento (CEE) n.º 2913/92 do Conselho, de 12/10/92 e das Disposições de Aplicação do Código Aduaneiro Comunitário (DACAC), constantes do Regulamento (CEE) n.º 2454/93 da Comissão, de 02/07/93, pelas taxas indicadas na Pauta Aduaneira Comum;


b) – De acordo com o n.º 1 do artigo 29.º, do CAC, o valor aduaneiro das mercadorias importadas, enquanto elemento essencial da liquidação dos direitos aduaneiros, é, em regra, o seu “valor transaccional, isto é, o preço efectivamente pago ou a pagar pelas mercadorias quando são vendidas para exportação com destino ao território aduaneiro da Comunidade”;


c) – Os artigos 168.º e seguintes das DACAC contêm disposições relativas às taxas de câmbio, estabelecendo o artigo 169.º a obrigatoriedade de conversão do valor expresso em moeda diferente da do Estado Membro da entrada dos bens, para determinação do valor aduaneiro das mercadorias, estabelecida e publicitada pelas respectivas autoridades aduaneiras.



2. A tipificação da infracção – “Omissões e inexactidões nas declarações ou em outros documentos tributariamente relevantes”.



a) – Considerando a situação concretamente referida na queixa, relativa ao erro na aplicação da taxa de câmbio do real brasileiro, à data da apresentação da DAU n.º DAU n.º 204345 37, de 29/01/2009, da Alfândega de Lisboa, afigura-se que o mesmo preencherá o tipo de contra-ordenação previsto e punido pelo artigo 111.º – A, do RGIT , aditado pela Lei n.º 67-A/2007, de 31/12 (O. E. para 2008), em vigor a partir de 01/01/2008;


b) – Efectivamente, em data anterior à da vigência da referida norma, os erros declarativos que não relevassem para o cálculo da dívida aduaneira não eram penalizados, por se não subsumirem na previsão do artigo 111.º, do RGIT , a que faz referência;


c) – Em anotação ao artigo 111.º – A, do RGIT, escrevem Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos que “o objecto da contra-ordenação aqui prevista é qualquer documento de que constem factos fiscalmente relevantes (…) as declarações e os documentos comprovativos de factos, valores ou situações daquelas constantes (…) tem carácter residual em relação à prevista no art. 111.º (…). Trata-se assim de qualquer divergência entre o teor dessas declarações e documentos e o que deles deveria constar (…). Pretende-se defender com esta norma a veracidade das declarações e documentos referidos, as omissões e inexactidões que relevam para este efeito são as relativas à matéria de facto que os sujeitos passivos (…) e não (…) as concernentes à interpretação da lei (…). Neste art. 111.º – A (…) os limites da contra-ordenação não dependem da existência ou não de imposto a liquidar. No entanto, a inexistência de imposto a liquidar constituirá uma circunstância diminuidora da ilicitude (…) é possível a redução da coima nos termos dos arts. 29.º , 30.º , 75.º , verificados os respectivos requisitos (…) [e] por pagamento voluntário, nos termos do artigo 78.º , do RGIT (…). Nos casos em que (…) não causarem prejuízo à receita tributária, será possível a dispensa da coima, prevista no artigo 32.º, n.º 1, do RGIT . Nas situações e que tal prejuízo exista (…) é possível a atenuação especial, nos ternos previstos no n.º 2 do mesmo artigo 32.º.”.



3. Da possibilidade de recurso hierárquico da decisão de aplicação da coima.



a) – Quando se fala de decisão de aplicação da coima pelo órgão competente para o efeito, a que se refere o artigo 52.º, do RGIT , está a falar-se de um acto praticado no processo de contra-ordenação que tem por base qualquer um dos documentos mencionados no artigo 56.º do mesmo diploma legal ;


b) – Porém, nem sempre o auto de notícia, a participação ou a denúncia dão origem à instauração de um processo de contra-ordenação, uma vez que o próprio contribuinte ou obrigado tributário pode regularizar espontaneamente a infracção, antes da abertura daquele processo – conclusão que se poderá extrair de diversas normas do RGIT, entre as quais a constante da alínea d) do mencionado artigo 56.º, em que se determina que a declaração do contribuinte ou obrigado tributário que não tenha exercido o direito à redução da coima, também servirá de base à instauração do processo. A contrario, concluir-se-á que, sendo exercido o direito à redução da coima, não será instaurado processo de contra-ordenação, nem haverá decisão de aplicação de uma coima;


c) – De facto, sendo possível a redução da coima e tendo o obrigado tributário exercido esse direito, não poderá falar-se propriamente em decisão de aplicação de coima, uma vez que esta vem legalmente estabelecida em relação percentual com o mínimo da moldura de cada tipo de infracção contra-ordenacional;


d) – Haverá assim que distinguir dois momentos:


1. aquele em que a coima é paga por referência a uma percentagem do mínimo legal, sem que haja uma decisão de aplicação da coima (mas sem exclui a possibilidade de erro material na determinação do quantitativo a pagar), em momento anterior à instauração do processo de contra-ordenação e,


2. aqueloutro, em que a entidade competente para a fixação da coima, no âmbito do processo de contra-ordenação, decide do seu “quantum”, entre o mínimo e o máximo da moldura punitiva, em função dos requisitos estabelecidos pelo artigo 79.º, do RGIT ;


e) – No âmbito do direito anterior, previa o n.º 4 do artigo 213.º, do Código de Processo Tributário (CPT) a possibilidade de recurso judicial da decisão do recurso hierárquico das coimas aplicadas sem dependência de processo contra-ordenacional nos termos dos artigos 25º e seguintes, ou seja, nas situações em que era possível o pagamento de coima reduzida, antes da instauração do processo de contra-ordenação, agora previstas nos artigos 29.º e 30.º, do RGIT;


f) – Muito embora o artigo 80.º, do RGIT , contenha a norma equivalente ao anterior artigo 213.º do CPT, não foi ali mantida a possibilidade de recurso hierárquico dos actos de aplicação de coimas na fase prévia ao processo de contra-ordenação, o que, aliás, se coaduna com o Regime Geral das Contra-Ordenações (RGCO), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27/10, aplicável subsidiariamente ao RGIT, nos termos da alínea b) do seu artigo 3.º ;


g) – Contudo, segundo Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, em anotação ao artigo 29.º, do RGIT, os actos praticados pela administração fiscal antes da instauração do processo de contra-ordenação (citam os A.A. como exemplo o indeferimento de um pedido de redução de coima) são susceptíveis de recurso hierárquico, por se inserirem num procedimento de natureza jurídico-tributária, nos termos dos artigos 80.º, da LGT, 66.º e 67.º, n.º 1, do CPPT, “como se conclui do preceituado no corpo e na al. a) do art. 2.º da LGT”; no entanto, sendo o recurso hierárquico meramente facultativo e de efeito meramente devolutivo, a sua interposição não obstará à instauração do processo de contra-ordenação e a que seja proferida uma decisão de aplicação de coima, apenas susceptível de recurso judicial, nos termos do artigo 80.º, do RGIT (a menos que a entidade recorrida tenha revogado na sua totalidade o acto objecto de recurso hierárquico, revogação expressamente permitida pelo n.º 4 do artigo 66.º, do CPPT).



4. Da possibilidade de recurso hierárquico do acto de levantamento do auto de notícia.



a) – Não obstante quanto fica dito, a análise de alguns dos excertos da queixa suscitam a dúvida sobre a verdadeira extensão que o Reclamante pretenderia atribuir ao recurso hierárquico que permitiriam pôr termo ao pretenso “abuso” dos funcionários da DGAIEC no levantamento de autos de notícia pela prática de infracções declarativas – crê-se que o que se pretende pôr em causa é a própria validade do auto de notícia/participação lavrado por funcionário competente, ainda que dele constem todos os requisitos estabelecidos pelo artigo 57.º do RGIT ;


b) – Recorrendo, de novo, a Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, o. cit., escrevem estes em anotação ao artigo 57.º, do RGIT que, “a particular exigência a nível de requisitos que a lei prevê para o auto de notícia (…) é explicada pelo especial valor probatório que lhe é conferido”, embora o RGIT já não afirme que o auto de notícia faz fé em juízo, como anteriormente o fazia o artigo 109.º, do Código de Processo das Contribuições e Impostos (CPCI). “(…) para abalar a força probatória do auto de notícia não será hoje necessário fazer a prova em contrário exigida pelo CPCI, bastando que se produza prova que abale a força probatória do auto de notícia, tornando duvidosos os factos que nele são imputados ao arguido”;


c) – Embora os A.A. admitam a possibilidade de se pôr em causa a veracidade dos factos constantes do auto de notícia, “solução que melhor se compagina com a presunção constitucional de inocência dos arguidos, até ao trânsito em julgado da decisão condenatória, que consta do artigo 32.º, n.º 2, da CRP”, tal hipótese não será aplicável ao caso dos autos, uma vez que o Reclamante não contesta a veracidade dos factos que lhe foram imputados na situação concreta que descreve, mas tão só a oportunidade do levantamento do auto de notícia.



5. Do exercício do direito à redução da coima prevista no artigo 111.º – A, do RGIT:



a) – Já tratámos, no ponto 2, do âmbito de aplicação do artigo 111.º – A do RGIT, bem como da possibilidade de poder ser exercido o direito à redução da coima ali cominada. Concretizaremos agora melhor as condições em que é possível o exercício daquele direito:


b) – Tendo o obrigado tributário procedido à apresentação de uma declaração com inexactidões, o exercício do direito à redução da coima depende da regularização da mesma declaração, no prazo de 15 dias (cfr. a alínea c), do n.º 1 do artigo 30.º, do RGIT), sob pena de ser imediatamente instaurado o processo de contra-ordenação (cfr. o n.º 2 do mesmo artigo);


c) – Para tanto, e por não se tratar da falta de entrega da declaração, nem o montante da coima cominada depender do montante da prestação tributária em falta, deverá ser-lhe expedida notificação para cumprimento da obrigação que deu origem à infracção.



 


C – Conclusões:



Em face da análise supra, será possível formular as seguintes conclusões:



1. A indicação da taxa de câmbio em vigor, regularmente publicitada pela autoridade aduaneira, é necessária para a determinação do valor aduaneiro das mercadorias, elemento essencial ao apuramento da dívida aduaneira;


2. As declarações que contenham a indicação de uma taxa de câmbio diversa da que se encontra em vigor à data da sua apresentação contêm inexactidões que, embora não interfiram na determinação da dívida aduaneira, por serem facilmente detectadas pelo sistema informático de liquidação, constituem infracção fiscal aduaneira, prevista e punível pelo artigo 111.º – A, do RGIT, aditado pela Lei n.º 67-A/2007, de 31/12;


3. O levantamento de auto de notícia por funcionário competente para punição da infracção que verificou pessoalmente, não constituirá “abuso” mas sim o cumprimento de um dever funcional legalmente imposto;


4. Nem sempre o levantamento do auto de notícia dá origem à instauração de processo de contra-ordenação, em especial se o arguido exercer o direito à redução da coima, nos termos dos artigos 29.º e 30.º do RGIT;


5. Os actos praticados entre o conhecimento da infracção e a instauração do processo de contra-ordenação, integram-se num procedimento de tipo administrativo tributário, a que se aplicam as normas da LGT, do CPPT e, subsidiariamente, do CPA, sendo admissível que dos mesmos seja deduzido recurso hierárquico, nos termos dos artigos 80.º, da LGT, 66.º e 67.º, n.º 1, do CPPT. Porém, o recurso hierárquico não terá efeito suspensivo da instauração do processo de contra-ordenação em que será proferida decisão de aplicação da coima;


6. Da decisão de aplicação da coima em processo de contra-ordenação, apenas cabe recurso judicial, nos termos do artigo 80.º, do RGIT;


7. Na situação concreta dos autos, o Reclamante confirma os factos que lhe foram imputados no auto de notícia, assim como o “convite” da DGAIEC para o exercício do direito à redução da coima, apenas se não conformando com a impossibilidade de recorrer hierarquicamente do acto de levantamento do auto de notícia;


8. O levantamento de auto de notícia por funcionário competente que verifica pessoalmente a infracção não constitui abuso, por se traduzir no exercício de um dever funcional, sem prejuízo de poder ser posta em causa a veracidade dos actos imputados ao agente, directamente lesivos da sua esfera jurídica;


9. A impugnação do auto de notícia poderá ter lugar por via do recurso hierárquico, antes de instaurado o processo de contra-ordenação e, no âmbito do processo de contra-ordenação, mediante recurso judicial da decisão de aplicação da coima;


10. A pretensão do Reclamante, que não contesta a veracidade dos actos constantes do auto de notícia, mas tão só a oportunidade da verificação e punição da infracção cometida, afigura-se inatendível, tornando desnecessária a audição da entidade visada.


11. Termos em que se formula proposta de arquivamento dos autos, com elucidação ao Reclamante, através do ofício em anexo (R- 963/11.01), que se submetem à consideração superior.



Lisboa, 18/03/2011



A Assessora,



 


/Mariana Vargas/



 


 


 


 


Sancionado por Despacho do Senhor Provedor-Adjunto de Justiça, datado de 31.03.2011.